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ReportagemComo o brasileiro pode doar mais?
Para alcançar mudanças sociais é preciso criar uma cultura da doação, não apenas agir pontualmente. Gama investiga como tornar a filantropia parte do nosso cotidiano e dos nossos valores
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Como o brasileiro pode doar mais?
Para alcançar mudanças sociais é preciso criar uma cultura da doação, não apenas agir pontualmente. Gama investiga como tornar a filantropia parte do nosso cotidiano e dos nossos valores
Não é apenas senso comum: há dados para comprovar a solidariedade do brasileiro. De acordo com o levantamento World Giving Index deste ano, o Brasil é o 18° país mais solidário do mundo, sendo que o indicador de “ajuda a um desconhecido” foi o que sofreu o aumento mais expressivo – subimos do 36° para o 11° lugar nos últimos 12 meses. Por outro lado, assistimos a uma queda das doações privadas no decorrer da pandemia, depois de um boom em abril de 2020, ponto alto da crise sanitária. Apesar dos mais ricos passarem a doar mais, classes mais baixas, que sempre participaram proporcionalmente mais das doações, não conseguiram contribuir por questões econômicas.
“Estamos vivendo um momento bem peculiar”, define Vanessa Henriques, gerente executiva do Instituto MOL, que produz conteúdo para conscientizar, engajar e inspirar doadores, além de conectar causas, negócios e pessoas a projetos que promovem engajamento cívico e geram doações. Segundo ela, passados mais de dois anos do início da pandemia, não vemos ainda uma mudança duradoura no cenário da filantropia. “Ter doação em boa quantidade e principalmente com recorrência é algo que toda organização da sociedade civil precisa para desenvolver seu trabalho. Se mais pessoas e empresas doam, elas têm respaldo para continuar atuando onde o Estado não chega.”
A rápida resposta do terceiro setor no início da pandemia ilustrou o poder da sociedade civil
Um bom exemplo da importância dessas organizações foi logo na chegada da covid-19 no Brasil. “Vimos em poucas semanas de lockdown uma rede de pessoas e instituições que se organizaram muito rapidamente para levar EPIs [Equipamentos de Proteção Individual], máscaras, oxigênio, alimento para quem precisava.” Henriques afirma que a resposta desse setor foi muito rápida, em contrapartida ao governo, que tem uma estrutura grande e morosa, o que dificulta o processo. “Isso ilustra o poder da sociedade civil.”
Mas não é apenas em tragédias, desastres naturais e crises econômicas que o brasileiro deve se solidarizar. O comportamento mais emotivo, que facilmente se sensibiliza com a dor do outro nesses momentos, é inclusive um dos entraves à prática mais recorrente da filantropia. A seguir, Gama dá um panorama do perfil do brasileiro quando o assunto é cultura da doação, além de sugerir caminhos para melhorar o cenário.
Muita desconfiança
A confiança é um dos pontos principais para observarmos quando se pretente incentivar a doação. A pesquisa Doação Brasil, do Idis, feita em 2015 e em 2020, trouxe alguns dos motivos citados por quem não doa – entre eles, não ter dinheiro, achar que problemas sociais são responsabilidade do governo, não confiar nas organizações e não saber o destino da quantia doada. “Tudo isso mostra o espírito de desconfiança, que dificulta a doação mais perene”, afirma Vanessa Henriques, do Instituto MOL.
O desconhecimento e a desconfiança são duas grandes barreiras para a cultura da doação mais consolidada
Para ela, temos uma falta de convites para doar — isto é, estímulo para que isso aconteça. “Vemos muitos pedidos envergonhados, e eles precisam ser mais frequentes, múltiplos e francos.” Para isso, traz lojas, redes varejistas, meios de pagamento e aplicativos de delivery como espaços possíveis para promover a filantropia. Henriques acredita que se tivermos mais convites e mais formas de chamar as pessoas para doar, haverá maior proximidade e intimidade entre a pessoa física e a filantropia, facilitando a doação.
Já a fotógrafa e empreendedora Mariana Brunini, que é coordenadora executiva do Movimento por Uma Cultura de Doação, fala em “experimentar a doação”: “Quando a gente experimenta e vivencia, entende na prática o poder de transformação daquela atitude”, o que, segundo ela, aproxima as pessoas do terceiro setor e torna mais evidente o papel dos movimentos sociais. “O desconhecimento e a desconfiança são duas grandes barreiras para a cultura da doação mais consolidada.”
