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ConversasEudes Assis: "Pertenço àquele lugar onde as pessoas tiveram suas casas alagadas”
Chef e empreendedor social, ele comandou mais de 200 cozinheiros voluntários e arrecadou R$ 1,5 milhão para atender vítimas e trabalhadores da linha de frente dos deslizamentos no litoral norte de São Paulo, onde nasceu e vive hoje
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Eudes Assis: “Pertenço àquele lugar onde as pessoas tiveram suas casas alagadas”
Chef e empreendedor social, ele comandou mais de 200 cozinheiros voluntários e arrecadou R$ 1,5 milhão para atender vítimas e trabalhadores da linha de frente dos deslizamentos no litoral norte de São Paulo, onde nasceu e vive hoje
Em menos de 24 horas da tragédia que assolou o litoral norte de São Paulo no sábado de Carnaval deste ano, o chef Eudes Assis agiu: contou no seu Instagram o que estava acontecendo, reuniu 200 voluntários na cozinha do projeto social Buscapé, e montou uma vaquinha online com uma meta alta (R$ 1 milhão que virou R$ 1,5 milhão) de contribuições para a reconstrução das áreas e estruturas comuns da comunidade. Com vídeos diários, ele mostrava o trabalho, os “anjos” que o cercavam (como chamava os voluntários), e pedia mais ajuda.
Quem conhece o chef Eudes não se espantou. Há 12 anos ele é vice-presidente da ONG Buscapé, que usa a gastronomia como ferramenta de transformação social e é responsável pelo arraial que reúne chefs estrelados de todo o Brasil num fim de semana em Camburi. É dessa festa que saem os fundos para um ano de funcionamento do projeto e que custearam, ao longo dos anos, o edifício com duas cozinhas industriais e equipamentos tais como salá de balé e de artes marciais para as crianças da comunidade.
Agregador e animado, Eudes Assis fala em karma: acha que recebeu uma missão e que o que se leva da vida é o que se faz nela. Nascido num bananal de Toque Toque Grande, em São Sebastião, caçula de uma família de 14 filhos, sofreu bullying pelo cheiro de peixe caiçara, até entrar na primeira cozinha aos 17 anos. Começou a construir uma carreira exemplar, com passagens pelo Fasano, em São Paulo; uma temporada de estudos em uma das principais capitais mundiais da gastronomia, Lyon, na França, onde foi aluno do Institut Paul Bocuse e aa Cordon Bleu; um estagio no El Buli, na Espanha, um dos templos da cozinha molecular; e um giro de navio por 32 países até voltar para… sua comunidade natal no litoral paulista. Foi na França que entendeu: precisava defender o que é seu, os ingredientes e a comida caiçara. A decisão ousada e improvável para muitos se provou certa: há oito anos abriu e comanda o celebrado restaurante Taioba e há um ano a Padoca do Chef, ambos sucesso de público e crítica.
A Gama, ele conta essa história na entrevista abaixo, com momentos de forte emoção. O chef fala sobre o que o motivou a agir rápido e olhando sempre ao redor na tragédia recente. Não que seja uma novidade esse cuidado com o outro, Assis está sempre atento ao próximo, reunindo as pessoas, agindo em prol de sua comunidade. “Deus me deu essa missão de vida, é orgânico. Toda vez que eu puder ajudar a comunidade ou uma pessoa individualmente, eu vou ajudar. Eu nasci assim.”
Nunca vou esquecer de onde eu vim, nunca vou deixar os meus na mão
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G |Você foi muito ágil ao lidar com a tragédia, cozinhando, fazendo vaquinha. O que passou na sua cabeça naquele momento? De onde sai esse senso de comunidade, o cuidado com o outro?
Eudes Assis |Eu sou empreendedor social há 12 anos. A gastronomia social já faz parte da minha vida e do meu trabalho. Quando aconteceu todo esse desastre, eu já sabia que eu ia transformar a vida das pessoas com a comida, que é o que eu já faço há 12 anos. Recebi elogios, os parabéns, disseram “você é um anjo”, mas eu penso que esse é meu trabalho como empreendedor social. É tipo um dom que Deus me deu – eu tenho esse esse dom de conectar pessoas e de trazer recursos para o projeto Buscapé. Essa é a minha missão de vida.
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G |E como está a cozinha hoje? Vocês continuam o trabalho?
