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Isabela Durão

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Repertório

O que dizem as flores?

Linguagem vitoriana mescla simbologias pagãs e cristãs, inclui frutas no Brasil tropical e recria significados através do tempo

Ana Mosquera 19 de Setembro de 2021

O que dizem as flores?

Ana Mosquera 19 de Setembro de 2021
Isabela Durão

Linguagem vitoriana mescla simbologias pagãs e cristãs, inclui frutas no Brasil tropical e recria significados através do tempo

“É tão delicioso acordar todas as manhãs para sentir o cheiro de lírios-do-vale no quarto de alguém!”, ela disse.

“Ontem eles chegaram tarde. Eu não tive tempo pela manhã”.

“Mas você se lembrar de enviá-los todos os dias me faz amá-los muito mais do que se você tivesse dado uma ordem permanente […]”.

No clássico de Edith Wharton, “A Época da Inocência” (1920), o protagonista Newland Archer envia todos os dias um buquê de lírios-do-vale à noiva May Welland. A alegria da personagem ao recebê-las religiosamente tem fundamento: a flor simboliza “o retorno da felicidade”, de acordo com “Le Langage Des Fleurs” (a língua das flores, em tradução livre), publicado em 1818 por Mme. Louise Cortambert, sob o pseudônimo Charlotte de La Tour. “A linguagem em si era um código, porque as pessoas não podiam expressar os sentimentos. Era uma coisa mal vista, vulgar. Essas flores serviam como mensagens. Era o jeito de você expressar amizade, carinho, amor, paixão. Cada uma tinha uma simbologia e as pessoas começaram a estudar a floriografia”, conta Babi Cordovani, gastrônoma, educadora ambiental e herborista no projeto A Especiarista.

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Expressar os sentimentos era uma coisa mal vista, vulgar. Essas flores serviam como mensagens

Fosse para iniciar romances ou alertar sobre traições, lá estavam as flores sendo ofertadas, carregadas ou presas aos corpos de homens e mulheres. Codificada na Turquia, foi entre os séculos 17 e 18 que a sua linguagem chegou ao Ocidente pelas mãos europeias. Conta-se que o Rei Carlos II, da Espanha, importou a simbologia da Pérsia (atual Irã), enquanto a escritora, poeta e feminista Mary Wortley, após acompanhar o marido em viagem à Turquia, escreveu o primeiro manual sobre o tema, em 1718. Disseminado pela Europa, foi na Inglaterra Vitoriana (1837-1901) que o código se fortaleceu, ocupou manuais e perpetuou simbologias até hoje.

A própria Rainha Vitória, em seu casamento, em 1840, inaugurou o uso do arranjo de cabeça com flores de laranjeira, símbolo da castidade e do amor eterno. “Ele [o Príncipe Albert] continuou a dar a ela joias com o tema. Sua associação com o amor eterno pode ser rastreada desde a Grécia Antiga. Quando Hera se casou com Zeus, ela recebeu flores de laranjeira de Gaia, a antiga deusa da terra e da fertilidade”, conta a ilustradora e autora de “Floriography” (2020, ainda sem edição no Brasil), Jessica Roux.

Esquerda: Pintura da Rainha Victoria por Franz Xaver Winterhalter (1847). Direita: Cocar de flor de laranjeira dado à Rainha Vitória pelo Príncipe Albert no aniversário de casamento (1846)
Esquerda: Pintura da Rainha Victoria por Franz Xaver Winterhalter (1847). Direita: Cocar de flor de laranjeira dado à Rainha Vitória pelo Príncipe Albert no aniversário de casamento (1846)
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Do berço grego ao Novo Mundo

É da mitologia grega e romana que surge o primeiro esboço da floriografia. O narciso, que teria brotado do túmulo do jovem de mesmo nome, inebriado pela própria imagem, virou representação do egoísmo. O jacinto tem origem no mito do rapaz que morreu sendo centro da disputa entre os deuses Apolo e Zéfiro, e por isso o simbolismo dessa flor está no “jogo”. “Incapaz de trazê-lo de volta à vida, o deus o metamorfoseou na flor que leva seu nome”, escreveu de La Tour.

Meio pagã, meio cristã, na Idade Média, encontra significados relacionados ao catolicismo. A Nossa Senhora é açucena, São José está associado aos lírios e a Santa Isabel portuguesa aparece em imagens ora com pães, ora com rosas vermelhas –nas quais os primeiros teriam se transformado, ao ser abordada por tentar alimentar os escravizados. A rosa vermelha que, no geral, simboliza paixão, também tem caráter casto. “As pessoas vão simplificando as coisas e a flor que significava Paixão de Cristo passou a simbolizar apenas paixão. É a dessacralização da flor do maracujá”, exemplifica a pesquisadora independente e escritora, Claudia Thomé Witte, sobre a Passiflora.

