1
ReportagemLinguagem neutra: onde estamos?
Uso de formas mais inclusivas da língua, com diferentes possibilidades de marcação de gênero, pode ter impactos sociais, mas ainda está restrito à internet e enfrenta críticas e resistência
- @gamarevista
- cultura
- gênero
- lingua
Uso de formas mais inclusivas da língua, com diferentes possibilidades de marcação de gênero, pode ter impactos sociais, mas ainda está restrito à internet e enfrenta críticas e resistência
Se você está lendo este texto, provavelmente habita a internet — e se você habita a internet, também é muito provável que já tenha ouvido falar de linguagem neutra. Ou, melhor, que já tenha lido algum texto escrito nessa modalidade da língua portuguesa. As também chamadas de linguagens não binárias ou neolinguagens são formas baseadas em modificações na flexão de gênero de algumas palavras na tentativa de conferir à língua uma manifestação mais inclusiva, representando mulheres, homens e pessoas que não se identificam dentro desse espectro binário e cisnormativo de gênero.
O debate, que divide linguistas e ativistas e perturba alas conservadoras, ganhou mais fôlego no Brasil nos últimos anos. Quando celebridades como Demi Lovato e Bábara Paz se declaram como não binárias e casos como o do uso do termo “Alunx” pelo tradicional colégio carioca Pedro II e vídeos como o do ativista Rosa Laura viralizam, a questão fura a bolha dos movimentos feminista e LGBTQI+ e ocupa espaços mais amplos. Tão amplos a ponto de incomodar deputados aliados do presidente Jair Bolsonaro: pelo menos quatro projetos para proibir a utilização da linguagem neutra no país já foram apresentados ao Congresso Nacional.
Apesar de a força do movimento parecer recente, demandas de grupos minorizados por uma linguagem mais inclusiva têm séculos de história. “O primeiro registro é da Revolução Francesa, quando é publicada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, conta Rodrigo Borba, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador das relações entre a linguística e as teorias queer e feminista. “Uma das revolucionárias, que teve um papel importante, publicou dois anos depois uma Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, justamente reclamando do fato de que em francês, assim como em português, se usa o masculino genérico.”
A noção de masculino genérico, presente em línguas latinas como português, espanhol, italiano e francês, é o que nos faz recorrer à concordância gramatical no masculino para “expressarmos algo que se refere a um grupo de pessoas cujo sexo se desconhece ou a um grupo formado por homens e mulheres”, explica Vivian Cintra, mestra em Linguística pela Universidade de São Paulo (USP). Foi o questionamento dessa característica gramatical que deu robustez às manifestações por uma linguagem inclusiva em países como os EUA, a Inglaterra e a França, sobretudo na década de 1970, com o fortalecimento dos movimentos feministas.
Na França, a principal demanda — e que ainda gera debate — era pela feminização das profissões. No Brasil, foi apenas em 2012 que a presidenta Dilma Rousseff sancionou uma lei obrigando a flexão de gênero, marcando o feminino, em diplomas. Por aqui, explica Borba, movimentos semelhantes são mais tardios. “No final da década de 1980 e no começo da década de 1990, as feministas começaram a usar formas coordenadas [do tipo: professoras e professores, alunas e alunos], especialmente no âmbito acadêmico”, diz. Conforme outras minorias foram ganhando visibilidade, outras maneiras de expressão surgiram, como o uso do @, do x e, mais recentemente, do e.
Então, a língua é sexista?
Desde o início dos anos 2000, diferentes sistemas de linguagem não binária (veja mais abaixo) começaram a se espalhar pela internet, ganhando adesão principalmente nas redes sociais. “Quando avançamos como sociedade em uma percepção de que não existem só dois gêneros sociais e de que há uma associação muito forte entre os gêneros sociais e os gramaticais, a gente acaba percebendo que a linguagem também se pautou em uma visão binária de que só existem homens e mulheres, e o que não se enquadra nisso é inominável”, avalia Brune Medeiros, licenciada em Letras pela UFRJ e ativista trans.