EA |Na verdade, aumentaram as demandas. No começo, atendemos o pessoal que estava na linha de frente – as pessoas da Defesa Civil, os bombeiros, o pessoal do Exército, a Polícia Militar. Agora, também as pessoas em vulnerabilidade por conta do desastre. As escolas e igrejas que abrigam as vítimas também estão me pedindo alimentação. Além das vítimas, das pessoas que perderam tudo, há as que perderam o fogão, por exemplo, e não conseguem cozinhar. A minha demanda já era alta no começo; agora é ainda maior.
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G |A vaquinha continua? Você teme que as doações parem? Como consegue gerir tudo isso?
EA |A vaquinha continua. Temos uma meta de R$ 1,5 milhão. Fomos aumentando as metas, como naquela história de que, quando se chega à meta, se dobra a meta, como dizia a nossa ex-presidente. Mas agora vamos parar porque até administrar esse dinheiro dá trabalho, tem que ter muita responsabilidade. Eu já trabalho assim, os insumos que chegam à cozinha hoje são doados, por isso não usamos a vaquinha. Esse dinheiro vai ser usado na reconstrução. Ele ainda está parado, mas já me reuni com a comunidade local – o líderes comunitários, o padre, a diretora da escola, alguns médicos da linha de frente, alguns comerciantes, o presidente da associação de turismo – para formar uma comissão e ajudar o coletivo, nunca uma pessoa individual.
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G |Como vocês devem fazer isso?
EA |Um exemplo: aqui a maioria das pessoas usa a água que vem da cachoeira. Mas hoje não podem consumi-la porque está contaminada, morreu muito bicho, infelizmente morreu gente. Uma coisa que podemos fazer é ajudar nas mangueiras para conectar a água de uma área. Compramos com nota fiscal com CNPJ do projeto Buscapé e ajudamos a comunidade. O dinheiro está disponível para a população usar com material, nunca com mão de obra. O trabalho tem que vir da comunidade mesmo, porque não temos como conseguir nota fiscal que comprove o gasto. A pessoa preenche um formulário para solicitar o material e há uma comissão que avalia e repassa o dinheiro sempre para o coletivo. Se uma casa perdeu uma geladeira e a pessoa pede R$ 5 mil, não é assim que funciona.
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G |Mas esse exemplo das mangueiras, não seria algo de responsabilidade do poder público?
EA |O poder público tem obrigatoriedades. Mas o que ele não faz, ou nunca fez, ou onde nunca chegou, nós vamos chegar.
Cada um com seu karma; acredito muito na lei do retorno, a pessoa que preste contas com o universo
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G |Como a comunidade está falando da reconstrução?
EA |Neste caso é mais o poder público que está falando, que entrou em contato com donos de hotéis da região para hospedar as pessoas que estão desabrigadas, cujas casas estão condenadas. A Defesa Civil está alocando essas pessoas e a reconstrução está sendo falada por líderes políticos. Tomara que seja o mais rápido possível.
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G |Você olhou muito ao redor. Como você se sente sobre as pessoas que não agiram com solidariedade? Isso é uma coisa que ocupa sua cabeça também?
EA |Eu sempre concentrei minha energia nas pessoas boas, de bem, engajadas em ajudar o próximo, que vêm aqui, que doam. Eu concentrei a minha energia só nessas pessoas. Esse outro tipo de ser humano aí, que tem muito infelizmente, fige que nada está acontecendo. E ainda tem outros que se aproveitam mesmo da tragédia para ganhar dinheiro. Eu acho que cada um com seu karma; acredito muito na lei do retorno, a pessoa que preste contas com o universo.
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G |Você rodou o mundo por anos, estudou fora, estagiou em alguns dos maiores restaurantes do mundo. E, no entanto, quando fez seu nome, decidiu fincar os pés na comunidade onde nasceu. Por que optou por esse retorno?
EA |Porque eu sou bairrista, né? Eu nasci e me criei aqui no litoral, eu amo esse lugar e quero envelhecer aqui. Viajei mesmo, a muitos lugares do mundo, mas eu acho litoral de São Paulo o mais lindo do planeta. E se eu posso somar à minha comunidade, por que não? Aqui é muito bom, mas também preciso ressaltar que hoje eu consigo ganhar dinheiro com meu trabalho aqui no litoral. Tenho um restaurante reconhecido, que dá movimento e lucro. Voltei para a minha comunidade, consigo trabalhar aqui e empregar gente local.
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G |Você também é conhecido por ter dado um status diferente à cozinha caiçara. Qual foi sua visão de apostar em uma cozinha e em um termo pouco valorizados? Você se entende como agente de mudança?