O uso das flores para comunicar, evidentemente, dependia de outro fator importante: a localização geográfica. Quando chegou ao Brasil – possivelmente com a Missão Artística Francesa, no início do século 19 – o código não dispunha dos mesmos elementos da cena europeia. “A parte mais interessante é essa adaptação de substituir as flores europeias, que no clima tropical são mais complicadas e sensíveis, por espécies nativas”, comenta Witte. Grande parte das variedades a que ela se refere já foram flores um dia e, devido à sua abundância no país tropical, ganharam destaque na versão nacional da linguagem vitoriana: são eles, os frutos.

“Posso ir te ver?” “Venha aqui agora!”

Nunca coentro e cajá estiveram tão conectados além da mesa quanto no Brasil do século 19. Se a mensagem pretendida fosse “Posso te ver?”, bastava enviar um maço da erva à pessoa escolhida. Se a resposta fosse “sim” (e urgente), era só o destinatário retornar ao remetente uma unidade desse fruto típico dos trópicos, o cajá. “Venha aqui agora!” ou “Venha cá já!”, ela logo entenderia e estava resolvido o dilema. Reunidas no “Diccionario de Flores, Folhas e Fructas”, publicado em São Paulo, em 1889, são inúmeras (e curiosas) as associações entre frutos e ervas, além de flores, com a expressão dos sentimentos.

Figos roxos diziam ‘não consegui dormir pensando em ti’; goiaba, ‘quero te apertar’; laranja, ‘está tudo terminado entre nós’

O “WhatsApp do século 19” – nome do vídeo de Witte sobre o tema, onde contou a história da dupla coentro-cajá – disponibilizava mensagens como: figos roxos, “não consegui dormir pensando em ti”; goiaba, “quero te apertar”; laranja, “está tudo terminado entre nós”; tâmaras: “nos veremos a caminho da Igreja” – era na Igreja ou em seu trajeto, inclusive, que boa parte dessas trocas não verbais aconteciam, dado que era essa uma das únicas oportunidades de as pessoas verem e serem vistas. “Depois da ida da corte para o Rio de Janeiro, você começa a ter uma abertura maior, mas até 1810 essa era a única ocasião em que a mulher saía de casa”, relembra Witte, comprovando o forte recorte de gênero relacionado à linguagem.

E de classe social também, uma vez que as moças reclusas pertenciam às parcelas mais abastadas, o que explica também o controle: elas tinham muito a perder ao vivenciar romances proibidos, já que eram “mercadorias a serem trocadas por alto valor”, como pontua Witte. Já aos membros das fatias mais baixas restava a preocupação com outro tipo de liberdade. “Os vendedores de flores eram normalmente escravizados de ganho [obrigados por seus senhores a realizar algum tipo de trabalho nas ruas e a levar seus proventos diariamente], que vendiam flores, frutas, doces e sucos”, complementa. A eles restava a flor derradeira ou a menos bonita do tabuleiro.

Esquerda: Carta de D. Pedro I a Domitila, extraída da obra Titília e o Demonão, de Paulo Rezzutti / Direita: Pintura
Esquerda: Carta de D. Pedro I a Domitila, extraída da obra Titília e o Demonão, de Paulo Rezzutti / Direita: Pintura “Vendedor de flores na porta de uma igreja”, de Jean-Baptiste Debret (1816)
Paulo Rezzutti, Jean-Baptiste Debret/Wikimedia Commons

Mesmo com o avanço da presença das mulheres nos espaços públicos na segunda metade do século 19, o código turco continuou a ser usado para reforçar as intenções dos recados. O próprio D. Pedro I, quando trocava cartas com a Marquesa de Santos, utilizava esse recurso, como quando sugere que a amada use ao menos um lírio branco, junto ao corpo, em certa ida ao teatro. “Claramente eles haviam discutido, os lírios brancos são símbolo de amor incondicional”, comenta o pesquisador e escritor Paulo Rezzutti. “Ele declara novamente o seu amor e o pedido dá a entender que, se ela os usasse, ele saberia que ela o desculpou. Apesar de eles se corresponderem por bilhetes e cartas, o código das flores era parte desse ritual amoroso, como era para qualquer casal apaixonado no período.”

