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ReportagemHora de tirar a beleza a limpo
Tendência que vem tomando o mercado, o ‘clean beauty’ carece de uma melhor definição, de regulação específica e ainda sofre críticas
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Hora de tirar a beleza a limpo
Tendência que vem tomando o mercado, o ‘clean beauty’ carece de uma melhor definição, de regulação específica e ainda sofre críticas
Se parabenos e petrolatos químicos antes passavam despercebidos nos rótulos de cosméticos, hoje esses componentes já definem a decisão de compra de um produto de skincare. O chamado clean beauty, o segmento que envolve produtos corretos com o meio ambiente, parece ser a tendência mais forte de um mercado total gigante e que apenas cresceu durante a quarentena. As projeções do mercado total de beleza apontam para um lucro próximo a US$ 190 bilhões no mundo em 2025 se o ritmo atual se mantém, enquanto o segmento dos produtos ambientalmente amigáveis, deve bater os US$ 48 bilhões, mais de um quarto do bolo inteiro.
Hoje, quase metade do mercado de beleza é dominado por cinco gigantes: Natura &Co, Boticário, grupo Unilever, grupo L’Oréal e Colgate-Palmolive Co. Entretanto, outros nomes já vêm surgindo e conquistado os holofotes. Sallve, Simple Organic, CARE Natural Beauty e B.O.B são alguns exemplos de marcas que nasceram com a premissa de produtos limpos, com zero testes em animais e envoltos em embalagens recicladas.
A nova face da indústria de beleza, que investe cada vez mais em tecnologia e apela para o público jovem, tem conquistado corações — e gerado polêmicas. Há quem fale que produtos ditos limpos são o futuro do skincare e bem-estar, por serem livres de componentes tóxicos, cuidarem da pele e não prejudicarem o meio ambiente. Por outro lado, o país carece de uma definição clara do que é clean beauty, o que atrapalha na confiabilidade das marcas. E tem quem defenda também que, na verdade, existe alguma sujeira por trás de todo o discurso limpo.
Mas afinal, quais produtos estão dentro da gama daqueles considerados “corretos”? Eles são de fato menos prejudiciais para você e o meio ambiente? E, no fim das contas, funcionam tão bem quanto os convencionais?
O clean é pop
É inegável que o mundo caminha numa direção mais sustentável, na moda, na alimentação ou na hora do skincare diário. “A sociedade civil está mais atenta, mais sensibilizada, e existe essa demanda do próprio consumidor por produtos que sejam mais engajados com as pautas ambientais, sociais, que valorizem as comunidades locais, a biodiversidade”, explica a diretora-executiva do Fashion Revolution Brasil, Fernanda Simon. No mundo dos cosméticos, as embalagens, componentes e testes clínicos têm seguido a premissa de não impactar negativamente nem a pele nem o planeta.
Beleza limpa não é sinônimo de produto, é quase uma filosofia de vida mais consciente
Mas nem só de mercadorias vive o clean beauty. Segundo Marcela Rodrigues, jornalista e criadora da plataforma de conteúdo A Naturalíssima, deveria ser um estilo de vida. “A ideia é sim comprar produtos mais seguros, mas também ser menos dependente deles. Você compra para complementar, não para se transformar ou gerar mais ansiedade. Beleza limpa não é sinônimo de produto, é quase uma filosofia de vida mais consciente.”
A jornalista diz que o clean beauty vem na esteira de uma série de causas que ganharam fôlego nos últimos tempos, como o veganismo ou a busca por orgânicos. “É uma tendência sem volta.”
A crise climática, cada vez mais urgente, parece ser outro grande motivo pelo qual tantos jovens têm se engajado em pautas sustentáveis — e lutado tão intensamente por um futuro mais promissor. Assim, empresas com propósito e que abraçam causas ambientais ganham destaque. Pouco a pouco, além de surgirem inúmeros negócios de skincare que carregam o movimento clean em seu DNA, gigantes da indústria de beleza também vêm aderindo à tendência. “Houve uma pressão da sociedade civil, que pedia por marcas mais responsáveis, e as grandes empresas precisaram aderir. O que é bom, porque se essas gigantes se mostram preocupadas, podem tanto inspirar seus consumidores como incentivar outras marcas a caminhar na mesma direção. Vira aquela ‘boa competição’, de quem traz mais inovação e alternativas”, explica Fernanda Simon.
Mas o que é clean?