Pouco incentivo fiscal
“Não temos incentivo fiscal para a doação de uma maneira geral”, afirma Paula Fabiani, CEO do Idis (Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social). Ela explica que, por um lado, temos um sistema que permite direcionar o imposto para leis de incentivo fiscal, caso da Lei Rouanet, Lei do Audiovisual e Lei do Incentivo ao Esporte — o que quer dizer que o governo abre mão dessa porcentagem e destina o valor para esses projetos. “Ao mesmo tempo, é um processo complexo e burocrático, então pouquíssimas pessoas usam. O percentual é abaixo de 5%.”
Os estados brasileiros hoje cobram um tributo para quem faz doações, oImposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCMD)— um tipo de prática adotado em raros países no mundo.”Hoje o ITCMD trata de forma igual a transferência de propriedades, seja para filantropia ou não”, afirma Cássio França, secretário-geral do GIFE. Além disso,a doação de heranças por aqui é limitada a um máximo de 8% do valor total, o que impede quegrandes fortunas sejam dedicadas à filantropia, como vemos com frequência no exterior.
“Lá fora, com imposto sobre herança muito mais elevado, quando você doa e direciona para causas sociais, consegue isenção, o que estimula as pessoas doarem ainda em vida”, diz Paula Fabiani. Ela conclui que o Brasil desincentiva a doação, justamente por facilitar muito mais a destinação da herança para a própria família do que para organizações.
Doar sempre
Seja pela emoção, sensibilidade à dor do outro ou histórico religioso, fato é: o brasileiro doa, mas quase sempre na tragédia e com pouca consistência. “Somos empáticos, queremos nos envolver, principalmente quando ficamos emocionados em situações extremas. Queremos ser parte da solução”, afirma. “Só que o brasileiro não consegue passar desse momento de emergência e assistência imediata e olhar para a filantropia como algo que pode melhorar a sociedade.”
A orientação católica e cristã, na visão de Paula Fabiani, do Idis, também tem um impacto significativo na cultura da doação. “Não temos o costume de falar sobre o assunto, diferentemente dos protestantes, em especial de países anglo saxões, onde falar que doa é motivo de orgulho. Existe uma cobrança social muito maior, inclusive.”
Precisamos abandonar a vergonha de falar sobre doação e trazê-la para o nosso cotidiano
Essa noção, felizmente, vem mudando. Na pesquisa Doação Brasil de 2015, em torno de 86% da população achava que não deveria falar que doa. Na edição de 2020, o número caiu para 75%. “É um resquício de valores religiosos, que colocam como uma atitude esnobe. Gosto de pensar de outra forma: se não falarmos sobre nossas doações, nunca vai deixar de ser um tabu, não vamos sair do mesmo lugar”, diz Vanessa Henriques. “Precisamos abandonar a vergonha de falar sobre doação e trazê-la para o nosso cotidiano.”
Patrícia Villela, do Instituto Humanitas360, que atua para diminuir a violência e melhorar a qualidade de vida da população, acredita que deve-se olhar para a filantropia como mais que uma simples doação de dinheiro. “Confundimos com caridade, que é absolutamente necessária. Mas para que haja incidência em políticas públicas, e daí essa perpetuidade, vamos precisar de filantropia, que é também doação de tempo, de capital intelectual e cívico.”
A filantropia tem um olhar a curto, médio e longo prazo, é institucional e intergeracional
Segundo ela, para haver cultura da doação, precisamos de metodologia, orquestração e sistematização. É mais um componente para alterar a sociedade, junto aos outros poderes, mas ao lado da sociedade civil, que conhece a realidade não só por dados, mas pela experiência. “Na caridade, me dou o direito de cansar ao não ver as coisas mudarem. A filantropia tem um olhar a curto, médio e longo prazo, é institucional e intergeracional.”
Vilella, do Instituto Humanitas360, defende que a doação deve ser planejada porque “assim assumimos como uma responsabilidade, um compromisso, e passa a ser de fato cultura”. Isso permite que a prática seja passada de geração em geração: “Temos que incluir todos, para que mesmo os que não possam doar em dinheiro se comprometam de outras formas. Ou então, como ensino meu filho essa cultura? Só pode ser com aquilo que ele já pode disponibilizar desde pequeno”.
