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ReportagemEstá atrás de um amor? Não se feche a encontrar amigos
Em meio a uma crise do amor romântico, se permitir começar relações de amizade pode trazer bem-estar, saúde e até abrir novas portas
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Está atrás de um amor? Não se feche a encontrar amigos
Em meio a uma crise do amor romântico, se permitir começar relações de amizade pode trazer bem-estar, saúde e até abrir novas portas
É namoro ou amizade? Com essa pergunta capciosa, Silvio Santos (1930-2024) costumava encerrar o programa “Namoro na TV”, criado na década de 1980, com trechos que volta e meia viralizam nas redes. Apesar dos mais de 40 anos que nos separam de sua estreia, com uma enxurrada de novos programas focados em relações amorosas pelo caminho, parece que pouca coisa mudou.
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Seja em realities com fortes toques de ficção, sempre em nome do entretenimento, seja na vida real, parece que temos um tempo limitado para decidir como queremos — ou mesmo se queremos — seguir com uma relação. A infinidade de apps voltados a encontrar um par perfeito reforça essa pressão quase corporativa por resultados na paquera, com a necessidade de tomar decisões automática sobre quem você quer ou não conhecer e se pretende continuar o papo, sem falar nas constantes reclamações sobre conversas curtas e superficiais mesmo após o desejado match.
Isso apesar de estudos já demonstrarem que a maioria dos relacionamentos amorosos começa como uma amizade mais duradoura, e não uma curtida de perfil. Até na ficção, o subgênero romântico “friends to lovers” — que, como o nome já indica, trata de amigos que passam a sentir algo mais um pelo outro — se tornou um dos mais populares entre o público. Mais recentemente, os próprios apps de relacionamento, como o Bumble, na tentativa de lidar com uma crise de popularidade, criaram funcionalidades apenas para quem quer buscar novos amigos.
Mas, quando ficamos tão focados em encontrar alguém para dividir momentos românticos ou descobrir a tal cara metade, será que também estamos abertos a fazer amigos ao longo do caminho? O corretor Júlio Martino, 28, confessa que não estava. Mas vem tentando mudar.
“Comecei a cansar da vida de Tinder. Nos últimos tempos já não tenho paciência nem para mandar e responder mensagem”, conta. Embora não tenha deixado definitivamente o aplicativo, Martino diz que vem dando prioridade a encontros com amigos, que permitem que conheça mais gente cara a cara. Ele afirma que até vê possibilidades de desenvolvimento romântico com alguns novos conhecidos, mas não se preocupa muito com isso no momento. “Estou achando até melhor ficar mais tranquilo.”
Focar esforços exclusivamente na busca por um relacionamento amoroso “pode gerar expectativas irrealistas e um sentimento de insatisfação”, ainda mais se os resultados não forem os esperados, aponta o doutor em psicologia pela USP Thiago de Almeida, especialista em relacionamentos. “Essa centralização pode levar ao descuido de outras formas de relacionamento que desempenham papéis importantes no bem-estar emocional.”
A diversificação dos vínculos na nossa vida pode trazer benefícios sociais importantes, como maior resiliência emocional e sensação de pertencimento, considera o psicólogo. Ter amigos, por sinal, é um dos principais indicadores de felicidade ao longo da vida, acrescenta o psicólogo, escritor e professor aposentado da USP Ailton Amélio, autor do livro “O Mapa do Amor” (Gente, 2001).
“A amizade é importante para a regulação psicológica, para a saúde física e networking, é importantíssima para a socialização e o equilíbrio. Pessoas que têm amigos adoecem menos e se recuperam mais rápido”, afirma o especialista, que atende em seu consultório pessoas com dificuldade de iniciar e manter relacionamentos.
Um dos maiores estudos já feitos sobre o bem-estar na vida adulta, que durou 85 anos, faz coro às afirmações de Amélio. A pesquisa realizada em Harvard resume em cinco palavras o segredo da felicidade ao longo da vida: a qualidade das nossas relações. Portanto, manter laços saudáveis com seu amigos, familiares e a comunidade como um todo pode ter impacto direto para o futuro.
RivalidadeAmizade feminina
Mas tem como substituir um relacionamento amoroso por amizades? Ainda que essa pergunta seja mais complexa do que parece à primeira vista, mais gente vem fazendo esse exercício — em especial, as mulheres. Tanto que tendências como o “detox de homem” e o “dating burnout” (a exaustão de relacionamentos) vêm ficando mais e mais populares.
Foi em conversas com amigas que a psicanalista e documentarista Ingrid Gerolimich teve a ideia de escrever um livro sobre a crise do amor romântico e a relevância das amizades femininas. Em “Para Revolucionar o Amor” (Claraboia, 2024), ela faz uma defesa da relação entre amigas como um laço tão ou mais importante do que os relacionamentos amorosos entre as mulheres contemporâneas. E, para isso, parte de questionamentos pessoais e do trabalho de pensadoras como Audre Lorde, bell hooks e Suely Rolnik.
