Estamos voltando a viajar (ou a pensar no assunto). Como se comportar como turista em tempos de pandemia, para onde ir e o que esperar do futuro
Fronteiras fechadas, voos cancelados, hotéis parados: o turismo foi um dos mercados mais afetados em 2020. Foram R$ 122 bilhões perdidos só no Brasil desde o início da pandemia. Depois da paralisação quase total das viagens nos primeiros meses de quarentena, porém, o movimento recomeçou. No feriado de 7 de setembro, fotos de praias, parques e bares lotados, não só nas capitais, mas em lugares como Paraty (RJ), Jericoacoara (CE) e Porto de Galinhas (PE), deixaram claro que, para muita gente, o jejum de viagem acabou.
Ainda que só se estime uma retomada maior em 2022, a volta da procura foi notável. “Tem gente chamando de ‘viagens de vingança contra o vírus’” diz Roberto Nedelciu, presidente da BRAZTOA (Associação Brasileira das Operadoras de Turismo). Segundo a entidade, 87% das operadoras de viagem do país realizaram vendas de pacotes em setembro (contra 46% em abril, o pior mês para elas). Desde meados de agosto, parques nacionais e muitos dos destinos que haviam sido fechados para turistas, como o Jalapão (TO) e a Chapada dos Veadeiros (GO), reabriram, junto com o retorno gradual do comércio e dos voos domésticos.
Adaptações têm sido feitas para o “novo normal” das viagens. Aeroportos ganharam estações de álcool em gel, marcações no chão para manter a distância entre passageiros, controle de temperatura corporal. O Ministério do Turismo criou o selo “Turismo Responsável, Limpo e Seguro” para empreendimentos e atrativos que adotam medidas de proteção sanitária contra o vírus.
Temos visto um setor preparado para seguir os protocolos de higiene, mas muitos viajantes não estão respeitando nem as precauções mínimas
O Airbnb, maior site de aluguel de temporada do mundo e um dos portais mais usados para os “escapes” durante a pandemia, lançou um protocolo a ser seguido pelos anfitriões para higienização dos imóveis entre um hóspede e outro. Hotéis têm funcionado com em média 40% da ocupação (o que varia de acordo com a regra do município) e tomado cuidados em áreas comuns como restaurantes e piscinas. Entre os seguros de viagem, já há empresas oferecendo cobertura que inclui despesas médicas com a Covid-19.
“O que tem preocupado mais é o comportamento das pessoas, pois temos visto um setor preparado para seguir os protocolos de higiene, mas muitos viajantes não estão respeitando nem às precauções mínimas”, diz Roberto Nedelciu. O Movimento Supera Turismo, criado no início da pandemia por gente de todos os elos da cadeira do turismo nacional, lançou para isso o “Guia do Viajante Responsável”, com recomendações básicas aos turistas, tais como manter o distanciamento social e higienizar a bagagem.
Um outro jeito de viajar
Viajar com responsabilidade nesses tempos requer uma mudança de atitude durante a estadia – respeitar o uso de máscara, manter a higienização das mãos, dar preferência por atividades ao ar livre, escolher não comparecer a festas e estabelecimentos lotados – e muita atenção à escolha do destino. Para quem está viajando de carro para lugares próximos dos grandes centros urbanos, evitar aglomerações tem se mostrado desafiador.
“O lugar perto de casa, que surgiu como uma saída no início da pandemia, virou um problema”, diz o blogueiro Ricardo Freire, a frente do site Viaje na Viagem desde 2004. “Hoje é possível que seja mais seguro pegar um avião e ir à uma praia isolada no sul da Bahia do que passar o fim de semana em Maresias ou Campos de Jordão, em São Paulo.”
Artigos recentes como o da revista científica americana Jama (Journal of the American Medical Association) mostram que viagens de avião, antes vistas como vilãs da pandemia, oferecem menos chances de contração de Covid-19 do que no metrô ou numa sala de aula, graças ao sistema de filtragem das aeronaves que renova o ar da cabine a cada três minutos. Já o perigo de contágio pelo contato direto com um passageiro infectado só é reduzido pelo uso de máscaras.
Tivemos uma recuperação rápida e inesperada que realmente tem demonstrado essa busca por mais espaço ao ar livre que o confinamento deixou
Ou seja: para quem quiser se ater à viagem curta de carro, a saída é evitar os destinos mais badalados (ou, para quem segue em home office, visitá-los durante a semana) e quem sabe procurar aquela chácara para alugar no interior ou aquela pousadinha no alto na serra. Para quem encara um voo, já se pode olhar para o resto do Brasil, mas principalmente para longe das capitais. “Ainda temos lugares não muito favoráveis, como Fernando de Noronha (PE), que tem tido novos casos de Covid, e a Chapada Diamantina (BA), que não está totalmente aberta” explica João Marincek, da agência Venturas Viagens. + “Mas, no geral, já é possível fazer roteiros de ecoturismo com segurança. E o Brasil é gigante nesse sentido: são 71 parques nacionais.”
Soluções como acampar e alugar casas de temporada aparecem como mais convenientes para manter o distanciamento — mas não só. Para mais conforto e serviços, uma série de pequenas pousadas e hotéis sofisticados já voltou a funcionar. “Depois de quatro meses fechados, tivemos uma recuperação rápida e inesperada que realmente tem demonstrado essa busca por mais espaço ao ar livre que o confinamento deixou”, diz Helenio Waddington, da Associação de Hotéis Roteiros de Charme, que congrega 70 pousadas e hotéis de alto padrão, muitos deles integrados com a natureza, em 16 estados.
