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ConversasGabrielle Lyon: "Não existem sedentários saudáveis. A inatividade é um estado de doença"
Autora do best-seller “A Revolução dos Músculos” propõe uma mudança radical de foco: do combate à obesidade para o incentivo ao ganho de massa muscular
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Gabrielle Lyon: “Não existem sedentários saudáveis. A inatividade é um estado de doença”
Autora do best-seller “A Revolução dos Músculos” propõe uma mudança radical de foco: do combate à obesidade para o incentivo ao ganho de massa muscular
Após concluir a faculdade de medicina e uma especialização em psiquiatria, a médica de família Gabrielle Lyon passou a integrar um laboratório de pesquisas sobre nutrição na Universidade de Washington. Foi ali que a norte-americana, especialista em ciência nutricional geriátrica, percebeu que havia um problema com os esforços da medicina relacionados à obesidade e ao diabetes até então. “Testemunhei a dor de pessoas que tentavam, sem sucesso, perder peso, e uma coisa não parava de me assombrar: apesar de todos os nossos conhecimentos científicos, por que ainda não sabemos como combater a obesidade?”, conta na introdução de seu livro “A Revolução dos Músculos” (Intrínseca, 2024).
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Uma das principais descobertas que fez no período foi que todos os pacientes que lutavam para perder peso, alguns com indícios iniciais de Alzheimer, tinham uma característica em comum: baixa massa muscular. “A obesidade é o que conseguimos enxergar, mas o problema é o músculo esquelético”, afirma Lyon a Gama sobre a revelação, que acabou mudando o foco de sua carreira e do próprio olhar que tem a respeito de garantir uma vida e um envelhecimento mais saudáveis.
Pesquisas recentes já apontam a importância da saúde muscular para ter uma velhice confortável e sadia, conectando a questão até mesmo a uma queda relevante na ocorrência de doenças neurodegenerativas como o próprio Alzheimer. Mas a abordagem de Lyon hoje é um pouco diferente. Para ela, que é mãe de duas crianças, a perda de massa muscular geralmente associada à velhice pode acontecer muito mais cedo, ainda na juventude, causada por um estilo de vida sedentário.

Foto de Jai Mayhew
“Doenças que costumamos atribuir à velhice são em parte responsáveis pelo que já está acontecendo com os jovens”, afirma em referência a um rol de patologias que podem afetar desde o cérebro até o coração e o tecido adiposo. Isso porque nossa musculatura, como maior órgão endócrino do corpo, é crucial para funções como a extração de nutrientes, a regulação do colesterol, o controle dos níveis de insulina e a ativação do sistema imune, entre outras. “Aliás, depois dessa conversa, você deveria fazer flexões”, ela reforça durante a entrevista, num tom nada humorístico.
Pensando em todos esses pontos, a médica não hesita em afirmar: ganhar massa muscular é ainda mais importante para a saúde do que perder peso. No entanto, não se trata de um processo simples. Ele engloba uma mudança profunda de hábitos de vida, como a alimentação e a qualidade do sono, que vão muito além de ir à academia algumas vezes por semana. No livro, a autora inclusive estabelece uma série de práticas necessárias para essa adaptação da rotina, que ela chama de Protocolo Lyon.
Na entrevista a seguir, a médica também aborda o impacto de remédios para emagrecimento, o momento certo para começar a se exercitar — spoiler: o mais cedo possível — e ainda cita uma vantagem dos brasileiros quando o assunto é ganhar massa muscular.
É mais importante criar músculos do que perder gordura. A perda de músculos é mais prejudicial em relação a doenças e à mortalidade geral
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G |Qual foi o momento em que você percebeu que era necessário mudar o foco do combate à obesidade para incentivar a saúde muscular?
Gabrielle Lyon |Em nossas carreiras, estamos preparados para pensar fora da caixa se formos orientados para soluções. Eu tinha uma bolsa na Universidade de Washington em ciências nutricionais e geriatria, e estava trabalhando em um estudo que analisava a composição corporal e a função cerebral. Estava muito interessada em atletismo e obviamente atuei com um dos maiores especialistas em proteínas do mundo [o professor Donald Layman]. Mas o que realmente me ajudou foi observar o cérebro de uma mulher que participou da pesquisa. Ela estava na casa dos 50 anos e tinha um cérebro com características iniciais de Alzheimer. Reconheci que falhamos com ela, que havia todo um sistema médico focado no sintoma, que era a obesidade, em vez da raiz do problema. Foi naquele momento que tudo mudou. Alguém precisava corrigir isso, então eu tive que fazê-lo.
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G |Hoje, algumas pesquisas já relacionam o desenvolvimento de massa muscular a uma redução das doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer. O que a ciência sabe sobre essa ligação?