“É como se o relacionamento amoroso fosse uma finalidade existencial para a mulher estar completa. Se não for bem-sucedida na vida amorosa, essa existência é vista como fracassada até aquele momento”, aponta a autora. Embora seja representada sempre num lugar de acolhimento, segundo Gerolimich, a amizade pode ter um papel ainda maior para as mulheres: o de se reconhecer, se entender no mundo e descobrir que o amor pode estar em muitos outros lugares além daquele ideal de romantismo.
Outra das propostas da obra é quebrar a visão de que a rivalidade feminina vai sempre se impor à amizade, quando existem tantos exemplos contrários. “Há pesquisas que mostram que mulheres, quando ficam doentes, muitas vezes são abandonadas pelos homens ao longo do tratamento. E quem fica junto com elas são outras mulheres”, exemplifica a psicanalista.
“Eu tento mostrar amizade como algo estratégico para a gente repensar o modelo de sociedade super individualista, competitivo, em que a gente olha para o outro sempre com desconfiança. E a amizade feminina é o contrário disso.”
Próximas aventuras
Após o fim de um casamento de 18 anos e com dois filhos, a jornalista Carol Baggio, 48, se viu perdida, sem saber como recomeçar. “O dia a dia do relacionamento vai fechando a gente para algumas coisas. A gente acaba se dedicando mais a ele, principalmente porque envolve filhos”, conta.
Nesse processo, foram as amigas mais próximas que deram o suporte necessário para que conseguisse reconstruir a vida e se recolocar no mundo. “Elas me lembraram que o casamento fez parte da minha história, mas minha história não se limita ao casamento. Isso foi fundamental pra mim, porque tirou o peso do ‘fracasso’ da situação e me ajudou a ver que era apenas o fim de um ciclo”, lembra a jornalista. Hoje solteira, considera que as amizades ocupam o centro da sua vida.
Pouco após a separação, vieram outras mudanças. Ela viu seu perfil no Instagram, @umapuxaaoutra, voltado para mulheres 40+, viralizar do dia para a noite. Com posts sobre amizade e empreendedorismo feminino, a página, que há dois anos tinha cerca de 800 seguidores, hoje conta com mais de 144 mil.
“Serviu muito para eu ver que não estava sozinha, porque, quando você sai de um relacionamento muito longo, dá a sensação de que é só com você que aquilo está acontecendo”, diz Baggio, que considera exaustiva a pressão para procurar por alguém que te “complete”. “Isso desmerece nossa história e o que construímos. E uma relação saudável não completa, mas sim agrega, constrói junto.”
Gerolimich também considera que as mulheres acabam sofrendo uma pressão maior para largar as amizades após o casamento do que os homens, que ainda conseguem manter grupos como a turma do futebol que sai para jogar toda semana. Por outro lado, eles costumam se abrir menos com os amigos do que as mulheres.
Para a psicanalista, a noção idealizada do amor que prevalece na sociedade, em que dependemos do outro para sermos felizes, está fadada à frustração — já que temos cada vez menos espaço para esse outro na nossa agenda corrida. “Aquela expressão, FOMO [Fear of Missing Out, o medo de estar perdendo algo importante] foi para o campo amoroso também. Para que vou me dedicar a uma outra pessoa se posso estar perdendo uma coisa melhor ali na frente? Então vou partir para a próxima aventura.”
Equilíbrio vital
O psicólogo Thiago de Almeida lembra que nem há tantas diferenças assim entre amor romântico e amizade. Para dar certo, ambos são relacionamentos que dependem de um forte vínculo emocional e intimidade. Os dois também envolvem confiança, apoio mútuo e uma conexão mais profunda.
“Uma amizade pode se transformar em amor quando, além da intimidade, elementos de paixão e compromisso emergem. Por sua vez, um amor pode se converter numa amizade duradoura quando a paixão diminui, mas os aspectos de intimidade e compromisso permanecem. Isso sugere que, longe de serem opostos, amizade e amor podem ser vistos como pontos em um continuum relacional”, reflete o especialista.
Portanto, se um guarda tantos aspectos do outro, por que uma busca amorosa não pode também estar aberta a outros tipos de relações? Afinal, amigos são até mais necessários e raros conforme uma pessoa envelhece. Pesquisas confirmam que, na idade adulta, cheia de obrigações e com uma gama reduzida de possibilidades de conhecer pessoas novas — tendência agravada após a pandemia —, fazer e até manter os amigos que você já tem se torna tarefa difícil.
E, apesar de hoje a internet ser o principal local de encontro para relações amorosas, o psicólogo Ailton Amélio confirma que o amor que começa de uma amizade cara a cara tem muito mais chance de ser longevo do que encontros ditados pelos algoritmos. Também admite que o início do namoro e o casamento acabam nos afastando de algumas pessoas e reduzindo nosso círculo social. Mas não deveria ser assim.
“As amizades oferecem um espaço único para a autoexpressão e suporte emocional, sem as demandas exclusivas de um relacionamento romântico”, reforça Almeida. “A ausência de amizades pode levar ao isolamento social, que é um preditor de saúde precária. Amizades não apenas complementam, mas fortalecem a base relacional necessária para uma vida emocionalmente equilibrada.”
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