Já pensou em ser flexitariano? — Gama Revista
Isabela Durão

Já pensou em ser flexitariano?

Preocupados com saúde e sustentabilidade, flexitarianos reduzem consumo de carne e exploram novas lógicas e mercados no Brasil.

26 de Abril de 2021

Em 2020, o mundo produziu 337,2 milhões de toneladas de carne de frangos, porcos, bovinos e ovinos. Fora do prato, isso se traduziu também em perigo para a biodiversidade (86% das espécies ameaçadas sofrem com a pressão por terras agrícolas) e 15% das emissões anuais de gases de efeito estufa (se fossem um país, os bovinos seriam o terceiro maior emissor), além dos constantes questionamentos éticos e sanitários.

Paralelamente, prevê-se um aumento na demanda global por proteínas nos próximos anos – e a impossibilidade da Terra sustentá-la nos termos atuais.

De olho na crise climática e nas doenças relacionadas à má nutrição (que incluem desnutrição e obesidade), especialistas apontam com urgência para as dietas flexitarianas como saída, com uma alimentação à base de plantas e quantias menores de alimentos de origem animal. Atraídos principalmente pelo fator de saúde, os flexitarianos são cada vez mais numerosos, inclusive no Brasil.

Em uma pesquisa de 2020 com 2 mil pessoas de todas as regiões e das classes A, B e C, 50% afirmaram ter reduzido o consumo de carne no ano anterior, um aumento de 21% em relação à outra pesquisa de 2018. Ambas foram encomendadas pelo Good Food Institute Brasil (GFI), que promove as chamadas proteínas alternativas: alimentos à base de plantas que imitam produtos animais (plant-based, no jargão), carne cultivada à base de células e fermentação (insetos, outra proteína alternativa, não estão no horizonte do GFI).

Entusiastas das novidades biotecnológicas vêem um futuro com produção sustentável e eficiente, menor risco de doenças e proteínas para 10 bilhões de humanos em 2050. A solução passa por reduzir muito o consumo de carne tradicional e desenvolver proteínas alternativas a ponto de torná-las o padrão, iguais em sabor, textura e preço – por uma fração dos recursos naturais e sem sofrimento animal. Para tanto, a conscientização flexitariana é essencial.

O mercado no Brasil

“Quando começamos aqui, em 2017, era um deserto de proteínas alternativas. Havia muita dúvida se esse mercado emplacaria na terra do churrasco”, lembra Raquel Casselli, gerente de engajamento corporativo da GFI Brasil. Agora, mais de 100 empresas e startups atuam com proteínas vegetais no país, entre elas a brasileira Fazenda Futuro (avaliada em R$ 715 milhões), a norte-americana Beyond Meat (com ações que somam US$ 8,2 bilhões) e os próprios frigoríficos.

O primeiro produto do tipo, o hambúrguer de carne vegetal da Futuro, foi lançado em abril de 2019. Um mês depois, já havia concorrência. No mesmo ano, o plant-based somou 30% das vendas de hambúrgueres nas lojas Pão de Açúcar em São Paulo. Nos mercados, as opções são colocadas ao lado de carnes, queijos e leites tradicionais, não em seções de nicho. A ideia é tornar a troca simples: perto do filé comum, fica o filé plant-based.

A consultoria AT Kearney estima que, até 2040, as proteínas alternativas sejam 60% do mercado. Perante tais previsões, as corporações não perdem tempo. Um exemplo é um encontro articulado pelo GFI entre BRF e Aleph Farms, startup israelense de carne cultivada, que rendeu uma parceria para desenvolver carne cultivada no Brasil. Projeta-se uma produção mais rápida e barata em breve: ao invés de criar animais por anos, os cortes seriam produzidos em laboratório, sem abate e em poucas semanas.

Para surpresa de alguns, Bruce Friedrich, fundador do GFI, não come carne. Não só: foi vice-presidente do PETA, organização em prol dos direitos animais famosa pelas ações de confronto. No GFI, ele optou pelo pragmatismo no trato com os frigoríficos. Por vezes criticada, a estratégia segue a lógica de que tê-los produzindo cada vez mais proteínas alternativas e menos animais vai acelerar o atingimento da meta – e diminuir o número de seres abatidos e de emissões até lá.

Segundo a pesquisa de 2020, o público está alinhado: entre os 93% dispostos a consumir alternativas vegetais, a maioria não excluiria opções por conta do portfólio da empresa. “Olhamos para um mercado do ‘e’ e não um mercado do ‘ou’. O prato das pessoas será cada vez mais diversificado, alguns dias com proteína vegetal e outros, animal. E nós vemos a possibilidade de trazer essa diversidade para dentro dos negócios”, diz Raquel.

