Só o consentimento não basta, dizem autoras de livro — Gama Revista
E sua vida sexual, hein?
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Imagem adaptada da capa de “Precisamos falar sobre consentimento” (Bazar do Tempo, 2024)

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Conversas

Só o consentimento não basta, dizem autoras de livro sobre violência sexual

Não é não e sim é sim? Para psicóloga, promotora e antropóloga, é preciso ir além dessa dualidade para distinguir elogio de assédio e sexo consensual de estupro

Flávia Mantovani 08 de Setembro de 2024

Só o consentimento não basta, dizem autoras de livro sobre violência sexual

Flávia Mantovani 08 de Setembro de 2024
Imagem adaptada da capa de “Precisamos falar sobre consentimento” (Bazar do Tempo, 2024)

Não é não e sim é sim? Para psicóloga, promotora e antropóloga, é preciso ir além dessa dualidade para distinguir elogio de assédio e sexo consensual de estupro

Não é Não. Chega de Fiu Fiu. Meu Corpo, Minhas Regras. #MeToo. #meuprimeiroassedio. Movimentos e slogans como esses jogaram luz, nas últimas décadas, sobre o problema do assédio e da violência sexual contra as mulheres, popularizando discussões sobre limites, autonomia, direito ao corpo e à sexualidade. Um conceito, em especial, foi alçado ao centro desse debate: o consentimento — visto como o principal critério para distinguir entre o elogio e o assédio, a paquera e a perseguição, o sexo e o estupro.

Um novo livro de três autoras brasileiras propõe avançar nessa discussão, afirmando que o consentimento é necessário, mas não suficiente. Em “Precisamos falar sobre consentimento: Uma conversa descomplicada sobre violência sexual além do sim e do não” (Bazar do Tempo, 184 págs.), a psicóloga Arielle Sagrillo Scarpati, a antropóloga Beatriz Accioly Lins e a promotora de Justiça Silvia Chakian apresentam as nuances envolvidas nas interações sexuais e afirmam que o consentimento deve ser apenas um ponto de partida.

 Foto de Simone Marinho

“O termo tem sido cada vez mais utilizado como único critério relevante para diferenciar as interações afetivas e sexuais boas das ruins, na maioria das vezes de forma superficial e sem a compreensão de que as experiências que vivemos são muito mais complexas e cheias de nuances do que esses cenários típicos do ‘sim é sim’ e ‘não é não’”, diz Chakian.

Um dos argumentos é que nem todas as mulheres têm a liberdade para dizer e sustentar um “não”. “Há uma série de situações em que devemos questionar se o consentimento é válido ou uma mera formalidade. Por exemplo, uma mulher em situação de violência doméstica, que tem medo e sofre ameaças, ela pode consentir? Esse consentimento tem validade?”, questiona Accioly.

Outra armadilha é pensar que, uma vez que a mulher disse sim, ela não tem mais direito de voltar atrás e não é vista como vítima se sofrer uma violência sexual. “O consentimento deve caminhar de mãos dadas com conversas sobre o desejo, a vontade, o prazer e a autonomia dos sujeitos na medida em que o sexo não deveria ser algo que se faz ‘a alguém”, mas algo que se constrói junto”, afirma Sagrillo.

O livro é apresentado como um “antimanual” — e, de fato, mais levanta reflexões do que traz respostas. “Mais do que dizer o que é a violência sexual, fazemos um convite à utilização do consentimento de uma forma mais honesta, compreensível, realista, proveitosa e segura”, acrescenta a psicóloga.

Gama conversou com as autoras para entender melhor alguns pontos dessa discussão.

O consentimento é uma autorização, e há situações em que autorizações, mesmo quando dadas, podem não ter valor ou serem enviesadas

  • G |Vocês defendem que o consentimento não deve ser o único critério para distinguir interações sexuais positivas de interações violadoras. Que outros fatores devem ser levados em conta?

    Beatriz Accioly Lins |

    O consentimento é uma autorização, e há situações em que autorizações, mesmo quando dadas, podem não ter valor ou serem fortemente enviesadas — quando, por exemplo, a pessoa está em vulnerabilidade ou quando as consequências da recusa podem ser muito negativas. Além disso, o consentimento tem que estar em conversas que incluam discussões sobre desigualdades, poder, prazer e vontade. Só consentimento não é suficiente.

  • G |Quais são os mitos mais comuns em relação ao estupro e como eles afetam a forma como a sociedade vê vítimas e agressores?

    BA |

    Eu diria que um dos principais é o de que a violência sexual sempre envolve violência física. Esse tipo de imaginário não leva em consideração que, muitas vezes, não reagir pode ser uma forma de autopreservação da vítima, o que não implica em consentimento ou autorização.

  • G |De onde vem a crença de que quando uma mulher diz não, ela na verdade quer dizer sim?

    BA |

    Este senso comum está atrelado à ideia de que a sexualidade das mulheres deve ser pudica, contida e moderada, de que a mulher que “se dá valor”, com muitas aspas, deve sempre se resguardar e se proteger, pois dessa forma ela expressa sua moralidade. Esta é uma visão muito popular, ainda que nem sempre consciente.

