Gratidão: ascensão e queda do conceito que ficou popular na web — Gama Revista
Já agradeceu hoje?
Icone para abrir
Amanda Pinho @_aimpin

2

Sociedade

Gratidão: ascensão e queda

O termo é controverso, porque pode levar a um estado apático e à repressão de sentimentos negativos. É o que defende o psicanalista Lucas Liedke em texto exclusivo para a Gama

Lucas Liedke 19 de Dezembro de 2021

Gratidão: ascensão e queda

Lucas Liedke 19 de Dezembro de 2021
Amanda Pinho @_aimpin

O termo é controverso, porque pode levar a um estado apático e à repressão de sentimentos negativos. É o que defende o psicanalista Lucas Liedke em texto exclusivo para a Gama

Fim de ano é tempo de retrospectiva e, se possível, de gratidão. Afinal, pelo que será que vai dar (ou não) para agradecer este ano? Antes de bater o martelo nessa pergunta, pode ser interessante traçar uma retrospectiva da própria noção de gratidão. Qual foi o caminho que esse conceito percorreu nos últimos anos? A partir dessa análise, quem sabe, dá pra refletir melhor sobre o quão gratos ou ingratos conseguiremos estar no dia 31 de Dezembro.

Uma breve pesquisa confirma que foi por volta de 2015 que esse termo, amado e odiado por tantos, caiu nas graças da cultura de massa. Subitamente, #gratidão foi alavancada como uma “nova forma” de agradecer por graças recebidas e conquistadas. A hashtag invadiu os registros dos momentos de paz, alegria, prazer e celebração — ou seja, a viagem de férias, uma comida gostosa, mais uma vitória profissional, a companhia de um novo ou antigo amor.

O que chama a atenção é que o contexto das redes sociais trouxe uma nova roupagem para esse termo originalmente tão nobre e virtuoso. Se antes a gratidão era revestida por ares de sobriedade e até religiosidade, de uma hora para outra ela começou a sair da boca de celebridades bastante entusiasmadas em compartilhar os seus êxitos e glórias. No campo do espetáculo, a gratidão ganhou outra função: neutralizar a vaidade da exibição e disfarçar o que já era, lá no fundo, uma espécie de ostentação do bem-estar.

Dicas práticas e exercícios diários de gratidão logo inundaram as palestras motivacionais e o marketing da espiritualidade. Ela invadiu os conteúdos do universo fitness, das dietas e de tudo aquilo que nos encoraja a supostamente hackaer a vida em busca de mais e mais felicidade, e com isso, mais gratidão. Vale a pena voltarmos mais no tempo, para o início dos anos 2000, quando surgia, nos EUA, a corrente da Psicologia Positiva. Com base em relatos pessoais emocionantes e centenas de estudos científicos, o mundo passou a ser bombardeado repetidamente pela seguinte mensagem: uma atitude otimista perante a própria vida produz benefícios reais para a saúde do corpo e da mente.

A gratidão deixou de ser um simples sinônimo de ‘estar de bem com a vida e consigo mesmo’ e tornou-se um perigoso instrumento de isenção social e alienação

A promessa de tentar positivar todos os aspectos da vida tornou-se extremamente atraente e foi amplamente adotada pelo mercado e pela cultura de massa nas últimas duas décadas. E sim, precisamos reconhecer que essa aposta talvez tenha nos feito muito bem, durante muito tempo. Mas como todo grande paradigma ou filosofia de vida, ficaram aí algumas lacunas e ressalvas que simplesmente deixamos escapar. De virtude moral para ferramenta de autoajuda, a gratidão deixou de ser um simples sinônimo de “estar de bem com a vida e consigo mesmo” e tornou-se um perigoso instrumento de isenção social e alienação.

Um sentimento, que sempre foi tão propositivo, se voltou contra processos importantes de desenvolvimento e transformação do sujeito e da sociedade. Um desvio irônico na busca pela felicidade, pois em um modelo compulsório e impositivo, a gratidão demanda da gente um estado constante de contentamento. E o contentamento, por melhor que seja, não é o que nos levará à mudança. É a insatisfação, a falta e a coragem da crítica que, no frigir dos ovos, nos tiram do lugar na busca por algo melhor.

Nesse sentido, o culto à gratidão também pode nos conduzir a um estado apático. Um convite para se acomodar com pouco e com situações bastante precárias. Não é muito diferente do que acontece com boa parte da população carente e marginalizada que encontra na devoção religiosa um consolo para a sua condição. “A coisa tá feia, mas a doutrina determina que eu devo ser grato pelo pouco que tenho.” Não se dar o direito de reclamar e reivindicar é uma forma de repressão e silenciamento de afetos que são negativos, mas que são tão verdadeiros e importantes quanto os positivos.

