Os dilemas dos avós que não querem apenas cuidar dos netos — Gama Revista
O que querem os avós?
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Isabela Durão

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Reportagem

Quem quer ser avô? Os dilemas de quem não quer apenas cuidar dos netos

Apesar dos benefícios, a pressão que impõe o trabalho de cuidar pode trazer efeitos negativos para os avós

Leonardo Neiva 21 de Julho de 2024

Quem quer ser avô? Os dilemas de quem não quer apenas cuidar dos netos

Leonardo Neiva 21 de Julho de 2024
Isabela Durão

Apesar dos benefícios, a pressão que impõe o trabalho de cuidar pode trazer efeitos negativos para os avós

Quem nunca ouviu aquele velho ditado que diz que avós são pais ou mães duas vezes? Perto da comemoração do Dia dos Avós, vale a pena fazer um exercício de reflexão e se perguntar qual imagem vem à mente quando você pensa num avô ou avó ideal. É bem provável que surja aquela pessoa fofa e carinhosa, sempre disposta a ajudar, pronta para acolher, proteger ou até superproteger os netos quando necessário — inclusive com tendência a fazer vista grossa a certas malcriações e oferecer a eles uma quantidade um tanto exagerada de doces sempre que os pais não estiverem por perto.

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O problema é que nem sempre essa imagem até um tanto caricata, que colou ao longo do tempo na figura dos avós, corresponde à realidade. Para começar, a maneira como cada um exerce esse papel depende de uma série de fatores, incluindo raça, gênero e classe social. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Ipsos entre a população britânica, por exemplo, aponta que 14% dos avós já tiveram que reduzir suas horas de trabalho ou até se demitir para tomar conta dos netos — tendência que acaba atingindo muito mais as avós (19%), no feminino, do que os avôs (8%).

Outro dado importante é que 40% dos avós cuidam dos netos para permitir que os pais trabalhem, enquanto 17% o fazem porque a família não consegue pagar uma creche. Embora ainda existam poucos estudos focados no tema no Brasil, algumas pesquisas já indicam que a tendência é bem semelhante também por aqui.

A gerontologista Thaís Araújo de Carvalho lembra que ser avô num país profundamente desigual como o nosso significa que esse papel é necessariamente atravessado por essas desigualdades. “Quanto mais baixo o poder econômico, menos liberdade aquela avó tem de tomar decisão, de dizer não”, afirma a comunicadora e mestra em gerontologia social. “Ela vai ficar sempre nesse papel refém do que a sociedade espera dela, do que a família espera dela.”

Quanto mais baixo o poder econômico, menos liberdade aquela avó tem de tomar decisão, de dizer não

Recentemente, estudiosos e veículos de mídia têm apontado com frequência para o fenômeno de avós que se veem pressionados a cuidar dos netos de forma quase integral, algo que pode interferir na individualidade e gerar até mesmo sintomas como estresse, ansiedade e exaustão.

Carvalho ainda chama atenção para o fato de que essa “avosidade” costuma ser muito mais ligada às mulheres, em parte porque, além de todos estarmos vivendo mais do que no passado, a expectativa de vida feminina é hoje maior que a dos homens. “E ela vai exercer esse papel de avó por muito mais tempo do que exercia há 30, 40 anos atrás”, aponta.

Outra razão é que o papel de cuidadora sempre esteve mais atrelado à maternidade. “O cuidar ainda é feminino. Isso pode estar mudando, mas vai tomar tempo”, afirma a psicanalista Junia de Vilhena, pesquisadora das dimensões psíquicas e sociais do envelhecimento. “Então, as pobres das mulheres estão aí nessa jornada quádrupla, porque já fizeram tudo como mães, e agora fazem como avós.”

Novas avós

“Sei que tem avós que, porque os pais estão trabalhando, acabam virando cuidadoras. Sou feliz em ser avó, mas sem ter essa obrigação”, declara a ex-secretária executiva Lúcia Lucchesi, 69, hoje aposentada. Se, no começo da jornada como avó, ela costumava ficar ao menos uma vez por semana com os netos, hoje essa rotina depende muito mais da disponibilidade de ambos os lados.

No momento em que conversa com a reportagem, Lucchesi acaba de chegar à praia com os dois netos, onde deve passar uma temporada aproveitando as férias das crianças. Entretanto, vive uma rotina completamente independente, que inclui saídas com amigas e cuidados com a beleza. Aproveitando a aposentadoria para viajar com mais frequência, ela já fez com que os pequenos compreendessem os limites e que há períodos em que não é possível visitar ou falar com a avó.

“Eles não ficam ligando, nem eu quando eles viajam. A gente manda fotos pelo WhatsApp e pronto”, afirma a aposentada “Mesmo com os filhos eu não tenho aquela coisa de ficar falando todo dia, contando o que eu fiz ou o que vou fazer.”

Diferente das amigas, Lucchesi nunca alimentou o desejo ou esperança específica de ser avó, evitando fazer pressão nos filhos para que isso acontecesse. Hoje conta que vive esse papel com tranquilidade. “Eles sabem que eu estou aqui. Se precisar, me chamam”, diz a avó. E, quando há necessidade, ela também não tem problema nenhum em apoiar. “Aí eu me esforço para atender. Ah, a empregada faltou, você pode ficar com eles? Eu adapto a minha rotina e ajudo.”

A vivência de Lucchesi integra uma mudança no cenário do envelhecimento contemporâneo, em que boa parte dos idosos levam uma vida mais independente e “não querem passar o resto das suas vidas numa segunda maternidade”, como afirma Vilhena. “Elas têm autodomínio, viajam, vão ao teatro, têm grupos de amigos. Claro que algumas ainda são, mas não estão mais presas àquela imagem da velhinha trancada em casa fazendo tricô.”

