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ConversasAnna Lembke: "Temos acesso instantâneo a substâncias e comportamentos altamente compulsórios"
Autora do livro “Nação Dopamina”, psiquiatra aponta que o excesso de prazer tem nos deixado mais deprimidos e critica exageros na medicalização
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Anna Lembke: “Temos acesso instantâneo a substâncias e comportamentos altamente compulsórios”
Autora do livro “Nação Dopamina”, psiquiatra aponta que o excesso de prazer tem nos deixado mais deprimidos e critica exageros na medicalização
Por volta dos 40 anos, a psiquiatra norte-americana Anna Lembke desenvolveu uma ligação pouco saudável com um filão específico de romances — histórias sobrenaturais de amor adolescente, como “Crepúsculo”. Sem críticas específicas à obra ou ao subgênero, ela descreve no livro “Nação Dopamina” (Vestígio, 2022) como esse interesse que acabou virando obsessão a levou a ler volumes sobre vampiros, lobisomens, bruxas, videntes etc. “A certa altura, as histórias de amor dócil já não satisfaziam, então saí em busca de versões cada vez mais gráficas e eróticas da clássica fantasia de um amor romântico.”
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O problema é que essas leituras começaram a tomar outras partes de sua vida, passando a ocorrer até entre as sessões com seus pacientes. O exemplo é corriqueiro, mas ilustra como é fácil se envolver com algum tipo de comportamento viciante, especialmente hoje em dia, quando temos tudo à distância de um clique. “O acesso é um grande fator de risco para o vício, e temos acesso 24 horas por dia, sete dias por semana”, diz Lembke à Gama.
Steve Fisch
O excesso da busca por prazer constante, seja com uma leitura aparentemente inofensiva, o uso das redes sociais, a pornografia ou até o problema recente das apostas online, é uma das principais fontes da nossa infelicidade, argumenta a autora em “Nação Dopamina”. Pode até parecer contraditório — afinal, como o prazer nos torna infelizes? —, mas a psiquiatra aponta que, assim como nos vícios, o excesso de estímulos que antes costumavam nos dar alegria pode desregular nosso equilíbrio físico e psicológico, tornando cada vez mais difícil sentirmos prazer de fato.
No livro, Lembke traz uma série de exemplos de pacientes cujo comportamento compulsivo, seja ele ligado à masturbação, aos videogames ou até ao exagero na prática de exercícios físicos, aponta nossa capacidade contemporânea de consumir tudo em excesso, numa busca desenfreada pela dopamina — neurotransmissor conhecido como hormônio da felicidade. “O problema é que saturamos nosso ambiente com acesso fácil a tantos estimulantes”, explica. Ironicamente, essa busca por satisfação o tempo todo, baseada na crença de que precisamos estar sempre felizes, é o que pode gerar um transtorno de ansiedade ou depressão.
Editora Vestígio
Além disso, a psiquiatra aborda como o sistema de saúde tem nos levado a medicalizar todo e qualquer desconforto, desembocando em casos como a crise dos opioides nos EUA, que explora em seu outro livro, “Nação Tarja Preta” (Vestígio, 2023). Para ela, num mundo onde a consciência sobre transtornos mentais tem aumentado, com informações acessíveis e constantes sobre o assunto, o lado negativo é que nos autodiagnosticamos cada vez mais, somos incentivados a tomar medicamentos quando não são necessários, e acabamos transformando os hospitais em templos, nossas igrejas contemporâneas.
No papo com Gama, Lembke também fala da medicalização como estratégia para ignorar os problemas sociais, aborda a importância e os riscos dos medicamentos psiquiátricos e indica como fazer um “jejum de dopamina” para escapar da armadilha dos prazeres constantes.
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G |Como o prazer e a dopamina em excesso podem nos levar à infelicidade e à depressão? Foi essa contradição que te inspirou a escrever “Nação Dopamina”?
