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SemanaDor e esporte: qual o limite do atleta?
A lógica do esporte de alto rendimento pressupõe que a dor é um mal necessário e inevitável na jornada de qualquer atleta. Gama conversou com especialistas para entender até onde um corpo atlético pode e deve aguentar
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SemanaDor e esporte: qual o limite do atleta?
A lógica do esporte de alto rendimento pressupõe que a dor é um mal necessário e inevitável na jornada de qualquer atleta. Gama conversou com especialistas para entender até onde um corpo atlético pode e deve aguentar
Você pode não conhecer muito sobre futebol americano, mas sem sombra de dúvidas já ouviu falar sobre o Super Bowl. Atraindo milhões de espectadores todos os anos, além dos bilhões de dólares em comerciais e propagandas, a final da NFL — liga nacional de futebol americano dos Estados Unidos — é o evento esportivo mais assistido dos EUA e um verdadeiro fenômeno midiático. Seja com comerciais super produzidos ou com os famosos shows do intervalo, o Super Bowl é o ponto mais alto do esporte mais popular do país, em que os melhores jogadores dão tudo de si para ganhar o tão sonhado título de campeão. Nos bastidores, entretanto, um enorme problema corre pelos vestiários, colocando em xeque a saúde física dos atletas e a segurança do jogo. Lesões violentas são comuns na modalidade, dado o alto nível de contato físico e de força que o jogo demanda. Os machucados na região da cabeça são particularmente perigosos e representam um dos maiores tabus do futebol americano profissional.
Publicado em 2017, um estudo da Faculdade de Medicina da Universidade de Boston e do Hospital de Veteranos de Boston apontou que 99% dos ex-jogadores da NFL estudados apresentaram lesões cerebrais. Dos 111 cérebros doados por ex-jogadores já mortos, 110 apresentavam algum tipo de ferimento na região da cabeça. Conhecida como demência pugilística, nome dado graças à prevalência desse tipo de lesão em lutadores de boxe, a ETC (Encefalopatia Traumática Crônica) é uma doença neurodegenerativa associada a repetidos choques e pancadas na cabeça. É comum que os efeitos da doença, como piora cognitiva e da memória, alterações de humor e dificuldade na coordenação e fala, apareçam anos depois das lesões acontecerem, o que faz com que os diagnósticos sejam difíceis e que a relação entre o esporte e a doença ainda sejam discutidas de forma precária.
Existem inúmeros formatos de dor no mundo esportivo, a lesão, o fim da carreira, o corte de uma equipe, o distanciamento e a solidão
Se o assunto é mencionado nas conversas mais recentes sobre o esporte, deve-se ao esforço de Dr. Bennet Omalu, um neuropatologista da Universidade de Pittsburgh. Desde 2005, o médico vem alertando para a relação direta entre lesões sofridas na área da cabeça durante partidas e doenças neurológicas severas sustentadas por atletas, que em alguns casos podem levar ao suicídio. A história do médico se tornou filme protagonizado por Will Smith e, apesar de grande resistência da NFL, em 2013 a liga criou um protocolo de saúde e segurança que busca identificar possíveis danos na região da cabeça após o choque entre jogadores. As mudanças foram mínimas e não representaram um grande avanço no tema, que continua a ser ignorado pela organização.
Em modalidades onde os impactos entre jogadores não são tão violentos, as preocupações com essas questões são quase inexistentes. No futebol, os protocolos em relação a lesões na cabeça são básicos e é comum ver partidas onde jogadores sofrem golpes violentos na cabeça e continuam jogando. A FIFA até busca implementar medidas de segurança mais robustas, mas até o momento essas ações não saíram das fases de teste. Na Premier League, liga inglesa de futebol, uma nova regra foi anunciada possibilitando novas substituições, além das três já permitidas para atletas que sofrerem concussões durante o jogo. Apesar de positivo, o movimento ainda não é global.
Seja no boxe, no futebol americano ou no futebol, a dor física e a lesão costumam a ser vistas como parte fundamental do esporte, um incômodo impossível de ser evitado. Além da pressão de performar determinada atividade no mais alto nível, atletas profissionais costumam realizar sacrifícios físicos e mentais em nome do jogo. Entre partidas, treinos, preleções e descanso, há uma única constante: a dor. Gama conversou com psicólogas esportivas para entender qual é o papel da dor no mundo dos esportes e até onde podemos e devemos estender esse limite.