Os custos da dieta

Na média, o consumo de carne bovina no Brasil é superior ao recomendado pelo Fundo Mundial para Pesquisa em Câncer (até 500g por semana) e pela Comissão EAT-Lancet (até 200g para uma dieta sustentável para o planeta). Em 2020, mesmo com uma queda de 11% devido à alta nos preços, estima-se que foram 34 quilos por habitante, ou 650g por semana.

Mas falar sobre escolhas alimentares no Brasil é também falar sobre desigualdade social. No último trimestre de 2020, 19 milhões passaram fome no país e 116,8 milhões conviveram com insegurança alimentar ao longo do ano. Nesse contexto, discussões sobre diminuir o consumo devem ser cautelosas. “A carne é muito densa nutricionalmente. Em caso de pobreza extrema, ter acesso a ela é muito bom”, lembra Aline Martins de Carvalho, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP.

E há relações entre renda e consumo. Aline estuda e divulga a alimentação sustentável no Sustentarea, núcleo de extensão universitário, e publicou em março, com outros pesquisadores, um artigo sobre o custo de dietas sustentáveis no Brasil em termos financeiros e de emissões de gases de efeito estufa. Nele, descobre-se o custo médio diário per capita da dieta brasileira (US$ 2,16) e as emissões diárias associadas (4,40 kg de CO2 equivalente). Os dois números sobem conforme a renda. Ou seja, quem pode gastar mais, também escolhe uma dieta menos sustentável.

O modelo indica que uma alimentação diária de fato saudável seria de 14 a 24% mais cara e 10 a 27% menos poluente. A diferença no custo, porém, cairia se houvesse uma redução maior de produtos animais, principalmente de carne – e as emissões associadas, naturalmente, cairiam ainda mais.

De modo geral, alimentar-se de forma benéfica para si e para o planeta não precisa ser mais caro, só um pouco diferente. “Mas não adianta falar em reduzir o consumo de carne e colocar ali algo totalmente fora do hábito alimentar da pessoa. Ela não vai gostar. O pulo do gato é encontrar esse meio termo”, fala Aline.

A nível individual, ela sugere incentivar a curiosidade culinária, especialmente em centros urbanos: “Na cidade, a gente não vê o alimento crescendo. Se alguém tem uma hortinha em casa, mesmo de tempero, já começa a ter uma dimensão de que aquilo é um ser vivo, de que a natureza tem seu tempo. Depois que essa conexão existe, é ir para a cozinha e experimentar – colocar aquele hortelã e ver como fica.”

Desafiando o tédio alimentar

Quando Fernando Prado se decidiu pelo flexitarianismo, na virada do ano, já pensava no tema há tempos. A decisão foi facilitada pelo isolamento social, que lhe permite cozinhar mais em casa, e embasada por livros do estadunidense Jonathan Safran Foer, críticos gastronômicos e artigos sobre mudanças climáticas, agroecologia e bem-estar animal.

Avesso às proteínas vegetais análogas à carne, ele optou por questionar sua relação com os alimentos sempre que possível. “O pão não tem mais manteiga, faço no azeite o tempo todo. E já estou sem comer ovo em todas as refeições. Estou conhecendo outras lógicas”, fala.

“Essa é a proposta da alimentação à base de plantas: a pessoa desbravar o mundo vegetal e ver as possibilidades”, aponta Bruna de Oliveira. “E, quando feita de forma caseira, ela é mais barata. Só precisa receber a prioridade que merece, como ter um espaço na semana para fazer seus hambúrgueres, seus leites vegetais, o que quiser.”

Nutricionista por formação e comunicadora popular com mais de 20 mil seguidores, Bruna deixou o universo do jaleco para atuar em outra ponta. Defensora da agricultura urbana, ensina sobre alimentos alternativos, coleta nas ruas (desde que evitando-se vias movimentadas, devido à poluição do ar) e hortas comunitárias, trabalhando a conscientização sobre o sistema.

“Nunca tivemos tantos programas de culinária e ao mesmo tempo cozinhamos tão pouco”, fala. Um dos resultados que ela vê é a monotonia alimentar, perigosa para a saúde. Por isso, voltar para a cozinha é a dica principal. “Dá para aproveitar que tantas pessoas estão em casa e não deixar esse como um espaço de desânimo, mas de partilha.”

Depois de tentativas frustradas ao longo dos anos, Fernando tem conseguido emplacar sua dieta flexitariana em 2021. Consome pouca carne e prioriza peixes, cortes menos nobres ou de manejo sustentável. Consegue se lembrar de vários pratos carnívoros que consumiu, como tambaquis e sobrasada suína, justamente por guardá-los para ocasiões memoráveis. E já desenvolveu novos planos. “Agora minha ambição é não depender mais do supermercado, uma perspectiva que me anima demais. Explorar esse novo universo de comida vira um hobby e um desafio”, empolga-se.

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