Anna Lembke |Sou uma profissional de saúde mental, vejo pacientes todos os dias na clínica lutando com tipos diferentes de desespero, ansiedade, depressão e insônia. Muitos têm vidas privilegiadas, famílias amorosas, vários seguidores nas redes e acesso à educação de elite e à natureza — todas coisas que associamos a uma boa vida. Ainda assim, mal conseguem sair da cama de manhã e são muito infelizes. E não só isso, a expectativa deles é que devem ser felizes o tempo todo. Então sinto que há duas coisas acontecendo. Uma é o lugar comum de que temos que ser felizes. Se não somos, algo está errado com nossas vidas. A outra é a infelicidade fisiológica real que acredito que as pessoas estejam experimentando. As pessoas são genuinamente menos felizes, e acho que é porque estamos sendo bombardeados com todas essas drogas e comportamentos altamente estimulantes. Isso muda nosso ponto de equilíbrio para o lado da dor de tal forma que agora precisamos de um prazer ainda mais intenso só para sentir algo.
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G |Esse panorama parece a descrição de um vício. É por isso que vemos um aumento nas compulsões ligadas à pornografia, drogas, redes sociais, compras, apostas? Nossa realidade estimula isso?
AL |Sim, nossa cultura nos encoraja a evitar a dor e buscar o prazer a qualquer preço. Nossa economia torna isso muito fácil. Aonde quer que vamos, temos na ponta dos dedos acesso instantâneo a substâncias e comportamentos altamente compulsórios. O que torna algo viciante é a potência, quanta dopamina aquilo libera no caminho para a recompensa. E tudo se tornou mais potente. A quantidade importa, então depende de quanto e com que frequência usamos a droga que escolhemos. Se deixarmos pausas suficientes, nosso cérebro pode se redefinir. Mas, se usarmos todos os dias, é mais provável que entremos no vórtice do vício. E há novidades quase instantâneas na mídia digital, na comida e em muitas outras coisas que fazemos. Quando fiquei viciada em romances de vampiros, também havia outros de lobisomens e bruxas, um suprimento infinito. O acesso é um grande fator de risco para o vício, e temos acesso 24 horas por dia, sete dias por semana.
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G |Nos tornamos uma sociedade excessivamente avessa ao desconforto, ao tédio? Mas essas sensações são importantes, não?
AL |Naturalmente nos aproximamos do prazer e evitamos a dor. Evoluímos por milhões de anos para fazer isso. É o que nos manteve vivos em ambientes perigosos, com recursos escassos. Se tornou um reflexo. E todas essas camadas de matéria cinzenta foram coladas em cima das nossas emoções límbicas — estruturas cerebrais que nos permitiam parar e pensar sobre as consequências futuras, adiar a gratificação. Talvez comer uma barra de chocolate agora não me faça bem, eu deveria esperar até mais tarde. Já fomos capazes disso. O problema é que saturamos nosso ambiente com acesso fácil a tantos estimulantes. Pegamos comportamentos, situações e processos que costumavam ser bons para nós, e os transformamos em drogas. Drogamos nosso sistema imunológico, transformamos até o exercício em droga, com suas tabelas de desempenho e as mídias sociais. E é tudo tão divertido que até ler se tornou uma droga. Essencialmente criamos um ambiente tóxico para nós mesmos. Então, mesmo com toda a ciência e inovação, o que inicialmente era progresso atingiu um ponto crítico, um ambiente nada saudável para nós e para o planeta.
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G |Nos livros, você exorta as pessoas a viverem suas vidas sem recorrer tanto a distrações, e dá como exemplo o período em que lia esses romances como forma de fuga. Por que as distrações em excesso podem gerar distúrbios? É possível evitar essas válvulas de escape quando estamos tão rodeados delas?
AL |Estamos constantemente reagindo a estímulos externos. O que significa que não deixamos nosso cérebro descansar para processar o que vivenciamos, ter pensamentos próprios. Com nosso ponto de equilíbrio mais próximo da dor, pode parecer uma depressão, um transtorno de ansiedade generalizada ou insônia. O impacto em nossa saúde mental é insidioso, repetitivo e sutil, mas real. E sabemos disso porque, quando nos abstemos dessa estimulação constante por um período de tempo, inicialmente nos sentimos pior porque estamos em abstinência, mas depois passamos a melhorar. Definitivamente há esperança, os humanos são incrivelmente adaptáveis. Mas primeiro temos que reconhecer o lado obscuro da tecnologia e da inovação científica, a fetichização de quase tudo que fazemos agora. E trabalhar juntos como indivíduos e comunidades para criar um mundo dentro desse mundo, no qual possamos criar barreiras, evitando essas formas constantes de prazer.
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G |Vemos o depressivo como aquela pessoa triste, trancada sempre no quarto, mas há outras manifestações do distúrbio até em pessoas que parecem felizes. Quais os maiores obstáculos para reconhecermos uma depressão?