No Pain, No Gain
“É comum ouvir que a dor é uma constante no esporte de alto rendimento. Não existe jogador que, ao menos uma vez na carreira, não tenha experimentado dor.” Quem afirma isso é Clarice Medeiros, doutora em psicologia clínica, psicóloga esportiva com atuação no COB (Comitê Olímpico do Brasil) e autora do estudo “Lesão e dor no atleta de alto rendimento: o desafio do trabalho da psicologia do esporte”. O esporte opera na lógica do rendimento a qualquer custo, onde o atleta que não dá 100% de sua capacidade não é considerado um bom profissional. “Ninguém liga a TV para ver um empate, uma partida morna. Queremos ver os competidores superarem todos os limites, fazer o inacreditável. A performance a qualquer custo implica em um jogador que suporta a dor, pois se não suportar não consegue competir.”
Já Katia Rubio, psicóloga e professora da Faculdade de Educação da USP, ex-presidente e fundadora da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte, colunista do Caderno de Esporte da Folha de S. Paulo e autora do estudo “A Dor entre Atletas de Alto Rendimento”, entende que o corpo do esportista é sempre trabalhado para superar os limites. “Toda vez que você transcende o limite do seu corpo, você precisa ensiná-lo de que aquilo é natural. Há uma naturalização dessa sensação dolorosa, como se a dor fizesse parte do uniforme do esportista.” Katia explica que essa ideia faz parte de uma construção social que o jogador escuta da torcida, de técnicos, de companheiros de equipe e até de si mesmo, o que resulta na banalização da dor.
Existe quem ache que se não houver dor, não há valor. Será mesmo que é preciso suportar a dor a qualquer custo?
Mas a dor não é sempre vilã, afirma a professora, que busca categorizar diferentes tipos de dores e entender como cada uma afeta os atletas. “Há a dor do treino, uma dor diária fruto do esforço físico, mas que é cotidiana e de rápida recuperação. Já a dor da lesão é a dor que incapacita e coloca em risco a trajetória do jogador, afastando ele da prática esportiva por um período significativo de tempo.” Além da dor física, a lesão também carrega consigo inúmeros outros fantasmas. “O medo do fim da carreira, a depressão, a ansiedade, a insônia, a solidão. Um atleta produtivo está sempre cercado de gente, um atleta lesionado está sempre só, no máximo acompanhado por um fisioterapeuta”, diz Katia.
Clarice Medeiros afirma que muitos jogadores encaram a lesão como um capítulo à parte de suas jornadas, uma interrupção em suas histórias. “Por causa da lesão, o esportista perde o lugar no time e, mesmo quando volta, não costuma competir da mesma forma. Na psicologia esportiva, convidamos o paciente a entender que a dor faz parte da história dele, que ela não é desarticulada ou fora daquilo que ele vive.” Para a psicóloga, é essencial trabalhar e entender qual o limite de cada corpo, substituindo a ideia de superação a todo custo. “Precisamos entender que o corpo é portador das histórias dolorosas daquele sujeito”, conta Clarice. A dor é uma propriedade humana que protege o organismo de uma série de perigos, mas a psicóloga afirma que humanos tendem a acreditar que seus corpos são imparáveis. A exigência de estar sempre em sua melhor forma independentemente de qualquer contexto é cruel e muitos atletas acreditam que precisam suportar a dor, caso contrário estarão falhando.
“Existe quem ache que se não houver dor, não há valor. Será mesmo que é preciso suportar a dor a qualquer custo? A dor busca barrar esse discurso que prega o aperfeiçoamento acima de tudo, afinal, se até uma máquina quebra, o que será de nós meros mortais?”
De quem é a dor?
“Todo esporte tem como característica o esforço repetitivo, a excelência técnica nada mais é do que o excesso de repetição. A prática esportiva em alto nível deixou de ser prazerosa há muito tempo e a alegria só faz parte dos resultados e das vitórias, não dos jogos”, afirma Katia Rubio. Se o prazer está na vitória, e não necessariamente na disputa, é natural que a grande pressão possa atrapalhar os resultados dos atletas. Para piorar tudo, a professora ainda detalha uma característica particularmente cruel dos esportes: o corpo do jogador não pertence a ele mesmo.
“Esse corpo é do preparador físico, do treinador, do médico e da equipe. Já vi inúmeros casos onde a dor de alguém é desrespeitada, onde o técnico chama lesão de fraqueza. Ninguém quer conviver com esse estigma.” No mundo olímpico, a professora diz que é comum que os esportistas sigam à risca as determinações do técnico, independentemente se isso vai prejudicar o atleta ou não. Se o treinador pede para ele fazer 20 exercícios, ele faz 20. Se pedir 30, ele faz 30. E assim, o esportista vai perdendo cada vez mais a propriedade do próprio corpo.
A psicóloga Clarice Medeiros lembra que se surpreendeu quando estava atendendo uma atleta ainda adolescente e descobriu que, para a menina, a lesão era um grande alívio. “Ela me contou que havia esquecido como era bom assistir TV durante a tarde. A rotina de treinamento dela não dava tempo de descanso, seja para o físico ou para o psicológico.” Para a psicóloga, é importante sempre estar atento ao que diz e sente o jogador e entender que um espaço de conversa e reflexão destinado a dor é essencial para qualquer esporte. “Não devemos aprender a continuar suportando a dor, mas sim entender como atravessá-la da maneira mais saudável possível. A dor não pode ser o fim, ela tem que ser um alerta sobre o que não deve ser repetido.”
