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SemanaA moda pode ser sustentável?
Muito se debate sobre os impactos de uma das indústrias líderes do consumo — e também uma das mais nocivas ao meio ambiente. Gama elenca cinco pontos para entender se é realmente possível falar em sustentabilidade na moda
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Muito se debate sobre os impactos de uma das indústrias líderes do consumo — e também uma das mais nocivas ao meio ambiente. Gama elenca cinco pontos para entender se é realmente possível falar em sustentabilidade na moda
Quando foi convidada para participar do Fórum Público da Organização Mundial do Comércio em 2018, a paraibana Francisca Vieira achou que o email era um vírus. Depois de se certificar de que a mensagem não era piada nem golpe, arrumou as malas para voar até Genebra, na Suíça, onde falou no evento mais importante da OMC sobre a Natural Cotton Color, marca de roupas que lançou em 1995 e que, desde o começo dos anos 2000, é pioneira em um modelo de negócios sustentável dentro do setor. “Tenho que dizer que o trabalho da gente hoje é reconhecido no mundo inteiro”, afirma, sem falsa modéstia.
E não é à toa: sediada na Paraíba, a marca exporta matéria-prima e roupas para mais de dez países e habita feiras e semanas de moda pelo mundo. Ganhou relevância (e a confiança de tanta gente) porque cuida com atenção de toda sua cadeia produtiva. Dos pequenos agricultores que cultivam o algodão naturalmente colorido — economizando mais de 87% da água que seria utilizada em processos de tingimento químico e acabamento do tecido — aos artesãos e costureiras que trançam o produto final, todo o processo faz jus aos selos de limpo e justo. “Posso dizer que tenho um produto sustentável com base nas pilastras da ONU para 2030”, diz Vieira.
Embora o debate sobre os impactos nocivos da indústria da moda para o planeta + venha conquistando cada vez mais adeptos a favor de negócios mais conscientes, iniciativas como a da Natural Cotton Color ainda são raras. Sim, diversos movimentos se articulam pelo globo (veja box abaixo), mas entre os acordos e os discursos e a prática há um longo caminho para uma revolução real do sistema.
“O capitalismo sempre coopta as pautas de resistência, então parece que está tudo bem, mas não está tudo bem”, avalia Flavia Aranha, estilista brasileira cuja marca nasceu em 2009 com o objetivo de fomentar uma cadeia de produção mais digna e benevolente com os recursos naturais. “Houve avanços, mas são muito pequenos. A gente tem uma urgência muito maior do que o ritmo da mudança e ainda não existem pesquisas sistêmicas ou de longo prazo para gerar transformação concreta.”
Para que isso aconteça, é preciso mexer em questões sensíveis — abalar um jeito de viver, produzir e consumir muito consolidado, sobre o qual a indústria da moda se construiu e se mantém há décadas. Gama ouviu a opinião de especialistas e, a seguir, elenca cinco pontos-chave para refletir sobre um futuro mais ambiental e socialmente viável para o setor.
Alternativas às atuais cadeias de produção
Das grandes vilãs da crise climática, elas reinam no setor têxtil — as redes de fast fashion. A explicação, tanto para uma coisa quanto para a outra, está no conceito: produção em massa, de baixa qualidade (o que faz com que o guarda-roupa precise ser renovado constantemente), articulando uma cadeia gigantesca ao redor do globo que envolve matérias-primas não renováveis, como o poliéster, e trabalhadores mal remunerados, inclusive com denúncias de escravidão. O resultado, claro, é um preço acessível nas lojas de onde saem os clientes com as sacolas cheias.
Quebrar esse ciclo é um dos grandes desafios para que a indústria se torne realmente sustentável. “Sustentabilidade significa sustentar os negócios e os estilos de vida a longo prazo. Existem inúmeras possibilidades de se trabalhar de uma maneira responsável, alternativas que já são testadas, mas são mudanças que vão levar décadas para acontecer”, observa Eloisa Artuso, diretora educacional da filial brasileira do Fashion Revolution, organização que advoga por uma moda mais justa com as pessoas e com a natureza.
Sustentabilidade significa sustentar os negócios e os estilos de vida a longo prazo
Seria preciso mexer em praticamente todas as etapas de uma extensa linha de produção, remodelando um sistema desenhado para a larga escala: renovar as fontes de matéria-prima, buscando materiais certificados e de baixo impacto; diversificar as etapas da produção em um mesmo local, diminuindo os efeitos de poluentes na logística e o desgaste da terra; apostar em processos limpos, restringindo substâncias químicas perigosas; aumentar a qualidade para que as peças possam circular por mais tempo; destinar resíduos e o produto final, quando já gasto, para a reciclagem.