AL |Um dos principais sinais de depressão é a incapacidade de se contentar com recompensas modestas que costumavam nos dar prazer, como encontrar amigos ou assistir ao nascer do sol. É um sinal de alerta importante de que nosso sistema de recompensa foi sequestrado. Uma das maneiras de recuperá-lo é desistir desses prazeres viciantes, passar pela dor da abstinência e restabelecer uma base mais saudável de liberação de dopamina. Então, se você tem um ente querido que está deprimido, percebe que ele não participa mais das atividades familiares ou dos hobbies que costumava ter, vale a pena apontar, de forma amorosa: “Eu te amo e isso me preocupa, quero o melhor para você. Me pergunto se talvez haja um problema.” Um questionamento em voz alta, e então um feedback real. Sem tentar diagnosticar ou dar conselhos, só mostrando o que você vê. Porque não nos vemos claramente quando estamos atrás de dopamina, ficamos perdidos nessa névoa narcisista. Ter outra pessoa para mostrar que você tem ficado acordado até três da manhã no celular, com dificuldade para sair da cama, sem alegria no trabalho ou em reuniões familiares, e que antes não era assim…. comparar e contrastar.
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G |No livro, você cita o “jejum de dopamina”. Como ele funciona?
AL |Número um: você tem que identificar o problema. Mesmo se não tiver certeza, o jejum pode ajudar. É o famoso ditado do alcoólatra: nunca tive problemas com álcool até tentar parar de beber. Não tenha pressa. Primeiro de tudo, tente coletar dados. O que estou consumindo? Quanto e com que frequência? Gosto do método de acompanhar a linha do tempo ao longo de uma semana. Tendemos a minimizar o que fazemos, mas, se prestarmos atenção por uma semana, pode ser uma revelação. Por exemplo, um dia minha filha me disse: “Mãe, você está sempre no YouTube.” Num primeiro momento, neguei. Mas fiz as contas e percebi que passava 14 horas por semana no site, muito mais do que pensava. O fato de ela me forçar a olhar para isso me fez ver o problema pela primeira vez. E só assim me motivei a reduzir. Quando paramos por um período, temos mais probabilidade de voltar a usar em quantidades menores. Só tentar diminuir não costuma funcionar tão bem. O ideal é parar por quatro semanas, desde que a abstinência não envolva álcool ou cause risco de vida. Vamos piorar antes de melhorar, os primeiros 10 a 14 dias são difíceis. Como em qualquer substância viciante, os sintomas de abstinência são ansiedade, irritabilidade, insônia, depressão e desejo. Com o álcool e certas drogas, tem também a abstinência física. Muitas pessoas que usam cannabis dizem que não são viciadas e que a cannabis não gera abstinência. Claro que gera.
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G |Se há uma atenção maior para a saúde mental, também tomamos cada vez mais remédios. Seu livro “Nação Tarja Preta” fala da crise dos opioides nos EUA. Hoje, tentativas de controle do problema têm encontrado sucesso?
AL |Fizemos um bom progresso. Os médicos estão prescrevendo menos e os pacientes tomando menos. Temos visto uma tendência muito positiva em direção ao uso de analgésicos não opioides para dor aguda e crônica. Também foram implementadas ferramentas para que os médicos possam analisar quais remédios controlados seus pacientes recebem. Infelizmente, houve um grande influxo de fentanil ilícito, um opioide potente e mortal, de modo que o número de mortes por overdose de opioides continua a aumentar. O ano passado foi o primeiro em muito tempo com uma ligeira diminuição. Além disso, vemos um aumento nas mortes por overdose de metanfetamina. Infelizmente, a prescrição de estimulantes para transtornos como TDAH também aumentou drasticamente com a covid. As pessoas sentiram que precisavam de mais medicamentos para prestar atenção quando estavam em casa. Então tem coisas boas e outras não tão boas.
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G |Você conta que começou a tomar fluoxetina para uma depressão atípica. O que isso revelou sobre esses medicamentos?