GL |O músculo esquelético é o principal local de desregulação metabólica. Em repouso, os músculos são responsáveis por grande parte da oxidação de gordura. As doenças da sociedade ocidental, da nossa realidade industrial, são de estilo de vida: obesidade, diabetes tipo 2, Alzheimer, doenças cardiovasculares. Elas vêm de um metabolismo não saudável, da disfunção metabólica, glicemia e triglicérides elevados. A raiz disso começa no músculo esquelético. Então a patologia é diferente, seja no cérebro, no coração, no tecido adiposo, mas a causa é a mesma: não estamos adequando nossas demandas musculares à nossa dieta. Com o tempo, o músculo fica parecendo uma mala. Se você vai viajar por quatro dias e faz as malas para 14, esse músculo fica superlotado, distorcendo o metabolismo. Quando isso acontece, você cria no sistema uma inflamação de baixo grau, com níveis elevados de açúcar e insulina no sangue.
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G |Por que ignoramos por tanto tempo a importância dos músculos nesse processo?
GL |Já ouviu falar no efeito poste de luz? É sobre um cara bêbado que está procurando suas chaves às três da manhã. Um policial chega e o ajuda. Depois de 20 minutos, o policial diz: “As chaves não estão aqui”. Então o bêbado responde: “Sim, eu sei. Deixei elas caírem no parque, mas lá está muito escuro, então vim procurar aqui.” É essencialmente isso que fazemos em relação à obesidade. A obesidade é o que conseguimos enxergar, mas o problema é o músculo esquelético. Não existem pessoas sedentárias saudáveis. A inatividade em si é um estado de doença. É uma maneira prolixa de dizer que as doenças começam no músculo esquelético por meio da inatividade e de uma incompatibilidade da nutrição.
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G |Tem diferença entre o impulso para perder peso e para ganhar massa muscular?
GL |Queria que ganhar peso fosse difícil como ganhar dinheiro. Mas, na verdade, ganhar dinheiro é tão difícil quanto ganhar músculos, ao mesmo tempo em que é muito fácil acumular gordura. Somos configurados evolucionariamente para que o tecido muscular seja caro. Ele precisa ser conquistado, não pode ser comprado nem negociado. Você não consegue lipoaspirá-lo. É um tecido muito caro metabolicamente, que requer uma demanda. Isso torna o sistema orgânico incomum, dentro dele você pode ganhar e perder. Não acontece no fígado ou no coração. Mas é assim no músculo esquelético, que compõe 40% do seu peso corporal. É mais importante criar músculos do que perder gordura, e isso é evidente na literatura. A perda de músculos é mais prejudicial em relação a doenças e à mortalidade geral.
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G |Como chegar à velhice sem músculos saudáveis pode impactar a sua saúde nesse período da vida?
GL |É prejudicial não desenvolver massa muscular até quando você tem a idade da minha filha de cinco anos. Não é uma doença tardia. A sarcopenia é definida como perda de massa e função muscular na velhice, mas não só. Ela pode começar na juventude, por meio do comportamento sedentário. Isso é chocante, muda todo nosso paradigma de pensamento. Doenças que costumamos atribuir à velhice são em parte responsáveis pelo que já está acontecendo com os jovens. Você pode criar músculos aos 80 e 90 anos, mas isso requer uma intervenção e uma maneira diferente de fazer, motivo pelo qual escrevi o livro.
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G |Então nunca é tarde para começar?
GL |Só é tarde demais se você estiver morto. Se ainda estiver respirando, deve começar. Não importa se estiver numa cadeira de rodas. Não há nada mais importante para nossa saúde. Então, melhore, vá atrás e trabalhe seus músculos.
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G |Mas existe uma idade ideal para se preocupar com a saúde muscular? Uma criança pode ter algum prejuízo se começar a fazer musculação muito nova?
GL |Quando você é jovem, está construindo e estabelecendo a base para seus hábitos e tecidos corporais. Quanto mais saudável metabolicamente você for, melhor. Tenho um filho de quatro anos e uma de cinco. Eles são muito, muito ativos, levantam pesos, o que é chocante. A melhor coisa para eles é participar de uma ampla gama de atividades esportivas, para que tenham um desenvolvimento neurológico, tenham todos os tipos de desenvolvimento. Dizem que, aos 20, você está no ápice dos seus anos ósseos. Acredito que o mesmo vale para os músculos, mas eles são um pouco mais plásticos do que os ossos. É importante treinar resistência de dois a três dias por semana. Todo mundo deveria, meus filhos deveriam fazer isso. Quando você é jovem e tem mais tempo, se conseguir fazer cinco dias, é incrível. Quanto menos tempo você treina, mais precisa fazer movimentos de corpo inteiro. É importante pensar em coisas que se traduzam para a vida. Você nunca vai se arrepender de ser forte, de ser capaz de agachar, levantar peso. Aliás, depois dessa conversa, você deveria fazer flexões.
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G |E ganhar músculos envolve vários aspectos da vida, da alimentação à qualidade do sono. Quais os mais relevantes? É neles que se baseia o Protocolo Lyon, que você apresenta no livro?