Dá para melhorar
Gama pediu a especialistas para sugerirem caminhos para a mudança. O que tem que ser feito e o que o brasileiro precisa mudar no seu comportamento para que a filantropia seja praticada de maneira mais profunda e recorrente?
Descubra sua causa
É um questionamento pessoal: o que você quer mudar na sociedade? A resposta deve ser mais específica do que “educação”, simplesmente. “É educação na primeira infância? No ensino médio? Foque em uma causa e busque uma organização que atuea naquela área que você acha fundamental”, indica Paula Fabiani, do Idis. “As organizações precisam sobreviver sempre, não é uma doação esporádica que vai resolver.” A Idis e o MOL criaram um teste para te auxiliar nessa busca: o Descubra Sua Causa, que produz, a partir das respostas, um relatório com formas para contribuir, vagas de trabalho voluntário, pessoas para seguir nas redes. “Quando falamos de um assunto que a gente conhece, gosta e se interessa fica muito mais fácil de se engajar e fazer algo a respeito”, diz Vanessa Henriques, do Instituto MOL.
Preste contas e encontre instituições interessantes
Como um dos entraves à prática da filantropia é a desconfiança e o pouco conhecimento sobre o destino dos recursos doados, Patrícia Villela, do Instituto Humanitas360, sugere seguir os passos da organização, além de escolher uma em que seja possível cultivar algum tipo de relacionamento. “Prestar contas constrói credibilidade. Quando o doador recebe essa prestação, vai se sentir parte daquilo, mais confiante.”
Encontrar instituições com capacidade de mudança demanda dedicação e bastante estudo. Se te falta tempo para isso, Inês Lafer, fundadora da plataforma Confluentes, fala da importância da rede de indicações para descobrir movimentos sociais bem aplicados na hora de doar — “assim como nos baseamos em indicações ao contratar serviços”, relembra. O Confluentes é responsável por fazer uma curadoria de organizações, monitoramento destas e ainda indicações para destinar recursos. É como o meio de campo entre a pessoa física e as instituições, todas selecionadas pelo alto potencial de promover mudanças.
“Temos experiência e reputação na área do terceiro setor, e buscamos organizações comprometidas com causas que chamamos de estratégicas, ou seja, que vão efetivamente trabalhar para mudar desigualdades estruturais do país”, afirma Lafer. “Aí transformamos esse pacote de coisas complexas em doações viáveis para quem não é do setor.”
Coloque a doação no orçamento
Patrícia Villela fala em planejar a doação, colocá-la na ponta do lápis, assim como conta de água, de luz, etc. “É disso que se trata o compromisso, e não o ‘se sobrar, eu doo’.” Vanessa Henriques segue o mesmo raciocínio, e fala em colocar a doação no cartão de crédito, no PIX recorrente, no boleto. “É parte do planejamento financeiro, como qualquer conta que você paga.” Assim, a doação cai no cotidiano e torna-se muito mais eficiente.
Conhecer os – ainda que poucos – incentivos à doação também é importante. “Uma campanha de conscientização, quase uma educação financeira pró-doação seria um caminho interessante para que soubéssemos melhor como gerenciar e administrar recursos, e encaminhá-los para iniciativas que precisam”, afirma Villela.
Tenhamos bons exemplos em mente
“Certamente precisamos de mais políticas públicas para promover a filantropia, além de um melhor ambiente regulatório”, diz Paula Fabiani. “Não existia, por exemplo, segurança jurídica para quem queria criar um endowment, como nos EUA, que são estruturas para financiar causas a longo prazo.” Ela cita a abertura desse setor e o crescimento expressivo do estabelecimento de fundos patrimoniais. “Há estudos que mostram a relação entre o incentivo fiscal e a propensão a doar. É uma relação positiva.”
Por mais que cada nação tenha seu histórico único e específico, Vanessa Henriques relembra algumas atitudes de outros países que poderiam ser aplicadas no Brasil. Ações pequenas, mas que podem fazer alguma diferença. “Ter ali no aeroporto uma caixinha para doar sua moeda estrangeira, aqueles centavos que sobraram da viagem e que você não vai usar. Também o voluntariado como critério de admissão em uma universidade. São exemplos que caberiam em diferentes contextos”, finaliza.
Este conteúdo foi produzido com o apoio de Confluentes, Gife e Movimento Bem Maior.
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3Reportagem Por que as empresas devem doar
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