Com tudo isso em mente e depois de mais de dez anos investindo em materiais naturais, como o mesmo algodão da Natural Cotton Color e corantes não-artificiais, Flavia Aranha partiu para um projeto mais ambicioso: junto com a Fazenda Malabar, no interior de São Paulo, e a empresa de pesquisa e tecnologia Jurema, ela planeja agora a criação de uma agrofloresta têxtil. A ideia é usar os princípios de diversidade do plantio da agroecologia para cultivar fibras, como o algodão, o linho e a malva, e corantes, como o índigo. “Queremos ser um modelo que possa ser replicado no Brasil inteiro, pensando em cada bioma e suas espécies”, conta. A iniciativa também envolve capacitar trabalhadoras e tornar os processos mais locais.
Há quem defenda que uma forma alternativa de produção como essa levaria os milhões de trabalhadores do setor, inúmeras vezes já precarizados, ao desemprego e ao colapso econômico. Um dilema que, na opinião de Artuso, tem solução. “A indústria, sim, gera muito emprego e muita renda, mas isso não justifica a exploração desse trabalho. A questão é entender como se tornar mais circular e como isso pode abrir um novo leque de oportunidades de serviços e de empregos”, defende.
Investimento em políticas públicas e tecnologia
É claro que transformar a cadeia produtiva e os postos de trabalho do setor têxtil não é uma revolução que vai acontecer na calada da noite, instantaneamente. Por mais que haja boa vontade de diversos atores nesse sentido — com o surgimento de pequenas marcas artesanais e mais conscientes e até de novos padrões de comportamento, como a popularização dos brechós, que ganharam ares cool e politicamente corretos nos últimos anos —, é necessário o envolvimento de outras esferas de poder. “Tendências não levarão a uma indústria da moda sustentável. A legislação levará”, avalia Alden Wicker, jornalista norte-americana especializada na cobertura do tema e fundadora do site EcoCult.
“Precisamos de acordos transnacionais e legislações nacionais que exijam informações sobre as pegadas de carbono e relatórios transparentes, que responsabilizem as empresas pelo que acontece em toda a sua teia de abastecimento, que tornem mais caro poluir do que não poluir”, diz ela, que viajou por um ano pesquisando as cadeias de produção da moda ao redor do mundo. “Até isso acontecer, as tendências e atitudes do consumidor não ajudarão muito.”
Tendências não levarão a uma indústria da moda sustentável. A legislação levará
As políticas públicas ideais não só trariam a regulação ambiental, mas também investiriam no desenvolvimento de tecnologias para tornar o processo mais amigável: criar materiais menos poluentes e maquinário para produção em menor escala, por exemplo. E, indo além, seria preciso preparar os trabalhadores para essa nova realidade. “Trabalhar com sustentabilidade exige capacitação: ou você incentiva e capacita ou a moda sustentável não vai sobreviver”, defende Francisca Vieira.
A lógica do consumo
Encontrar novas formas de produzir e investir na moda passa necessariamente por uma transformação na maneira de consumir. “O que a gente precisa é mudar a lógica, o ritmo do consumo. Precisamos fazer roupas melhores, com mais qualidade e que durem mais tempo, uma tendência oposta ao fast fashion”, explica Flavia Aranha. Afinal, a sustentabilidade é incompatível com o consumo em massa e a renovação constante de coleções, estimulada também pelo calendário inflexível das semanas de moda +. “Teremos que revisar completamente a maneira como produzimos, usamos e descartamos a moda globalmente”, diz Wicker.
Temos que pensar em um futuro da moda sem esse eixo de volume de crescer, crescer, crescer. Isso vai entrar em colapso
E isso significa transformar o modelo econômico das empresas. “O varejo ainda não conseguiu pensar nesse futuro, em como as marcas vão se sustentar sem depender dessa grande escala [de produção e consumo]”, avalia Aranha. “Temos que pensar em um futuro da moda sem esse eixo de volume de crescer, crescer, crescer em uma produção acima da demanda do mercado. Isso vai entrar em colapso.” Para ela, a melhor aposta para as marcas são os serviços: aluguel de peças, brechós e vendas de segunda mão, consultoria de estilo.
Um futuro que já não parece assim tão distante: o resale já desponta como um bom negócio mesmo para líderes do mercado de fast fashion, como a H&M. Um braço da gigante, a Cos lançou neste ano uma plataforma para compra e venda de roupas usadas da marca. “Quem não trabalha com matéria-prima sustentável pode começar a montar o seu mercado de segunda mão, porque vai ser a salvação no futuro”, atesta Francisca Vieira.
Transparência e consumo consciente
Criar um brechó online, no entanto, não exime os grandes grupos de sua generosa parcela de culpa na crise climática e nem lhes confere a carteirinha de membro de honra do clube dos sustentáveis — mas seduz o consumidor preocupado com as próprias atitudes. Eis o perigo: ao buscar alternativas menos danosas ao planeta, corre-se o risco de cair no famigerado greenwashing, nome que se dá à apropriação do discurso ambientalista em benefício de empresas que não necessariamente adotam ações mais verdes. “É o que mais cresce, em meio a meia dúzia de marcas realmente sustentáveis”, diz Vieira.