AL |Depende da pessoa. Há uma enorme variabilidade em termos de resposta. Só um terço dos que tomam antidepressivos realmente têm uma resposta. Mas, em alguns casos, são capazes de mudar suas vidas. Então gosto de dizer que sou muito grata por termos esses remédios. Mas eles não funcionam para todos e podem fazer mal. E também causar um entorpecimento, limitando e amortecendo a amplitude emocional. Então a pessoa não sente mais emoções muito baixas ou muito altas, nem emoções profundas como luto e espanto. Foi o que notei no meu caso. Embora o Prozac tenha me ajudado a controlar a ansiedade e a depressão a longo prazo, senti que ele me transformou em alguém que eu não era, uma pessoa menos intensa e mais agradável. Parei de tomar e busquei aceitar quem eu sou e controlar isso.
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G |Hoje as pessoas buscam mais nas redes sobre transtornos mentais e se autodiagnosticam antes de ir ao médico. Os pacientes psiquiátricos têm sido mais medicados do que deveriam? Quando remédios são necessários?
AL |Sim, sou da opinião de que os psicotrópicos têm sido prescritos em excesso. Algo como um em cada cinco adultos e uma a cada dez crianças toma algum medicamento psiquiátrico nos EUA. Nosso sistema de saúde incentiva a prescrição de pílulas em vez de um trabalho mais longo e lento de psicoterapia e apoio social, provavelmente mais eficaz a longo prazo. Mas isso não é custeado pelo sistema. Alguns desses psicotrópicos são viciantes. Estamos viciando as pessoas em medicamentos que deveriam ajudá-las e acabam causando um problema ainda maior. Temos um sistema de saúde que incentiva essa prescrição mesmo quando não é necessária e um sistema educacional que ensina os médicos a receitar, mas não sobre os danos ou como fazer os pacientes pararem de tomar. Todo médico deveria pensar duas vezes sobre isso. Eu prescrevo muitos medicamentos. Faço isso regularmente, mas com consentimento total, informando os pacientes sobre os riscos, benefícios e alternativas, e tendo um plano para tirar essa medicação mais tarde. Antes de medicar, tento várias outras coisas, intervenções psicossociais.
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G |Você menciona que medicamentos psiquiátricos costumam ser receitados com maior frequência para os pobres. Nas classes mais elevadas, boa parte das pessoas também toma após uma idade. O que esse consumo massivo de antidepressivos diz sobre a sociedade?
AL |Como um fator de risco para prescrever um antidepressivo é a pobreza, precisamos ficar atentos se não estamos usando as drogas como forma de evitar abordar problemas sociais sérios. Em vez disso, identificamos como questões psicológicas individuais, quando não são só problemas de saúde pública. É a medicalização da pobreza, pegar problemas sociais reais e, em vez de reconhecê-los, usar essas drogas como uma espécie de restrição química.
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G |No Brasil, os jovens têm tido mais problemas de saúde mental, como ansiedade e depressão, do que os mais velhos. Os prognósticos de que as próximas gerações sofrerão mais com a saúde mental são verdadeiros?
AL |Certamente espero que não. É por isso que escrevi o livro e falo com as pessoas sobre isso. Espero que possamos mudar essa tendência. As pessoas em todos os lugares estão tentando descobrir por que isso acontece. Há muitas explicações diferentes. Disparidades socioeconômicas, trauma multigeracional, deslocamento social, todos esses fatores desempenham um papel. O meu argumento inclui nosso ecossistema drogado, o fato de que nada mais é desafiador, estamos cada vez mais isolados e estimulando nossos cérebros com esses comportamentos e substâncias, é por isso tudo que estamos ficando mais deprimidos. Espero que possamos virar essa maré, evitando prazeres fáceis, intencionalmente tentando fazer coisas difíceis e moderando nosso consumo, não apenas para nossa própria sobrevivência, mas também a do planeta.
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G |No “Nação Tarja Preta”, você fala de quando a doença vira a identidade de uma pessoa. Hoje, com todo mundo se autodiagnosticando, como isso afeta a maneira como nos entendemos?
AL |Acho que os hospitais estão lentamente se tornando uma nova religião como forma de estruturar nossas sociedades. Em qualquer cidade grande hoje, os edifícios maiores e mais proeminentes são hospitais. As igrejas estão na beira da estrada, vazias. É assim que nos entendemos no mundo moderno. Pessoas com doenças e distúrbios exigem medicação. Quando estamos passando por qualquer tipo de sofrimento, vamos buscar um profissional de saúde.
- Nação Dopamina
- Anna Lembke (trad. Elisa Nazarian)
- Editora Vestígio
- 256 páginas
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