Ruth Rocha fala sobre o poder das histórias na relação entre avós e netos — Gama Revista
O que você aprendeu com seus avós?
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Conversas

Ruth Rocha: "Aos meus netos, ensinei com o convívio, o carinho e com pouca chateação"

Um dos maiores nomes da literatura infantil brasileira fala sobre a relação com os avós, que cultivaram seu amor pelas histórias, e os netos, que viraram seus personagens

Isabelle Moreira Lima 23 de Julho de 2023

Ruth Rocha: “Aos meus netos, ensinei com o convívio, o carinho e com pouca chateação”

Isabelle Moreira Lima 23 de Julho de 2023
Divulgação

Um dos maiores nomes da literatura infantil brasileira fala sobre a relação com os avós, que cultivaram seu amor pelas histórias, e os netos, que viraram seus personagens

Da mãe, a escritora Ruth Rocha ouviu as primeiras histórias de que lembra, anedotas de família. Mas foi o avô Ioiô que incendiou sua cabeça com os contos mais maravilhosos e impressionantes dos grandes autores da literatura infantil. Pela narração engenhosa do avô baiano, os contos dos irmãos Grimm, de Hans Christian Andersen, de Charles Perrault, eram adaptados ao universo popular brasileiro.

Formada em Ciências Políticas e Sociais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Rocha foi orientadora educacional do Colégio Rio Branco e escrevia sobre educação para a revista Claudia. Até que recebeu o desafio de uma amiga, que a trancou em uma sala e disse que ela só sairia dali com uma história pronta. Foi assim que saiu a primeira, a dos borboletas “Romeu e Julieta”, que têm cores diferentes e vivem de forma monocromática, mas querem sair por aí buscando cenários mais coloridos.

Em 1976, publicou seu primeiro livro, “Palavras, Muitas Palavras” (Salamandra, 2013), e desde então não parou mais, hoje sua obra já contempla mais de 250 títulos. Neste mês, vê a primeira adaptação de suas histórias para a TV, a do livro “Marcelo, Marmelo, Martelo” (Salamandra, 2011), o maior sucesso de sua carreira. No livro, um menino curioso e inventivo troca o nome das coisas: leite vira suco de vaca, colher vira mexedor, o cachorro é o latildo. Assim como Marcelo, Rocha criou outros personagens emblemáticos como o reizinho mandão, o camaleão que vivia mudando de cor, o ventinho que é amigo das crianças e espanta a chuva.

As primeiras histórias foram escritas com a filha Mariana na cabeça. Depois, foram os netos que viraram personagens: há um série de livrinhos em que os irmãos Pedro e Miguel são dois tatuzinhos — o livro foi originalmente ilustrados por Eduardo Rocha, que foi casado com Ruth durante 56 anos. E nem a avó dela escapou dessa. Em “A Cinderela das Bonecas” (Salamandra, 2011), vovó Neném é o maior sucesso da criançada, porque faz doces, inventa brincadeiras e conta histórias incríveis, misturando todos os personagens de diferentes histórias.

Aos 92 anos, na conversa que você lê abaixo, Ruth Rocha falou sobre o poder das histórias na relação entre avós e netos, sobre o que aprendeu com seus avós e ensinou aos seus netos — com amor e “pouca chateação” — e o que significa para ela ser avó: “Ser avó é uma coisa maravilhosa; é ser mãe com açúcar. Mas eu ser a avó dos meus netos foi maravilhoso”.

Toda história infantil conta um modo de viver. Ao ler, a criança aprende o modo de viver e de olhar a vida também

  • G |Seu avô Ioiô foi o primeiro a lhe contar os contos clássicos. Depois, a senhora teve dois netos que viraram até personagens das suas histórias. Qual a importância dos livros e das histórias para a relação entre avós e netos?