“Produto clean é aquele que, em sua formulação, não contém ingredientes tóxicos. Ou seja, que você usa sem colocar em risco a sua saúde ou o meio ambiente”, explica Kelly Seligman, gerente de assuntos científicos e regulatórios da Amyris, uma empresa californiana de biotecnologia que desenvolve moléculas, ingredientes e produtos livres de toxinas. A definição, entretanto, não é única nem tem base acadêmica. O que se sabe é que existem as substâncias proibidas, como sulfatos, ftalatos, formaldeídos e petrolatos. Além das denominações complexas, são comprovadamente maléficas para a pele e para o planeta. “As proibições levam em consideração propriedades perigosas, que podem ser cancerígenas, mutagênicas ou tóxicas.”
Sem regras claras sobre o que é clean, aparece o ‘greenwashing’, empresas que se dizem conscientes com práticas nem tão limpas assim
O desenvolvimento de cosméticos livres de toxinas é a premissa do conceito de beleza limpa, mas não só. Marcas que vendem produtos em embalagens biodegradáveis ou apostam em componentes orgânicos também podem entrar no segmento clean. “O movimento funciona como chapéu para várias categorias, e leva de carona marcas mais híbridas, como as que usam sintéticos de origem vegetal seguros. É um mito a ideia de que os sintéticos fazem mal hoje. Tanto é mito que no futuro o clean beauty deve andar de mãos dadas com inovação”, explica Marcela Rodrigues.
A falta de uma delimitação clara abre espaço para que empresas se intitulem responsáveis e preocupadas, quando, na realidade, se comprometeram com uma simples embalagem reciclada. “Infelizmente não há no Brasil uma regulamentação que defina claramente o que é ‘clean beauty’, e por isso existe tanto ‘greenwashing’, empresas que se dizem conscientes e com formulações limpas, mas que na verdade não são”, conta Patrícia Camargo, advogada e cofundadora da CARE Natural Beauty.
Mariana Simonetti
Quem certifica
Antes da pandemia, a busca de empresas de cosméticos por selos naturais no IBD, maior certificadora de produtos orgânicos e sustentáveis da América Latina, vinha explodindo: crescia num ritmo de até 50% ao ano. Apesar da previsível queda recente, causada pelo evento de proporções globais, a tendência já voltou a ser de alta.
No Brasil, para se adequar às normas sanitárias, toda empresa precisa se regularizar na Anvisa, passando por um processo complexo que muitas vezes culmina na produção terceirizada, o que acaba por matar muitas microempresas regionais. Além do aval da agência, que ainda não tem uma regulamentação específica para cosméticos, uma empresa também pode recorrer a certificadoras particulares, como o próprio IBD ou a francesa Ecocert. “Quando uma empresa não tem o selo, significa que não abre suas portas para a verificação de uma terceira parte. Então pode escrever qualquer coisa no rótulo, porque não passa por crivo nenhum”, afirma Alexandre Harkaly, diretor-executivo do IBD.
No IBD, o processo de certificação demora cerca de três meses e leva em conta tanto as regras da Anvisa quanto normas da própria instituição. Inicialmente, a certificadora verifica e cobra ajustes nos documentos da empresa. Depois de aprovados, ela vai até a companhia para averiguar presencialmente o processo e as práticas de fabricação, assim como a qualidade dos ingredientes, o estoque e notas fiscais de compra, entre diversas outras questões.
A instituição oferece quatro opções de selo principais. A de produto orgânico, que requer que 95% dos ingredientes sejam de origem natural — como esta foi criada pensando em alimentos, são muito poucos os cosméticos que conseguem obter o nível exigido. O segundo selo é o de ingredientes naturais, que inclui no rótulo a porcentagem deles no produto, em geral bem distante da que é pedida pelo selo orgânico. Há também o selo vegano, que exclui ingredientes derivados ou testados em animais. E, por último, existe o selo europeu Natrue, que garante a natureza orgânica das linhas de produtos para venda no mercado externo.
Recorrer a essas certificações, é claro, tem um custo, que acaba se refletindo no produto. De acordo com Alexandre, o valor total pode variar de R$ 5 mil a R$ 20 mil por ano, dependendo da quantidade de produtos certificados. O que, segundo ele, seria um valor acessível inclusive para pequenos empreendimentos.
Para Marcela, da A Naturalíssima, não é bem assim. Segundo ela, muitas vezes pequenos negócios locais não têm recursos suficientes e correm o risco de serem denunciados à Anvisa. “Falta uma democratização, um sistema mais justo, porque produtoras locais e regionais acabam sendo marginalizadas e invisibilizadas, com marcas grandes engolindo o mercado.”