Embora movimentos por um uso inclusivo das línguas tenham origens sociopolíticas, com grupos historicamente excluídos projetando na linguagem a falta de representação na sociedade, não é possível atestar facilmente, a partir disso, que português ou francês sejam idiomas sexistas. “É a mesma coisa que perguntar quem veio primeiro, o ovo ou a galinha. A língua é machista? Eu diria que sim, mas há linguistas que diriam que não. Parto da posição de considerar a língua uma parte da sociedade em que ela está: se vivemos em uma sociedade patriarcal, a língua reflete isso”, opina Borba.
A língua é uma parte da sociedade em que ela está: se vivemos em uma sociedade patriarcal, a língua reflete isso
Cintra concorda que não é possível separar o âmbito linguístico do político: a demanda pela demarcação da diversidade na linguagem, para ela, é um dos jeitos, mas não o único, de questionar as estruturas sociais e buscar por soluções mais igualitárias. No entanto, a pesquisadora não acredita que as línguas, por si só, sejam sexistas. “A língua, nesse caso, é como se fosse o sintoma de uma causa mais profunda — o que não significa que não podemos agir sobre esse sintoma também; nós podemos, mas seu agente causador continuará lá, manifestando-se de outros jeitos”, diz.
De todo modo, os usos linguísticos têm, sim, impactos na vida social. A associação psicolinguística entre o gênero gramatical e o social, por exemplo, nos faz projetar em palavras flexionadas no masculino referentes masculinos. “Não é a língua que nos usa: nós é que usamos a língua, ou seja, falantes projetam sentidos socialmente. Há evidências suficientes de que quando lemos um texto totalmente escrito no masculino genérico projetamos a figura de um homem”, explica Borba. Os efeitos são práticos: ele cita pesquisas que analisaram anúncios de emprego e concluíram que, quando os textos são escritos no masculino genérico, as empresas atraem menos candidatas mulheres. “E as pessoas não binárias, então? Não é uma coisa banal”, questiona o pesquisador.
Para pessoas trans ou não binárias, ainda mais estigmatizadas, o uso das neolinguagens pode fazer bastante diferença, criando acolhimento. “Se mudamos nossa forma de nos comunicar e de pensar a linguagem, automaticamente tornamos a sociedade mais propícia para pessoas que não se adequam à lógica estabelecida antes e criamos ambientes mais seguros para elas. Isso é muito importante”, observa Medeiros.
Para onde vamos com a linguagem neutra?
Diante de todas essas questões, a mobilização pelo uso da linguagem inclusiva tem cruzado as fronteiras da internet, seu terreno fértil, plantando iniciativas em espaços mais institucionais — e linguisticamente prestigiosos — em diversos países. Em Portugal, expressões neutras e inclusivas devem ser usadas em certidões e registros civis, por recomendação do governo, desde o ano passado. Em nossos vizinhos de língua espanhola, como Argentina e Chile, o uso do “e” para marcar a neutralidade de gênero (como em “amigues”) se espalha a despeito do desprezo da Real Academia Espanhola (RAE), instituição que zela pela normatização do idioma no mundo e considera o fenômeno uma transgressão. A Faculdade de Ciências Sociais de Buenos Aires, por exemplo, aprovou o uso da linguagem neutra institucionalmente em 2019.
Na contramão da RAE, outras entidades linguísticas abraçaram a inclusão nos últimos anos. A academia sueca adotou o gênero neutro em seu dicionário oficial em 2015, e o dicionário alemão Duden reescreveu suas entradas retirando o masculino genérico de nomes de profissões. Em inglês, tanto o britânico Oxford Dictionary quanto a editora norte-americana Merriam-Webster reconhecem o pronome “they”, no singular, como a maneira de fazer referência a pessoas não binárias — a palavra, inclusive, foi eleita o verbete do ano em 2019.
Se mudamos nossa forma de nos comunicar e de pensar a linguagem, automaticamente tornamos a sociedade mais propícia para pessoas que não se adequam à lógica estabelecida
Iniciativas de institucionalização como essas parecem mais distantes do cenário brasileiro, onde as formas mais inclusivas da língua ainda estão bastante restritas à internet, encontram resistência do conservadorismo político — a exemplo dos projetos de proibição de seu uso por lei — e sofrem toda sorte de críticas. Ainda que a visibilidade dada à neutralização de gênero pelas redes sociais a tenha levado para fora do Twitter e do Instagram, chegando a textos publicitários e até a artigos acadêmicos, sua circulação ainda é limitada. “Mesmo pessoas trans e não binárias que utilizam a linguagem neutra em textos nas redes sociais podem utilizá-la na fala apenas em contextos mais específicos e confortáveis”, observa Rodrigo Borba.