    Ruth Rocha |

    Tem muita coisa que é importante na relação entre avós e netos. As histórias são importantes, mas não são a coisa mais fundamental, tanto que tem muita avó que não sabe contar histórias. A minha relação com meu avô foi muito enriquecida pelas histórias que ele contava. Ele contava histórias muito bem, ele editava as histórias, sabia contar. Então, foi uma felicidade ter aquele avô que me contava histórias, eu gostava muito. Com meus netos, também tenho uma relação muito boa. Acredito até que a minha relação com eles é derivada da minha relação com a minha filha, com quem tenho uma relação muito boa. Foi sempre muito gostoso. Eu tenho uma coisa que eu não me meto na vida de ninguém. Sempre me dei muito bem com a minha filha e com os dois genros que ela me deu. É muito chato a avó que quer educar os filhos dos outros. Eu não acho que minha filha e meu genro tenham educado meus netos de maneira diferente do que eu faria. Eles têm mais ou menos o mesmo jeito que eu. Meus netos gostam muito de mim e a nossa relação é maravilhosa. E eu conto histórias para eles há anos e anos, né? Essa relação é muito rica tanto nas histórias, como na convivência.

  • G |O que a senhora aprendeu com seus avós e o que gostou de ensinar a seus netos?

    RR |

    Eu tive quatro avós. A minha avó paterna morreu antes de eu nascer. Meu avô paterno era chato — e você pode falar isso porque meu pai já morreu e não vai ficar sabendo que eu falei que o pai dele era chato. Os meus avós maternos eram ótimos, agradáveis, divertidos. Eu tinha o vovô Ioiô e a vovó Neném. E eles eram muito bonzinhos. Eles moravam no Rio de Janeiro e eu morava em São Paulo, então a gente não se via tanto. Mas o contato era ótimo, meu avô contava histórias maravilhosas. A gente chateava ele, coitado, às vezes chegava a São Paulo cansado e queria dormir e a gente não deixava, fazia ele contar mais histórias. E ele contava! E minha avó me ensinava a cantar. Eu gostava muito de cantar e ela me ensinou. Aos meus netos, ensinei com o convívio, com as relações, com o carinho e com muita pouca chateação.

  • G |Criança fala muita coisa engraçada, frases maravilhosas. Seus personagens também. O quanto daquelas histórias saíram de coisas que você ouvia e catalogava? Ou acha que você conservou essa cabeça engenhosa de criança para usar nos livros?

    Ruth Rocha |

    Muita coisa saiu da vida mesmo. Eu tenho história, por exemplo, da minha sobrinha cuja mãe a colocava de castigo e ela ligava para a minha mãe e dizia “Vovó, minha mãe me colocou de castigo. Você é mãe dela, bota ela de castigo”. Tem várias coisas assim nas histórias, agora a cabeça da gente inventa também, e a gente aproveita.

  • G |Dizem que avó é mãe com açúcar, que fica com a parte boa da relação com as crianças, sem ter a obrigação de dar as broncas e ficar com a parte mais chata da educação. Alguns de seus livros tem ensinamentos claros, outros nem tanto. Como vê o papel da literatura infantil na educação para a vida, e não na educação formal da escola?

    RR |

    Toda história infantil conta um modo de viver. Ao ler, a criança aprende o modo de viver e de olhar a vida também. E é isso que a gente põe nas histórias, não a moral, nem ensinamentos rígidos. A gente põe um modo de ver a vida.

  • G |O que acha da suposta obrigatoriedade de lições de moral em livros infantis?

    RR |

    A obrigatoriedade é que é chata.

A esperança é o sentimento mais útil que a gente tem. Quero manter minhas crianças com esperança

  • G |A senhora se inspirou na sua filha nas suas primeiras histórias e depois retratou seus netos em uma coleção. Pode falar um pouco sobre como foi escrever esses livros?

    RR |

    Foi divertidíssimo. Tem coisa ali que é de criança mesmo. Tem um dos livros que eu conto um fato que aconteceu com meu irmão e atribuo a meus netos. É a história de um menino que saía de casa e os outros meninos batiam nele, roubavam as coisas que ele comprava. Até que ele começou a fazer aula de jiu-jitsu. Foi aprendendo, aprendendo, e um dia saiu e o menino quis roubar a Coca-Cola dele. Ele deu um tombo no menino, correu para casa, contou para o pai: “Eu dei um tombo no menino”. E todo mundo: “Muito bem, é isso mesmo! Fez muito bem”. “Ah, mas eu fiquei com tanta pena do menino.” Isso foi verdade e outras coisas ali eu invento pensando nas crianças. Que atitude elas têm, por exemplo, com o irmão menor. Geralmente, o irmão menor atrapalha e elas ficam mal humoradas, não querem levar para as farras, não querem nada. Eu fui muito bem tratada pela minha irmã mais velha, ela me levava para todo canto. Então, eu fiz uma história contando que o menino atrapalhava o irmão mais velho, mas quando falaram mal do mais novo ele ficou danado, porque era o irmãozinho dele.