A gratidão demanda um estado de contentamento. E o contentamento não é o que nos levará à mudança

Para complicar ainda mais, a gratidão desta década talvez seja menos sobre Deus. Em boa parte, é sobre autogratidão; ou seja, está direcionada ao próprio Ego. A linguagem escrita e falada denuncia essa mudança. Basta pensarmos sobre como a gratidão entrou, para muitos, como uma substituição do obrigado. Etimologicamente, o obrigado faz referência a uma obrigação, um compromisso, uma responsabilidade e uma ligação que se cultiva entre beneficente e beneficiário. Mas por que obrigar-se a ser grato com o outro, quando o outro não é grato com a gente?

Diferentemente do obrigado, a gratidão não está endereçada ao pequeno outro, talvez nem ao grande outro. Ou seja, o benfeitor, frequentemente, somos nós mesmos. É um self-agradecimento, disfarçado, muitas vezes, de agradecimento ao Universo. Sim, um lugar muito elevado, mas é um lugar benevolente e espiritualizado? Ou simplesmente narcisista?

 Amanda Pinho @_aimpin

Felizmente, a cultura é dinâmica, e a internet não deixa nada passar batido. Não por muito tempo. O grande estopim da decadência da gratidão foi quando fomos presenteados por uma nova variante do termo. Combinada com “beijos de luz” (que soavam mais arrogantes do que afetuosos), o termo gratiluz chegou causando comoção, mas também ranço e repulsa. Serviu como uma espécie de 20 centavos da positividade tóxica. Um limite que a cultura novaerista acabou extrapolando e que logo se tornou alvo de deboche em muitos debates e rodas de conversa com ares intelectualizados.

Ao invés de colocar todas nossas fichas na gratidão, podemos  recorrer aos atos de bondade e generosidade sem esperar muita coisa em troca

A fama da gratidão já não andava lá essas coisas, quando chegamos então em 2020 e mergulhamos em uma pandemia global. Esbanjar gratitude (variação ainda mais grotesca do termo) consolidou-se como uma expressão convicta de falta de empatia com o resto do mundo. Um aprisionamento solitário em uma redoma de privilégios, sorte, méritos (?) — o que for… Não pega bem.

De qualquer forma, por maior que tenha sido a sua queda, sabemos que a gratidão não morreu e nem deveria morrer. Inclusive, cabe retomarmos a teoria da psicanalista Melanie Klein, que ficou conhecida por articular a gratidão com um de seus opostos: a inveja. Para ela, enquanto a inveja é destruição, a gratidão é criação. E indo mais fundo, a gratidão é sobre fazer reparações. É uma forma de se desculpar por não termos conseguido ser gratos antes e por termos ocupado uma posição esquizo-paranóide de ataque ao outro pela falta que esse outro provocou em nós. Mesmo que essa falta seja, muitas vezes, imaginária.

Sem gratidão também é provável que a gente escorregue para posições doloridas de amargura, ressentimento e desejo de vingança. Ou seja, a gratidão não está necessariamente direcionada ao outro. Ela pode e é sim para o nosso próprio proveito. E tudo bem, pois merecemos esse alívio no peito. Só que a gratidão genuína exige muito da gente. Dá trabalho mesmo. Especialmente quando houve danos efetivos que foram causados em nós, e quando esses custos foram bastante altos. Quando fomos desrespeitados, enganados, maltratados, abusados e negligenciados — e podemos garantir que isso aconteceu massivamente no Brasil nos últimos tempos.

É uma pena que a capacidade de devolver reconhecimento tenha ficado um tanto pobre e escassa nos dias de hoje. Especialmente quando pensamos naqueles que nos amam, se doam e nos fazem bem. Resultado de uma sociedade em que nada é de graça, nem mesmo o estado de graça. Mas ao invés de colocar todas nossas fichas na gratidão, podemos também recorrer a uma prática bastante antiga e meio fora de moda: os atos de bondade e generosidade, sem esperar muita coisa em troca. Sabemos que eles podem liberar tanta dopamina e oxitocina quanto a gratidão e que com certeza não vamos fazer papel de bobo.

Lucas Liedke é psicanalista e analista de cultura e comportamento. Atua no atendimento clínico e em projetos de pesquisa e estratégia; e apresenta o podcast Vibes em Análise, que recorre a conceitos da psicanálise para investigar mudanças do nosso tempo