GL |Quando pensamos sobre músculo esquelético, existem duas influências principais: exercício de resistência e intervenção dietética. E o equilíbrio entre os dois muda. Quando somos jovens, somos muito movidos anabolicamente. Você pode comer o que quiser e ainda vai ganhar músculos. Mas, conforme envelhece, passa a depender muito mais da nutrição e do treinamento de resistência. Então, a primeira coisa a fazer é reconhecer que a proteína é o macronutriente mais essencial, e não estou sendo tendenciosa. Seu corpo precisa transformar de 250 a 300 gramas de proteína por dia. Se você não tiver proteína suficiente na dieta, vai entrar em um deficit severo. Não tem como desenvolver e manter músculos sem esses aminoácidos. Não necessitamos de carboidratos nem de uma tonelada de gordura. Seu próprio corpo pode produzir carboidratos e ele recebe gordura suficiente. Muita gente pensa que essa proteína é toda para criar músculos, mas só cerca de cinco gramas servem para isso. Todos os outros 250 vão para o reparo e manutenção do tecido. Não é sobre crescer, mas sobre a necessidade do seu corpo se renovar quatro vezes ao ano. O Protocolo Lyon foi projetado para atender às necessidades musculares enquanto protege o metabolismo e garante que você não ganhe peso. Na verdade, você passa por uma recomposição corporal, pareando a ingestão de carboidratos e proteínas com as demandas do músculo esquelético.
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G |Muita gente tem inclusive recorrido a suplementos como creatina e whey para ingerir mais proteínas. É um desafio a mais também numa dieta vegetariana ou vegana?
GL |Há duas coisas a considerar: a ingestão geral de proteína e os nutrientes essenciais. Mas e quanto às coisas que são exclusivas de proteínas animais, como as vitaminas A, D, E, e quanto à colina e a B12? Você não consegue essas coisas em fontes vegetais. Como humanos, fomos projetados para comer plantas e animais. Brócolis não substitui um bife. Vocês sabem disso no Brasil, onde não há tantos veganos e vegetarianos. Com certeza é possível conseguir esses nutrientes, mas não é ideal. Fica mais fácil se você for vegetariano porque consome ovos e laticínios, que são fontes de proteína. Numa dieta vegana, é preciso ingerir maiores quantidades de proteína para cobrir esses aminoácidos. Mas é o ideal do ponto de vista do consumo de nutrientes? E quanto ao ferro?
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G |Muitas pessoas hoje recorrem a medicamentos para perder peso rapidamente, o que também pode levar à perda de massa muscular. Existem riscos? Qual é a melhor maneira de preservar os músculos no processo de perda de peso?
GL |Dietas ricas em proteínas e treinamento de resistência. Você não precisa perder músculos quando emagrece. As pessoas pensam que, quando você perde peso muito rápido, está perdendo massa muscular. Mas proteger seu corpo quando passa dos 40 anos é tudo. Com o uso de GLP-1 [presente no Ozempic], a obesidade em algum momento vai se tornar uma escolha. Já temos tratamento para a diabetes tipo 2 com uma taxa de 99% de sucesso. Então estamos adentrando um novo cenário. Isso é incomum, nunca estivemos no ponto em que estamos agora.
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G |Dá para dizer que, enquanto sociedade, hoje estamos mais preocupados em desenvolver uma boa forma física do que no passado?
GL |Eu acho que isso vai acontecer. Deve ser um processo lento, porque gostamos de ficar consertando o mesmo problema repetidas vezes. É o que temos tentado fazer com a epidemia de obesidade nos últimos 50 anos, e não chegamos muito longe. Então acho que vai haver uma transição. E sinto que esse é o meu papel. Minha contribuição é fazer as pessoas entenderem que o músculo é um sistema orgânico sofisticado. E, se eu puder fazer isso adequadamente, então posso ajudar a mudar o próprio sistema de saúde.
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G |O que é importante fazer para nos mantermos motivados nessa trajetória rumo à saúde muscular? O caminho muda de pessoa para pessoa?
GL |A motivação não é algo real. Você tem que definir um padrão de como executar as coisas. Não pode definir metas e simplesmente confiar na motivação. Precisa ter uma maneira de operar no mundo: treinar x dias por x tempo, e esse se torna o padrão. Existem princípios fundamentais básicos que todos nós temos. Uma pessoa pode ser vegana ou vegetariana e ainda obter proteína suficiente. Ela pode não gostar de agachar ou levantar peso, mas pode escolher entre várias outras opções que prefere. Há um milhão de maneiras diferentes de estimular os músculos, de montar uma dieta rica em proteínas, mas só uma de fazer isso de forma correta, que é confiar nos princípios fundamentais. É como escrever um livro. Você pode fazê-lo de um milhão de formas, mas no final todo livro precisa ser enviado para a gráfica para ser impresso.
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G |Como esses princípios se adequam à realidade de um país como o Brasil?
GL |Fico encantada que o Brasil tenha se interessado pelo meu trabalho. Com os padrões e hábitos alimentares de vocês, com a sua cultura, acho que poderiam realmente dominar essas práticas. São necessários apenas alguns pequenos ajustes no que vocês já fazem, e isso é incrível. Então quero encorajar os brasileiros a abrir os olhos para a importância dos músculos, porque vocês já são fitness, focados no corpo e em proteínas. Fico muito grata de estarem dispostos a me ouvir.

- A Revolução dos Músculos
- Gabrielle Lyon (trad. André Fontenelle, Bruno Fiuza, Renato Marques e Roberta Clapp)
- Intrínseca
- 416 páginas
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