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ReportagemNegra Jhô: "Trancistas são mestres da cultura ancestral"
Uma das mais importantes profissionais de Salvador lembra que trancistas são mais do que cabeleireiras. “Modelar o cabelo crespo é uma prática de cuidado que aponta diretamente para os significados da beleza negra”
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Negra Jhô: “Trancistas são mestres da cultura ancestral”
Uma das mais importantes profissionais de Salvador lembra que trancistas são mais do que cabeleireiras. “Modelar o cabelo crespo é uma prática de cuidado que aponta diretamente para os significados da beleza negra”
No quintal da casa de infância, Negra Jhô colocava as irmãs e vizinhas sentadas nos tijolos para lhes trançar os cabelos, e assim ela foi, em suas palavras, “vivendo a magia da trança e criando”. Aos 63 anos, Iyadagan do Terreiro Ilê Asé Odé Lêssy, mulher negra, intelectual e multiartista baiana, ressalta que nunca tomou cursos para aprender o ofício, e desde cedo fez questão de fortalecer esses valores estéticos dentro de casa, antes mesmo de levá-los para o mundo. Nas suas palavras: “Empreender, antes de saber o que era empreendimento; valorizar a autoestima, antes de saber o que era autoestima“.
Nascida na cidade baiana de São Francisco do Conde, no Quilombo da Muribeca, Negra Jhô é uma das mais importantes trancistas de Salvador. Mulheres em sua maioria que não têm seu ofício reconhecido como profissão. Neste ano, uma ação organizado pela Mandata Coletiva Quilombo Periférico, composta por co-vereadores da cidade de São Paulo, reivindicou a inclusão da categoria de trancistas no MEI, como parte de uma mobilização pela “retomada do trabalho digno e decente”, explica a Gama Débora Dias, co-vereadora.
Essa ação envolve, também, uma discussão sobre parâmetros de trabalho relativos aos EPI’S (Equipamento de Proteção Individual), tempo adequado para aposentadoria e a própria aceleração na regulamentação dos produtos cosméticos utilizados no trançado. Em relação ao que poderíamos lembrar da proibição generalizada da Anvisa em fevereiro deste ano, em relação ao uso de pomadas capilares muito usadas para o trançado, em função de graves casos de lesões oculares. A medida se deu porque nem todas as pomadas do mercado são autorizadas e regularizadas pela Anvisa.
Negra Jhô em frente ao Studio Negra Jhô, no Pelourinho, que funciona no mesmo espaço do Instituto Kymundu, que trabalha para a valorização da estética e autoestima negra e do qual ela é fundadora Arquivo pessoal
Embora hoje o serviço das trancistas seja largamente oferecido pelas ruas do Pelourinho, em Salvador, Negra Jhô lembra que esse cenário era muito diferente quando chegou ali, em meados dos anos 1980. Seu pioneirismo, ela diz, merecia mais reconhecimento dos governantes e da própria comunidade. A demanda por valorização é algo que Negra Jhô estende para as demais profissionais. “Elas precisam poder acreditar em sua arte”, diz a Gama. A baiana traduz um sentimento compartilhado por outras profissionais, de que as trancistas são mais do que cabelereiras: “Modelam, criam e recriam no cabelo étnico, são mestres da cultura ancestral”.
Os ancestrais limparam o caminho para eu estar aqui, e eu estou limpando, lapidando e perfumando o caminho para que essa estética não pare por aqui
Ainda que Negra Jhô seja essa figura fortemente presente e representativa de Salvador e desse centro histórico que é o Pelourinho, a importância do seu legado não está apenas para a Bahia, mas para o mundo, como patrimônio histórico vivo. Negra Jhô tem as tranças como “gomos de correntes que a gente entrelaça e fortalece, fazendo arte nas cabeças”, diz. Numa gestualidade de poder, ela fala a Gama como as tranças transformam o rosto da mulher: “A gente já levanta [da cadeira] assim, ousada!”.
Potencializar a beleza desses cabelos crespos por meio dos diferentes penteados e desenhos que as tranças possibilitam conferem um valor político-cultural, ou ético-ancestral, para a profissão de trancista que, como explica Débora Dias, “preserva a tradição e os ensinamentos ancestrais da população negra”.
O trabalho da trancista como ato de valorização da estética negra e cuidado Arquivo pessoal
Segundo Negra Jhô, a complexidade desse trabalho se refere às dimensões subjetivas, estéticas e, até, sagradas, nele envolvidas: é necessário pedir agô (para as religiões de matriz africana, licença) antes de tocar a cabeça, porque o Orí (cabeça) é um lugar sagrado, explica. Essas mulheres não fazem apenas tranças, “elas querem saber como você está”, por isso, modelar o cabelo crespo é uma prática de cuidado que aponta diretamente para os significados da beleza negra, parte importante dos movimentos históricos de consciência negra.
Tratando-se de uma profissão majoritariamente de mulheres negras que prestam serviço para outras mulheres negras, Débora Dias fala sobre a importância das reivindicações da categoria, que passa pelo abaixo-assinado para a inclusão no MEI, hoje com mais de 5 mil assinaturas, conectado com outras iniciativas, como os Projetos de Leis de datas em homenagem a essas profissionais, além de uma política de patrimonialização do ofício, que funciona como um mecanismo de proteção contra a descaracterização desse trabalho.
Em São Paulo, o Projeto de Lei 643/22 que inclui no Calendário de Eventos da Cidade de São Paulo o Dia da Pessoa Trancista, foi sancionado em setembro deste ano. O dia escolhido é o 4 de junho, em homenagem a Maria da Penha do Nascimento, mulher negra trancista, que tem um importante papel na consolidação do movimento Black Power em São Paulo.
Negra Jhô, em Salvador, é uma referência importante dessa história pela valorização da profissão, e assim resume o seu legado: “Os ancestrais limparam o caminho para eu estar aqui, e eu estou limpando, lapidando e perfumando o caminho para que essa estética não pare por aqui. Para passar esse ofício com respeito”.
Gabriela Bacelar é doutoranda em Antropologia Social na USP e pesquisadora dos estudos étnico-raciais.
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