Segundo a psicanalista, porém, essa ainda é uma realidade restrita às classes média e mais abastadas. “As avós das classes populares sempre cuidaram e criaram os netos porque as mães não têm com quem deixar os filhos. Elas têm esse papel de uma relevância imensa, e nisso eu não vejo muita mudança”, diz a especialista. Portanto, muitas assumem responsabilidades cotidianas que acabam limitando seu cotidiano e a possibilidade de novas vivências na terceira idade.

O tal do diálogo

Muitas vezes a dificuldade nem é tanto identificar o problema, mas verbalizá-lo. Em especial num ambiente que costuma ser repleto de tabus, como o familiar. “Os diálogos podem ser difíceis em vários níveis, não só com relação a avós”, afirma Vilhena. “Tem famílias com dificuldade de dialogar. E, se têm dificuldade de falar, elas vão ter dificuldade também de estabelecer limites.”

Para a gerontologista Thaís de Carvalho, embora sintam bastante angústia, as mulheres costumam ser mais abertas a conversar sobre assuntos delicados do que os homens dentro do seio familiar. “Tive um cliente que dizia que não gostava e não tinha vontade de ficar com os netos, mas não conseguia falar isso para a filha. E, o tempo todo em que desenvolvemos um trabalho com ele, ele não conseguiu se posicionar”, conta.

Tem famílias com dificuldade de dialogar. E, se têm dificuldade de falar, elas vão ter dificuldade também de estabelecer limites

Essas conversas, inclusive, podem ser importantes para ambas as vias. Até porque, em alguns casos, há também uma preocupação dos pais sobre a educação e a construção de autoridade, ainda mais se são os avós que passam boa parte do tempo tomando conta dos netos, como aponta Vilhena.

“Eu sou da teoria de que, na casa de avó, deveria poder fazer tudo sem grandes danos. Mas essa obrigação, aquele perrengue todo de criar filho, isso é dos pais. A autoridade tem que ser exercida pelos pais, e não pelos avós”, declara a especialista.

É o que também aponta o psicanalista e educador parental Thiago Queiroz, que comanda o canal do YouTube Paizinho, Virgula!. Para ele, o papel dos pais e dos avós deve ser bem definido desde o início, até para que as responsabilidades e ações de cada um não se sobreponham, confundindo até a própria criança. “Idealmente, cada um deveria saber o seu espaço e sua função.”

Questões mal resolvidas de maternidade ou paternidade também podem levar avós a projetarem sobre seus filhos algumas de suas inseguranças quando estes se tornam pais, segundo o psicanalista. “Ao longo dos anos, recebi milhares de pedidos de ajuda e reclamações de mães e pais falando que a avó ou avô do meu filho fica metendo o bedelho, não respeita as minhas decisões”, conta. Para ambos os casos, ele defende que deve haver segurança para comunicar esses problemas, sempre de forma empática e não violenta.

“Ninguém consegue obrigar um avô ou avó a cuidar de um neto, isso é fantasioso, mas muitos se veem sob uma pressão muito grande dos filhos”, considera Queiroz. “É preciso o diálogo para que eles consigam comunicar que não era isso que queriam fazer de suas vidas, que queriam viver suas aposentadorias, poder viajar… E aí, é claro, os pais vão ter que dar conta porque, afinal, a responsabilidade de cuidado primário é deles.”

Avós que vivem mais

Apesar de haver exceções, a jornalista e pesquisadora do envelhecimento Tony Bernstein considera que, num país de raízes afetivas como o Brasil, a grande maioria dos avôs e avós costumam estar felizes por ter acesso aos netos. “Mesmo curtindo a vida, fazendo seus cursos, avós adoram dedicar um tempo para estar com os netos e interagir com eles”, afirma a fundadora do Portal Terceira Idade, site dedicado ao cotidiano dos idosos no Brasil.

Até por isso, nas situações em que os avós acabam não tendo alternativas a não ser cuidar dos netos, Bernstein vê as pessoas assumindo esse papel até com uma certa tranquilidade. “Claro que eles querem ter seu tempo, muitos estão ativos, deixam seu negócios, saem, viajam, mas também querem se aproximar dos netos, curtir de uma maneira diferente, aprender com eles e até fazer coisas que não conseguiram com filhos, porque não tiveram tempo ou maturidade na época”, pontua a jornalista.

Claro que eles querem ter seu tempo, mas também querem se aproximar dos netos, curtir de uma maneira diferente, fazer coisas que não conseguiram com filhos

Nos casos em que há uma forçada de barra por parte dos filhos, colocando os avós de forma excessiva nesse lugar de cuidado, Bernstein recomenda bom senso de ambos os lados: primeiro, os filhos entenderem que os pais, muitas vezes idosos, já não podem tudo e talvez não tenham condições estar tanto tempo com os netos; e segundo, os próprios avós devem impor suas vontades e sua individualidade com mais firmeza, mesmo que para isso seja preciso recorrer à terapia ou a um grupo de apoio.

Um estudo feito por pesquisadores alemães aponta que essa convivência saudável com os netos pode reduzir a mortalidade dos avós, em alguns casos prolongando suas vidas em até dez anos. Ou seja, a relação pode trazer excelentes frutos para todos. Porém, vale ressaltar: na pesquisa, foram considerados apenas avós que não eram os principais responsáveis e cuidadores de seus netos.

“Então, pode ser uma coisa até que te preenche”, reflete Vilhena. “Por outro lado, você não pode deixar de viver o final da sua vida, deixar de fazer outras coisas só para cuidar de criança. É muito gracinha, mas não o tempo todo.”