Não devemos aprender a continuar suportando a dor, mas sim entender como atravessá-la da maneira mais saudável possível
Apesar da preocupação de profissionais da saúde com o meio esportivo, o funcionamento do esporte de alto rendimento é um grande complicador para a saúde dos atletas. Seja na Olimpíada, na Copa do Mundo ou em qualquer outra competição, são as histórias de superação que encantam torcedores ao redor do mundo. É o ponto feito apesar da contusão, a volta ao jogo após uma pancada e o famoso “jogar no sacrifício”, onde mesmo lesionado o esportista arrisca seu bem-estar para ganhar a partida. “É um imperativo cultural e social, introjetado na nossa cabeça e na cabeça do jogador. A romantização dessa figura heroica vem às custas do silenciamento da humanidade de cada atleta”, conta Clarice. Nos estádios, queremos ver o esportista caído se levantar, mesmo que o mais saudável seja ele permanecer no chão.
“O esporte de alto rendimento não tem nada de saudável, é uma prática corrosiva. Jogar lesionado e arriscar a própria saúde não é uma atitude heroica e sim uma atitude estúpida”, afirma Katia Rubio. Para ela, gestos heroicos deveriam ser reservados a objetivos heroicos, e não para exigir de um corpo lesionado aquilo que ele não pode dar. “Precisamos aprender a dizer que um atleta não pode jogar quando está lesionado, que o corpo dele não aguenta. É uma lição longa e difícil, mas o respeito para com o corpo precisa ser aprendido.”
Depois da dor
No anúncio de aposentadoria de Ronaldo Fenômeno, o eterno camisa nove utilizou a expressão “primeira morte” para definir sua despedida dos gramados. Com dezenas de cirurgias em menos de 40 anos de existência, a história de Ronaldo demonstra como a vida de um jogador profissional é pautada na dor, mesmo que ele já não pratique mais o esporte em alto nível há um bom tempo. “Não é o jogador que abandona o futebol, é o futebol que abandona o jogador”, já bem dizia Sócrates — o atleta do Corinthians, não o filósofo.
“Imagine um corpo vivendo em seu limite fisiológico para, de um dia para o outro, se ver completamente distante desse tipo de vivência”, questiona Katia Rubio. “Não é à toa que os ex-atletas costumam engordar e terem problemas de rotina, o corpo tem uma memória e é difícil mudar a lógica dele depois de tanto tempo.” Para a professora, a transição de um esportista profissional para a vida normal deve ser acompanhada por um “destreinamento”, que ensine esses atletas a viverem sem a constante exigência de performar no mais alto nível. “Pense na quantidade de dores e lesões que um corpo sempre em alta performance carrega.”
“Você até pode sair do mundo dos esportes, mas a dor do esporte te persegue”, conta a psicóloga Clarice Medeiros. “O fim da carreira e as lesões que perduram são um trabalho de luto do corpo, da carreira e da identidade do jogador.” O mundo dos esportes tem uma das carreiras mais precoces que existe e é comum que um atleta, salvo raras exceções, só consiga se manter no jogo até os 40 anos. Já no mundo normal, essa é a faixa de idade em que profissionais de todas as áreas costumam entrar no ápice de suas carreiras. “Enquanto a população geral está crescendo profissionalmente, o esportista está se aposentando. O trabalho cria uma identidade e, se a pessoa não é mais atleta, o que ela é? O drama da aposentadoria é colocado muito precocemente na vida de um esportista.”
O luto, assim como uma lesão não resolvida, também dói e não é incomum que ex-esportistas continuem no mercado do esporte, atuando em outras funções como treinadores, executivos e administradores. Afinal, eles dedicaram uma vida toda ao aperfeiçoamento de uma única função. O que fazer depois que o corpo não aguenta mais? “Existem inúmeros formatos de dor no mundo esportivo, a lesão, o fim da carreira, o corte de uma equipe, o distanciamento e a solidão. Essas formas de dor também costumam ser desprezadas por dirigentes e ninguém parece entender o que leva um ser humano a adoecer no ambiente esportivo quando não há uma lesão”, diz Katia. “Precisamos desenvolver o respeito sobre o corpo dos jogadores. É importante ter noção da própria impotência e saber que não se ganha sempre. Quando esse limite é respeitado, o atleta certamente tem uma carreira mais longeva e mais saudável.”
“A dor nos ensina que para tudo há um limite, independentemente do quão bom você seja em algo. Algumas são inevitáveis, mas isso não significa que devemos passar por cima delas”, finaliza Clarice.