Histórias de culturas

“As histórias sobre flores são histórias sobre culturas”, diz Roux. Nos últimos dois séculos, a linguagem vitoriana das flores pode ter se dissipado por uma série de motivos: do acesso das mulheres à educação e à vida pública, passando pela revelação do código outrora secreto e pela produção em massa das espécies florais, até chegar no interesse por outras formas de se comunicar. O simbolismo em torno dessas belezas, entretanto, nunca deixou de existir e, assim como em outras épocas, foi sendo adaptado de acordo com a disponibilidade de espécies, os acontecimentos históricos e os novos padrões sociais.

Na própria Inglaterra, a tradição de as mulheres da realeza portarem o cocar da flor de laranjeira no dia do casamento se perdeu, mas os ramos de murta (que significa amor) – provenientes da planta cultivada a partir do buquê da Rainha Vitória – permanecem, tendo aparecido mais recentemente nas mãos de Kate Middleton e de Meghan Markle. Novos símbolos ainda vêm sendo criados e, na celebração da união de Markle com o Príncipe Harry, o arranjo trazia miosótis – flor azul, favorita da Princesa Diana, que significa “não me esqueças”. “As mulheres davam essas flores para os marujos que iam para outros países, em viagens de navio. E tinha a simbologia de colocar no túmulo das pessoas, para que suas memórias ficassem em vida. O azul geralmente está relacionado à lembrança”, fala Cordovani.

Esquerda: Protea cynaroides ou Protea King. Direita: Protea Pink Ice
Esquerda: Protea cynaroides ou Protea King. Direita: Protea Pink Ice
Marília Fialka

“As pessoas buscam por causa do significado, além da beleza”, diz a florista Marília Fialka, sobre a importância de escolher a flor mais adequada para cada ocasião. Se a pessoa quer levar calma e força para quem está se recuperando de uma enfermidade ou da perda de um ente querido, ela recomenda a Protea. Originária da África do Sul, seu nome vem do deus grego Proteus, dotado do poder da metamorfose. Sendo uma das flores mais antigas do mundo (300 milhões de anos), é uma espécie rara e resistente. “Ela passou por muitas épocas, sem grande transformação de estilo, mas ela vira outra quando seca. Dura muito e carrega o significado de força e da transformação, e vai acompanhar a pessoa nesse processo. É uma flor potente, só ela basta”, conta a dona da floricultura Fialka. Segundo ela, as características pessoais da pessoa presenteada também devem ser consideradas. “Para uma pessoa mais alegre, mais emocionada, eu sugiro um girassol. Uma pessoa mais clássica não vai gostar de receber uma flor ‘diferentona’. Além do significado, ela tem muito a ver com a personalidade”, diz Marília.

Em um contexto diferente, o mesmo girassol radiante, como também citado pela florista, pode ganhar outra conotação. Nos Jogos Olímpicos de Tóquio, o tradicional buquê concedido aos atletas desde a Grécia Antiga homenageava as 18 mil vítimas de Fukushima, com espécies das principais cidades atingidas em 2011: girassóis de Miyagi, gentians de Iwate e eustonas do epicentro do desastre no Japão.

Al Bello/Getty Images

As flores nos lembram da natureza cíclica da vida e da morte, e em mais de um ano cercado pela morte, é uma coisa reconfortante

“Acho que a poesia das flores pode estar em qualquer mensagem e em qualquer flor”, diz Teresa Sabankaya, autora de “The Posy Book” (2021, o livro do buquê, sem edição no Brasil) e pioneira do Slow Flowers, movimento nos moldes do Slow Food que conecta consumidores a pequenos produtores e que prega a importância da sazonalidade e do cultivo local. Assim como ela, Roux também teve seu livro publicado em plena pandemia, e o compilado virou sinônimo de conforto e elevação. “Há poder, beleza, coragem e sobrevivência em uma pequena flor silvestre que cresce à beira de uma estrada. As flores nos lembram da natureza cíclica da vida e da morte, e em mais de um ano cercado pela morte, é uma coisa reconfortante”, ela compartilha.

“Mensagens intrincadas podem ser transmitidas quando a linguagem humana não é muito apropriada”, lembra Sabankaya, para a qual o código das flores segue tão versátil quanto infinito. “À medida que reproduzimos novas e emocionantes plantas e flores, o mundo de sua linguagem secreta se expande sem fim”, finaliza. Assim como novas espécies são concebidas, movimentos inéditos vão adequando o código das flores às realidades dos tempos atuais – incluindo as questões femininas, historicamente tão conectadas aos significados por trás de cada pétala. “Acho que as mulheres mais independentes vão lá e compram as flores para elas mesmas, fazem seu próprio jardim. A gente pode se dar presentes e isso é lindo. É trazer o significado de amor para nós mesmas”, termina Cordovani.