Quem é dono das palavras? — Gama Revista
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Thiago Quadros

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Depoimento

Quem é dono das palavras?

Expressões da moda, termos que despertam paixões em uns e urticária em outros, academicismos. Um relato de quem trabalha para esmiuçar o que há por trás das palavras

Ligia Gonçalves Diniz 20 de Junho de 2021
Thiago Quadros

Quem é dono das palavras?

Expressões da moda, termos que despertam paixões em uns e urticária em outros, academicismos. Um relato de quem trabalha para esmiuçar o que há por trás das palavras

Ligia Gonçalves Diniz 20 de Junho de 2021

Quando estava escrevendo minha tese de doutorado, alguns anos atrás, comecei a ver, espalhados pela cidade, lambe-lambes trazendo a questão “O afeto te afeta?”. Eu ri, mas deveria ter ficado preocupada: aquilo claramente era sinal de que o termo – que eu havia escolhido como conceito central da minha pesquisa – estava fadado à desgraça.

“Afeto” é, na minha pouco confiável estatística, uma das palavras campeãs em capacidade de irritar acadêmicos, intelectuais e nem tanto, seja pelo uso exagerado, pela imprecisão no emprego, ou por certa camada de cafonice de que pode se revestir, ainda mais quando usada em expressões como “mobilização dos afetos”.

A importância da pesquisa acadêmica nas áreas das chamadas humanidades, se é que existe, pouco tem a ver com a aplicação imediata de uma ideia. Nossa vida profissional existe mesmo para complicar a vida de todo mundo, ou para mostrar que o cotidiano, quando visto de perto, é mais complicado do que parece. E, na universidade como na fila do pão, os maiores problemas emergem da complexidade da linguagem. Por isso, em um texto acadêmico, nos esfalfamos, ou deveríamos, para esmiuçar o que estamos dizendo. É nesse ponto que as ‘palavras’ se tornam ‘conceitos’, e nesse trajeto que viramos uns chatos.

Afinal, quem é dono das palavras? Quem conceitua os conceitos? Ninguém, na prática, e talvez todo mundo – potencialmente. O filósofo francês Gilles Deleuze escreveu, com Félix Guattari, que “os conceitos não nos esperam inteiramente feitos, como corpos celestes”, mas sim devem ser criados “e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam”. Não se trata, contudo, de um gesto de autoritarismo, mas da constatação de que a filosofia – e, por derivação, as humanidades – institui uma língua dentro das línguas, e, portanto, um sistema com sua lógica própria, que trata de problemas determinados.

A pesquisa acadêmica existe mesmo para complicar a vida de todo mundo, ou para mostrar que o cotidiano, quando visto de perto, é mais complicado do que parece

Existem muitos recursos empregados para renovarmos os sentidos das palavras, por meio dos quais atribuímos, às vezes, uma carga semântica complexa a um termo de uso cotidiano banal. Com isso, de repente uma palavra como ‘afeto’ se vê revestida de camadas que, a depender do contexto, podem deixá-la maçante sem contribuir para nenhum tipo de conversa.

Há muitos termos que despertam paixões; basta perguntar por aí. Eu perguntei. ‘Potência’, ‘narrativa’, ‘processo’, ‘espectro’, ‘inconsciente coletivo’ e até falsos inocentes como ‘discurso’, ‘contexto’ e ‘o contemporâneo’ (com artigo definido) podem nos dar urticária – ou caber como luvas no que queremos afirmar.

Alguns teóricos franceses do século 20 são grandes responsáveis pela profusão de palavras da moda, ou pela moda das palavras. Celebremos seu esmero em criar conceitos, mas reconheçamos que a coisa degringolou. O já citado Deleuze, por exemplo. Um dos conceitos centrais para a sensacional obra dele é o de ‘devir’ (no original, ‘devenir’), que remete à dor e à delícia de estarmos sempre nos tornando (assim mesmo, sem complemento). Agora basta dar um Google, e pronto: encontramos de editoras a spas, passando, é claro, por muitas clínicas de psicologia chamadas Devir.

Há muitos termos que podem nos dar urticária – ou caber como luvas no que queremos afirmar

Deleuze, como outros, também brincou de pegar termos emprestados de outras áreas. Um deles é ‘rizoma’ (rhizome), que toma a imagética da biologia para descrever processos epistemológicos intrincados. Agora imagine onde isso pode parar… Juro que acabei de encontrar, na internet, um artigo intitulado “O rizoma ‘gênero’: cartografia de três genealogias”! Outro clássico do abuso é ‘desconstrução’ e derivados. Não reclamarei aqui, porém, dos conceitos de Jacques Derrida, por temer pela minha segurança e a da minha família.