Nem todo mundo…
Embora seja uma tendência em franco crescimento no universo dos cosméticos, a “beleza limpa” não é uma unanimidade. Alguns cientistas e químicos especializados no setor apontam que, para começar, nunca houve sujeira nenhuma que precisasse de limpeza. O professor e pesquisador especializado em desenvolvimento de cosméticos Cleber Barros integra essa corrente. Segundo ele, a área é tradicionalmente muito bem regulamentada e segura no mundo. O que também inclui ingredientes sintéticos, cujo uso começou a ser questionado há alguns anos.
“O movimento clean beauty surgiu da desinformação de pessoas que não têm nenhuma vivência científica. Começaram a falar mal de ingredientes com base em boatos e estudos mal conduzidos, e isso começou a se alastrar”, afirma Barros, que comanda a escola de cosmetologia Vinia, em Campinas (SP).
Algumas das vítimas, ele diz, foram produtos como o alumínio utilizado em desodorantes, além de vários outros, tachados de tóxicos e acusados de causar problemas que vão desde uma suposta desregulação hormonal até câncer de mama. “Como profissional, venho tentando combater isso, porque a má informação acaba prejudicando toda a cadeia produtiva”, diz o pesquisador. “As pessoas começam a acreditar, sem motivo nenhum, que parabenos dão câncer. São conservantes usados há anos em cosméticos. Além de totalmente seguros, são excelentes e baratos, o que é ótimo para a indústria porque diminui o custo de produção.”
Para o professor de cosmetologia e farmacêutico Ricardo D’Agostino, o clean beauty é uma nova roupagem para um processo de naturalização das formulações cosméticas, não uma revolução no setor. E o marketing dessa nova tendência, na visão dele, tem sido mais tóxico do que os ingredientes convencionais que ele busca denunciar. “Existem alguns ingredientes problemáticos, sim, mas é tudo questão de toxicologia e saúde pública. Quanto mais pessoas expostas, mais saberemos sobre os problemas que um ingrediente pode causar na pele”, afirma o especialista, para quem existe uma tentativa fantasiosa de vender os cosméticos limpos como um mundo perfeito.
Já que nem ele consegue contornar as demandas do mercado, Barros oferece um curso de imersão em cosmetologia natural, um dos mais procurados em sua escola de Campinas. O especialista diz que o movimento é fruto de um surto do que chama de ecosseletividade, já que um único iPhone teria mais impacto ambiental do que os cosméticos que uma pessoa usa ao longo de toda uma vida. “Dizem, por exemplo, que o orgânico é sempre melhor. Mas depende. Para produzir algo natural, eu não uso defensivo agrícola. Aí a produtividade cai, então preciso produzir mais e numa área maior para não ter essa defasagem. E, com uma quantidade maior de terra, também vai mais água para irrigar e uma maior demanda de trabalho”, exemplifica.
Nunca podemos esquecer: nada é atóxico. A toxicidade sempre dependerá da dose e da exposição à substância em questão
Aliás, segundo D’Agostino, limpo ou natural nem sempre se traduz em mais segurança. “Todos os ingredientes listados para uso em cosméticos já foram avaliados em relação à segurança e toxicidade. E nunca podemos esquecer: nada é atóxico. A toxicidade sempre dependerá da dose e da exposição à substância em questão.”
E realmente funciona?
Sobre como funcionam os cosméticos considerados limpos, a resposta varia. Se Kelly, da Amyris, representante da indústria, reforça que os resultados são tão bons ou até melhores que os de produtos tradicionais e que isso deve ser reforçado por dados clínicos, Barros, por outro lado, diz que a efetividade hoje é reconhecidamente inferior.
De acordo com Barros, no entanto, existe um entendimento de que a natureza não produz ingredientes perfeitinhos para atender às nossas necessidades, diferentemente dos sintéticos, desenvolvidos justamente para esse fim. “Isso não é segredo para ninguém que trabalha na área. Até o consumidor percebe, por exemplo, que o cabelo não fica com um brilho tão intenso. Ou que um condicionador convencional trabalha melhor a fibra capilar que um natural.”
Marcela, do A Naturalíssima, afirma ser um mito a ideia de que há uma grande diferença de eficácia, mas diz que, em alguns casos, o consumidor precisa sim trabalhar sua expectativa previamente. Vez ou outra, é preciso aceitar que uma máscara de cílios natural pode não ser à prova d’água, ou então vai borrar quando você for às lágrimas. “O cosmético convencional é uma questão não só de eficiência, mas de um marketing baseado na novidade. Será que a gente precisa mesmo de um desodorante natural que, além de inibir o odor, também contém a transpiração? A transpiração não precisa ser inibida, é um processo natural.”
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