Casos que ganharam repercussão midiática, por envolverem homens em posições de poder, permitem identificar como a questão do consentimento está relacionada a desigualdades e relações de poder

  • G |Como o consentimento aparece na legislação brasileira sobre violência sexual? Em que aspectos avançamos e o que ainda precisa mudar?

    Silvia Chakian |

    Temos um avanço significativo no aprimoramento das leis penais sobre crimes contra as mulheres em geral, uma evolução impulsionada nos últimos anos, pós-Lei Maria da Penha. Mas avançamos menos no debate aprofundado sobre consentimento. Na lei penal, a noção de consentimento ainda não tem definição legal específica, apesar de sempre ter gerado discussões. 

    Precisamos avançar na compreensão mais adequada dos contextos que envolvem os crimes sexuais de estupro e estupro de vulnerável: enquanto a falta de liberdade para a vítima consentir com um ato sexual é mais clara em situações de violência física ou grave ameaça, pouco se conhece sobre as situações em que ela é imposta por abuso de condições sociais, econômicas, religiosas ou culturais da vítima. 

    Mitos e crenças equivocadas sobre o estupro influenciam a forma de lidar com as provas desse tipo de violência, que nem sempre deixam vestígios passíveis de comprovação em laudos ou perícias. Também é preciso avançar na compreensão de como os estereótipos de gênero e as expectativas equivocadas sobre o comportamento das vítimas têm influenciado negativamente o julgamento desses casos, tanto no sistema de justiça como na sociedade e na mídia.

  • G |O que os casos envolvendo famosos, como o jogador Robinho e o produtor americano Harvey Weinstein, nos ensinam sobre consentimento?

    SC |

    Esses casos que ganharam repercussão midiática, por envolverem homens em posições de poder — como empresários, atletas, artistas ou líderes religiosos —, materializam as discussões sobre o consentimento para além do “näo é não” ou “somente o sim é sim”, porque permitem identificar como a questão está diretamente relacionada a desigualdades e relações de poder. 

    São casos que exemplificam como o abuso da condição de vulnerabilidade das vítimas para a imposição do ato sexual nem sempre se dá de forma escancarada, sob o olhar de testemunhas ou mediante emprego de força física e ameaças. Ao contrário, são muitos os contextos em que a vítima silencia, paralisa ou até diz “sim”, o que não torna essa relação menos abusiva e violenta. Porque não há consentimento válido quando há submissão por medo, por manipulação psicológica, coação moral, abuso da fé ou outras circunstâncias complexas.

  • G |O que pode levar alguém a não dizer “não” (ou a dizer “sim”) a uma relação sexual mesmo sem ter vontade?

    Arielle Sagrillo |

    Como alguém que trabalha com vítimas de violência, acho importante deixar claro que, em muitas circunstâncias, o consentimento pode ser uma mera formalidade porque ele é forçado, intimidado e manipulado. A gente chama de “consentimento viciado”.

    Na prática, estamos falando de fatores como coerção, violência, abuso ou manipulação, pressão social, de parceiros ou do grupo, medo de decepcionar o companheiro ou companheira, medo de rejeição ou do abandono, expectativas culturais (por exemplo, o sexo como obrigação no casamento), medo de uma reação violenta por parte da parceria caso o sexo seja negado, falta de conhecimento dos próprios desejos… 

    Nessas situações, o consentimento não representa, de fato, a vontade das pessoas envolvidas. Entender essas razões é essencial para promover uma cultura onde todas as pessoas se sintam livres e seguras para expressar seus desejos e limites de maneira clara e respeitosa.

    Os motivos pelos quais alguém pode ser incapaz de estabelecer limites saudáveis numa relação são variados, complexos e multifacetados — o que não significa dizer que a responsabilidade pelo sim e pelo não seja apenas individual, porque há um componente de aprendizado cultural e social importantes que estão colocados. 

  • G |Como comunicar o consentimento de forma efetiva? E como saber se o consentimento do outro é legítimo?

    AS |

    Comunicar o consentimento de maneira efetiva e garantir que ele seja legítimo envolve clareza, reciprocidade, respeito e disponibilidade para a negociação continuada. Envolve, mais do que isso, uma postura de colaboração em detrimento de uma postura que espera apenas um “sim” ou um “não”. É preciso buscar a construção de uma relação de parceria e protagonismo de ambas as partes, pautada na autonomia, na vontade e no desejo. 

    Por várias razões, muitas pessoas podem ter dificuldade de se expressar ou dar sinais claros do que querem ou não querem. Nesse sentido, mais do que uma série de comportamentos que devem ser adotados, como num checklist, acreditamos em olhar para as dificuldades comunicacionais e, a partir delas, construir novos modelos de relação. Mais perguntas e menos respostas prontas.

Produto

  • Precisamos Falar de Consentimento
  • Arielle Sagrillo Scarpati, Beatriz Accioly Lins e Silvia Chakian
  • Bazar do Tempo
  • 184 páginas

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