Do lado oposto ao dos conceitos de ocasião, temos as palavras que vêm atravessando milênios e sofrendo o impacto de uma longuíssima história, muitas vezes ignorada. Não quero proteger os direitos autorais de termos como ‘substância’, ‘essência’ ou o irritantíssimo ‘catarse’, mas sim criticar quem os emprega como meros enfeites. E, por falar em termos originários do grego antigo, o Estado brasileiro seria mais rico se decidisse tributar cada uso atrapalhado de ‘ontologia’.

O grego, claro, tem seu valor. Acho difícil dizer logos, pathos ou eros de outro modo. O mesmo vale para o alemão, essa língua maluca que já me salvou com duas versões para a palavra ‘experiência’ e umas setecentas para ‘representação’. (Neste ponto preciso, aliás, confessar que já cometi o tenebroso ‘representação-afeto’. Perdoem.) Aproveito para alertar que não se deve confundir ‘representação’ com ‘representatividade’, que é um monstro diferente e lembra outro risco que correm os conceitos: o deslizamento do rigor acadêmico – em si, uma quimera – para a algaravia da militância. Não se trata, é claro, de dar protagonismo a um ou outro, mas tenho apenas parte do lugar de fala para tratar desse assunto, e paro por aqui.

Também hesito em criticar novos modismos, como o onipresente ‘decolonialidade’ e seus derivados, mas não deixo de apontar o risco de esvaziamento de uma expressão originalmente tão fértil, já que do uso abusivo à ridicularização é um pulo. Tenho, por exemplo, um pacote de figurinhas de Whatsapp com frases que brincam com as falas de uma ex-participante do Big Brother. Exemplos ótimos: “Você está ressignificando inverdades”, e “Você está transversalizando as palavras”. O que essas acusações querem dizer? Qualquer coisa – e nada.

Hesito em criticar novos modismos, como o onipresente ‘decolonialidade’, mas não deixo de apontar o risco de esvaziamento de uma expressão originalmente tão fértil

Um último arriscado recurso usado no desenvolvimento de conceitos é justamente a criação de palavras. Contrações e inserções de parênteses e partículas podem ser legais ou péssimas. Belas ideias, horrorosas expressões nascem assim. O que dizer, por exemplo, de ‘escrevivência’?

Um colega reclamou, ainda, que não aguenta mais as políticas que brotam diariamente pela justaposição de prefixos: necro, geo, bio, zoo e até – acabo de ver – pneumopolítica! E conto, por fim, uma história de terror real: um professor, ao ler o título do projeto que eu iria apresentar na qualificação de doutorado, tascou um par de parênteses, transformando o termo ‘impossível’ em ‘(im)possível’, porque “se fosse mesmo impossível, eu não poderia estar fazendo”.

Então, peço aos não acadêmicos: nos mandem às favas quando lançarmos um ‘devir’, um ‘rizoma’, talvez até um ‘pathos’ na mesa do bar – ou ao exigirmos o ‘correto’ uso de ‘substância’ no restaurante a quilo. Mas nos aturem, por favor, quando não conseguirmos conter um chilique pelo uso indiscriminado de uma palavra que cuidamos tanto para definir.

Quando escrevo ‘afeto’, recupero uma conversa que vai longe. No século XVII, Baruch de Espinosa já criticava quem despreza os ‘affectus’ (a Ética é escrita em latim), e se esmerava em descrevê-los como “as afecções do Corpo pelas quais a potência de agir do próprio Corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou coibida”. Acompanhada de imagens de casais homossexuais, a pergunta “O afeto te afeta?” foi usada, com ironia e pertinência, para provocar os homofóbicos. Mas, sozinha, a questão é absurda: é claro que o afeto te afeta. O que define um afeto é a ação de afetar. Por favor, acreditem em mim, e no Baruch. Ou contem até dez, ou mil, até a raiva (que é, aliás, um afeto) passar.

Ligia Gonçalves Diniz é professora de literatura brasileira na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autora de “Imaginação como Presença: o corpo e seus afetos na experiência literária” (Editora da UFPR). Está atualmente fascinada com o conceito de virilidade e tem um pouco de medo de ser cancelada por isso.