Esse é um dos problemas de deslocar a responsabilização para a ponta do “consumo consciente”. “Os consumidores são incapazes de fomentar mudanças por meio de seus hábitos de compra, porque não temos acesso a informações sobre o que é verdadeiramente sustentável e não temos tempo e capacidade para nos tornarmos especialistas nessa área”, observa Wicker. “Precisamos de especialistas para criar diretrizes ??que as marcas devem seguir, em vez de depender de consumidores distraídos.”
Os consumidores são incapazes de fomentar mudanças porque não temos informações sobre o que é verdadeiramente sustentável
É por isso que iniciativas como o blockchain, cujo objetivo é rastrear toda a origem do produto, e o Índice de Transparência da Moda, capitaneado pelo Fashion Revolution globalmente e também no Brasil, ganham relevância. Por meio de um longo questionário que leva em conta questões ambientais e sociais, o relatório de transparência analisa a disponibilidade de informação de grandes marcas e varejistas. Na recém-lançada edição do índice nacional, a pontuação média foi de 21% — o que significa que ainda oferecemos poucos dados aos consumidores para que façam escolhas mais conscientes.
“O ato de compra é um ato político, você vota para que aquele modelo de negócio cresça cada vez mais. Mas como fazer compras mais inteligentes sem informação?”, questiona Eloisa Artuso, que coordena a pesquisa no Fashion Revolution Brasil. Ela destaca que a maioria das marcas brasileiras fica na esfera do discurso. “Sempre pontuam mais em política: falam muito sobre seus valores, mas quanto mais a gente aprofunda e busca saber como essas políticas são colocadas em prática, mais as médias vão caindo.”
Ou seja, assim é difícil para o consumidor identificar se está comprando um produto realmente sustentável ou não. Por isso, a transparência é um caminho, inclusive para criar pressão do público sobre as empresas. “Ela sozinha não resolve todos os problemas sistêmicos, mas ajuda a revelar as estruturas, os problemas, os bastidores, para que eles possam ser resolvidos”, diz Artuso.
A moda sustentável é para todos?
Ainda que, em um mundo ideal, tenhamos na mão informações precisas para decidir quais são nossas marcas favoritas, nem todos têm as condições materiais para fazer as melhores escolhas. Em um país desigual como o Brasil, o buraco é mais embaixo: ser mais justo com o planeta e com as pessoas custa caro. “Os produtos sustentáveis são mais caros porque eles embutem no preço o que outros produtos não embutem: os impactos sociais e ambientais”, diz Artuso. “É delicado porque estamos falando de uma mudança de hábito, de preço, de poder pagar ou não.”
Os produtos sustentáveis são mais caros porque eles embutem no preço os impactos sociais e ambientais
Quando se pensa em costumes e em poder aquisitivo, há também de se fazer cálculos: o quanto gastamos com muitas roupas baratas? Daria para substituir por menos peças mais caras? “A gente se acostumou a comprar muito mais: hoje gastamos mais dinheiro comprando coisas de menor qualidade”, afirma a diretora educacional do Fashion Revolution Brasil.
Ainda assim, a conta não fecha para muita gente, o que não deixa de incomodar quem está lutando por uma cadeia mais justa. “É a minha maior incoerência: as costureiras não podem comprar minhas roupas. O preço justo é relativo. Ele dá um salário digno? Sim, mas não dá acesso a esse produto sustentável”, avalia Flavia Aranha. Por isso, diz ela, o investimento em tecnologia é tão importante. “Também precisamos de soluções industriais que sejam sustentáveis. Não dá para ficar só no discurso do artesanal poético e luxuoso, porque não é uma solução sistêmica. Precisamos tecer um ecossistema, com pesquisa e inovação, para reduzir os custos e criar produtos de qualidade que sejam mais acessíveis.”
Na última década, uma série de iniciativas para tornar a indústria da moda menos nociva tem despontado pelo mundo. Se saem do discurso para a ação ou não, elas pelo menos demonstram a intenção de caminhar nesse sentido. Exemplos que ganharam relevância global são o movimento da consultora Livia Firth para que as celebridades usem looks mais ecológicos nos tapetes vermelhos e o Fashion Pact, assinado por várias marcas em uma reunião de cúpula do G7 no ano passado como um compromisso para enquadrar o setor nas metas da agenda ambientalista. Até o príncipe Charles, um ícone dos looks na realeza, entrou na onda, lançando sua própria coleção sustentável.
No Brasil, a popularização dos guarda-roupas minimalistas por influenciadoras como Giovanna Nader e Raquel Vittilino, do Projeto Gaveta, mostram o crescimento do interesse do público pelo tema. Já o recém-lançado manifesto de Stella McCartney, nome forte e reconhecidamente atrelado à causa, quer combater o greenwashing. Em parceria com artistas como Olafur Eliasson e Cindy Sherman, o projeto da estilista britânica é uma espécie de dicionário de A a Z, com o significado de termos relacionados à sustentabilidade, e reforça os pilares ideológicos da grife.