O que vem por aí
Viajar para fora do Brasil, porém, ainda é pouco prudente. Poucos países estão com as fronteiras abertas para turistas brasileiros — entre eles, México, República Dominicana e Turquia; permanecem inacessíveis Estados Unidos, países da União Europeia, Chile, Austrália, África do Sul. O Uruguai, que costuma ser visitado em massa pelos brasileiros no verão, anunciou que seguirá fechado nesse fim de ano. Alguns estão reabrindo, mas com cautela: o Peru, por exemplo, deve permitir voos vindos do Brasil a partir de novembro, mas o passageiro precisará apresentar um teste negativo de Covid-19 com até 72 horas de antecedência da chegada e preencher uma declaração de saúde.
Comprar uma viagem internacional até o primeiro semestre de 2021 é um investimento de alto risco, porque não dá para saber como vai estar a situação
Ao mesmo tempo, uma chuva de promoções de passagens aéreas de companhias como Turkish Airlines, Aerolíneas Argentinas e Latam têm pipocado na internet. “Comprar uma viagem internacional até o primeiro semestre de 2021 é um investimento de alto risco, porque não dá para saber como vai estar a situação, e muitas dessas passagens mais baratas não possibilitam a remarcação gratuita [facilidade que ficou mais comum durante a pandemia]”, diz Ricardo Freire.
Além disso, em muitos destinos seria preciso lidar como uma série de desconfortos, como museus com visitação limitada, restaurantes, lojas ou atrações fechadas, impossibilidade de ir a shows e outros eventos e a própria necessidade de usar máscara.
O que vem por aí
O mercado do turismo de luxo, já afeito à ideia da exclusividade, tem respostas rápidas para um possível “turismo de isolamento”. Hotéis isolados entre as geleiras da Patagônia, resorts em ilhas privativas nas Maldivas, lodges de safári na África do Sul e empreendimentos de glamping (tendas similares às de acampamento, mas com “glamour”) no Deserto do Saara devem ganhar mais o imaginário desse público.“O viajante de luxo é o que vai começar a viajar para fora primeiro”, diz Danielle Roman, da Interamerican, agência de promoção de destinos e hotéis. “Até pela possibilidade de acesso a jatos pessoais e transporte terrestre privativo”.
Para o viajante médio, porém, é possível que, depois da onda de passagens com descontos, viajar para o exterior fique mais caro. Além da desvalorização do real, pode haver uma diminuição na oferta de voos — no momento, o Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, está operando voos para 22 destinos internacionais, uma redução de 56% quando comparado com os 50 de antes da pandemia. Aos adeptos da viagem de mochilão, albergues com quartos compartilhados podem ficar com a ocupação comprometida por um tempo, e também há risco de uma redução de voos de companhias aéreas low-cost, comuns na Europa e na Ásia.
A pandemia acelerou a tomada de consciência de quem já estava no caminho de adotar hábitos de consumo mais sustentáveis
A profecia mais certeira para o futuro das viagens é a forte influência que terá a ampliação do trabalho remoto. “O nomadismo digital eventual ficará acessível e possível a muito mais gente”, diz Ricardo Freire. Isso significa poder passar temporadas longas em outra cidade, esticar feriadões (e assim evitar preços de passagens inflacionados), viajar e trabalhar durante as férias escolares dos filhos.
Muitas casas de temporada e hotéis já estão se preparando para isso oferecendo wi-fi de melhor qualidade. Em pesquisa divulgada pelo site de reservas Booking.com em outubro, 53% dos entrevistados brasileiros disseram que já consideram reservar um lugar para ficar do qual também possam trabalhar.
Um bom exemplo de empreendimento que pode aparecer cada vez mais nesse sentido é a rede Selina, mistura de hostel, hotel e espaço de coworking e eventos voltado principalmente para o público de 25 a 40 anos – são 71 unidades no mundo, 6 delas no Brasil. “Pessoas jovens se sentem menos vulneráveis à situação e estão voltando a viajar mais rápido, principalmente as que trabalham à distância”, diz Flávia Lorenzetti, head de expansão da rede no país. Durante a pandemia, foi lançado um pacote de assinatura mensal em que o hóspede pode pagar uma tarifa fixa e morar em qualquer um dos hotéis Selina. Em 2021, devem abrir unidades em cidades como Bonito e Foz do Iguaçu.
Para além das implicações econômicas, está se falando que sairemos dessa como turistas mais conscientes: mais preocupados com atitudes sustentáveis durante a viagem, mais sensíveis a que tipo de empresas financiamos e mais atentos às necessidades das comunidades dos lugares que visitamos. Na mesma pesquisa do Booking.com, 71% dos viajantes brasileiros disseram que querem viajar de forma mais sustentável no futuro e 84% deles espera que a indústria ofereça opções mais ecologicamente corretas.
“Acredito que a pandemia acelerou a tomada de consciência de quem já estava no caminho de adotar hábitos de consumo mais sustentáveis e vai passar a estender essa atitude em relação às suas viagens”, diz Marianne Costa, empreendedora social da Vivejar. A agência é especializada em roteiros de viagem responsável, principalmente de turismo comunitário, cuja organização é totalmente pensada para as necessidades da comunidade que recebe o turista e cuja renda é revertida para melhorias nas condições de vida e preservação do meio ambiente no local. Há, por exemplo, experiências com ceramistas no Vale do Jequitinhonha, em Minas, e com comunidades ribeirinhas na Amazônia. “Isso significa em grande parte abrir mão da decisão tomada somente com base no preço para uma que realmente reflita sobre o impacto das escolhas de viagem”.
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CAPA Pode viajar?
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