  • G |A senhora escreveu alguns dos maiores clássicos da literatura infantil do Brasil, adaptou clássicos da literatura mundial para crianças. O que acha que um bom livro infantil tem que ter?

    RR |

    Ah, meu Deus, é muito difícil responder isso porque, por exemplo, eu tenho um livro que se chama “Marcelo, Marmelo, Martelo”, que é o que fez mais sucesso, ele tem 50 anos e ainda é o livro que eu mais vendo. Então, me perguntam: qual é o segredo desse livro? Eu sei lá; se eu soubesse, eu fazia outro. A gente não sabe muito. Eu acho que eu tenho uma atitude muito otimista diante da vida e que a gente não deve escrever coisa triste para criança, porque a esperança é o sentimento mais útil que a gente tem. Eu quero manter minhas crianças com esperança. Então eu escrevo e sou otimista. Eu acho que eu sou mais ou menos bem humorada também, sou engraçada. Eu gosto de criança e acho que isso transparece no que eu escrevo. Por isso que eu escrevi esses livros todos.

  • G |O “Marcelo Marmelo Martelo” justamente foi seu primeiro livro adaptado para a TV. Qual foi a sua participação na adaptação e o que achou do resultado?

    RR |

    Foi meu primeiro livro adaptado para TV, mas tive outros adaptados para teatro. Dessa vez, eu li as primeiras adaptações e aprovei. Achei que fizeram uma boa adaptação. Eu assisti a um ensaio e depois à filmagem e gostei muito, achei os personagens muito interessantes, todos bonitinhos, todos simpáticos. Agora estou esperando para ver na TV.

  • G |Em mais de 50 anos dedicados à literatura, a senhora tem mais de 200 títulos publicados. Que conselhos dá para quem está começando a ler e a escrever agora?

    RR |

    Leia. Leia mais. Leia mais ainda. Leia, leia, leia.

Uma infância boa é uma base para a vida

  • G |Tem uma coisa interessante no gosto das crianças que são as músicas que colam, os livros que elas mais gostam. Para os adultos fica difícil identificar precisamente porque uma música ou livro vira algo muito adorado por uma geração. Você já descobriu o que agrada as crianças, o que deixa elas apaixonadas por um livro ou música?

    RR |

    Eu não descobri mesmo. Só posso dizer que, como eu sou otimista, eu falo de coisas alegres e acho que as crianças gostam.

  • G |E a senhora acha que teria produzido o que produziu se não tivesse tido uma filha e os netos? Teria sido capaz?

    RR |

    Não sei também dizer, é possível… Mas eles me fizeram muito feliz, sabe? Então eu acho que isso é importante para a gente produzir.

  • G |E como é possível chegar aos 92 anos de idade com uma vida bem vivida, tão produtiva e sempre tão conectada ao seu tempo?

    RR |

    Tive uma infância muito boa, pais maravilhosos.Tive aquele pai que não existe em livro de psicologia — livro de psicologia só conta sobre o pai ruim e a mãe ruim, pais que diminuem as meninas, isso eu não tive. Meu pai sempre foi democrático, era severo, sério, mas ele era justo e bom e ele gostava dos seus filhos todos. Eram pais maravilhosos. Uma infância boa é uma base para a vida. Eu tive também, por causa disso, ótimos irmãos. Eu tenho quatro irmãos e meu dou ainda muito bem com os quatro. Tenho ainda minha filha maravilhosa. Eu tive genros bons. O primeiro e o segundo genro, todos muito adoráveis, muito bons, muito amorosos. E os netos são umas flores. Meus netos são maravilhosos, maravilhosos. São rapazes, homens, um tem 25, outro tem 28. Bons, bons, simpáticos, bonitos, inteligentes, trabalhadores, são ótimos. Meus sobrinhos são ótimos. Quem tem uma família dessas… Ah, e eu ainda casei com um homem maravilhoso: eu casei com o amor da minha vida e eu era o amor da vida dele, o que é muito importante. Nós fomos muito felizes, nós nunca brigamos, fomos sempre amigos, sempre companheiros, sempre cúmplices, sempre chegados. Gostávamos de conversar, conversávamos, conversávamos, até ele morrer, conversávamos. Então, com uma família dessas, a gente só pode ser feliz.