O professor explica que não se trata de um processo de mudança linguística (do tipo da que gradualmente transformou “vossa mercê” em “você”), mas de um fenômeno de coexistência. “Não vejo que daqui a 20 ou 100 anos vamos deixar de usar a flexão de gênero, mas estamos acrescentando outras formas no nosso repertório. É uma coexistência sistemática em que essas expressões são usadas em determinados contextos com determinados propósitos.” Até porque há muita diversidade mesmo entre as variedades consideradas inclusivas, neutras ou não binárias. “Não existe uma norma unificada ou um único manual de neutralização da língua”, explica Brune Medeiros. “Para podermos institucionalizar precisaríamos atingir um certo grau de formalização.”
Parece não ser o caso, pelo menos por enquanto, de a linguagem não binária se configurar como uma variedade corrente da língua portuguesa, falada na rua ou no transporte público. Estamos, na verdade, testemunhando o processo ao vivo, o que dificulta previsões. “Como toda inovação linguística, a compreensão e a internalização por falantes de diferentes grupos sociais pode ser muito variada, ainda mais se considerarmos que em alguns grupos as inovações advindas da internet (como é o caso das não binárias) penetram-se mais fácil e rapidamente do que em outros”, avalia Vivian Cintra. Entre jovens, por exemplo, a adesão tende a ser maior e mais natural. “A naturalização é muito maior para adolescentes do que para pessoas que passaram a vida inteira ouvindo um certo tipo de norma e já cristalizaram esse conhecimento”, diz Medeiros.
No entanto, se você habita a internet, seja qual for sua idade, provavelmente já entrou em contato com com registros textuais em linguagem inclusiva — até mesmo sem se dar conta disso. Este texto, a propósito, é um deles.
Como utilizar uma linguagem mais inclusiva
Há diferentes estratégias de neutralização da língua e cada uma carrega seu próprio significado simbólico e sociopolítico
Evite o uso do masculino genérico
Tente encontrar maneiras de substituir o masculino genérico ao fazer referência a grupos que incluem pessoas de diferentes gêneros. “Quando usamos expressões que designam coletivos, como ‘corpo docente’ em vez de ‘professores’ estamos adotando uma linguagem mais neutra, em relação ao gênero, por meio de recursos integrantes da língua”, explica Cintra. Ela sugere os exemplos do “Manual Para o Uso Não Sexista da Linguagem”, elaborado pelo governo do Rio Grande do Sul.
Faça concordância em formas coordenadas
Expressões coordenadas também podem ajudar a driblar o masculino genérico. Dizer “Boa tarde a todas, todos e todes” é um jeito de incluir mulheres, homens e pessoas não binárias. “Mas isso pode tornar o texto um pouco cansativo, se for muito longo”, alerta Medeiros.
Entenda os sistemas de flexão não binários
Afinal, eles foram criados “justamente para suprir uma demanda e criar estranheza, porque estamos evidenciando que a língua binária não abarca tudo”, como defende Medeiros. Há diferentes sistemas pronominais e de flexão de gênero neutro em uso no português atualmente — este artigo reúne alguns deles.
Não tenha medo de perguntar
Na dúvida, pergunte para as pessoas como elas preferem ser chamadas. “A melhor estratégia para utilizar a linguagem neutra é perguntar: não custa nada, não vai ser ofensivo e pode evitar constrangimentos”, avalia Rodrigo Borba. “Nos EUA, em contextos acadêmicos ou de movimentos sociais, é comum perguntar não só o nome, mas o pronome pelo qual a pessoa se identifica.”
Mariana Payno é jornalista e linguista, graduada em ambas as áreas pela Universidade de São Paulo (USP). Como jornalista, escreve principalmente sobre comportamento e cultura. Mestranda em linguística, pesquisa os efeitos do contato entre o português brasileiro e as línguas indígenas, mas se interessa por muitos outros fenômenos.