EA |Total sem modéstia, eu me vejo sim [como agente dessa mudança]. Quando comecei a trabalhar aqui nos restaurantes do litoral, muito jovem, eles se denominavam contemporâneos e mediterrâneos. Falar que fazia uma cozinha caiçara era falar que fazia algo não refinado, do nativo, da comunidade da praia. Eu tive que viajar para fora para entender tudo isso e levantar a nossa bandeira. Morei na casa de um professor universitário de línguas em Lyon e, nos fins de semana, ele recebia os amigos, franceses, espanhóis, portugueses, italianos. Eles tomavam todas, comiam muito, e começavam a brigar pelos seus produtos – “O Pinot da Borgonha não é melhor que o Sangiovese da Toscana”, “Esse presunto é melhor do que esse outro”, “Porque a trufa francesa não sei o quê” – e se ofendiam. Eles estavam defendendo a sua cultura gastrômica com unhas e dentes. Isso era 2002. Foi ali que eu pensei: “Poxa, ninguém briga pela nossa culinária caiçara, pelos produtos do litoral. Muito pelo contrário, as pessoas têm vergonha”. Quando eu voltasse ao Brasil, eu decidi, eu iria fazer como esses caras fizeram ail, iria brigar pela minha cozinha, aquela cozinha que me alimentou desde que eu nasci e me criei. Eu precisei sair para entender. Voltei em 2008 com esse intuito. E aí virou tudo isso aí que você já sabe.
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G |Como você explica então a cozinha caiçara? Por quais ingredientes vale a pena brigar como aqueles professores brigavam?
EA |Eu já briguei feio com uma revista. Eu fiz uma receita de peixe, o azul marinho, e a revista me falou que o prato não fotografa bem, que não é bonito. Eu até me emociono ao falar desse prato e respondi: “Sinto muito, mas esse é o nosso patrimônio imaterial, é o prato mais importante da culinária caiçara”. Ele tem um caldo escuro sim, porque a reação química da banana verde com a panela de ferro deixa o caldo escuro e azulado. Teve um outro grupo que ensinou o mesmo prato, o azul marinho, como se fosse um peixe cozido com banana madura numa panela de cerâmica linda Le Creuset. Mas é um grande desserviço chamar de azul marinho. Acarajé é acarajé, né? Os clássicos, sim, são tombados pelo patrimônio imaterial. Não pode falar que vai fazer uma espuma de vatapá ou uma massa de feijão preto e chamar de acarajé. Foi um grande desserviço para a comunidade caiçara, estamos batalhando tanto pela nossa identidade, eu brigo por ela.
Eu sei na pele o que é não ter comida, o que é ter casa invadida pela água, o que é não ter um tênis novo
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G |Você é empreendedor social há 12 anos. Qual é a importância dessa parte do seu trabalho em relação a todos os outros que você faz?
EA |Meus pais tiveram 14 filhos. Eu morei no bananal em Toque Toque Grande. Não tinha luz elétrica e minha mãe secava peixe no varal da minha casa. Na praia, sempre tinha os moleques de São Paulo com bicicleta, videogame, tênisinho, roupinha bonita, e a gente não né? Caiçara fede a peixe, né? A minha mãe colaborava com o bullying porque, no mesmo varal em que ela pendurava os peixes, ela pendurava as roupas. Eu sou prova viva de que a gastronomia é uma ferramenta social e de transformação de pessoas. Eu lavei louça, eu fui como aquele monte de gente que vem do Nordeste e que está nas cozinhas, que cozinham muito, que são a espinha dorsal da cozinha, mas não têm visibilidade. Eu os represento e sempre procuro falar com essas pessoas. As pessoas que saem do Cordon Bleu não se sujeitam a isso. Mas tem que fazer isso na cozinha sim, essa demanda existe.
Eu fui agarrando todas as oportunidades e óbvio que foram aparecendo anjos na minha vida. Mas as coisas começaram a acontecer de forma muito orgânica e eu nunca imaginei que seria hoje proprietário de um restaurante, de uma padaria, e que teria 36 colaboradores registrados com carteira assinada. Isso foi a gastronomia que me deu, a cozinha. Fico triste de falar que hoje entreguei cesta básica e materiais a meus amigos de infância. Eu pude comprar, com o meu trabalho, uma casa em um lugar privilegiado, mas o lugar que alagou era meu também. Eu pertenço àquele lugar. Poderia ser minha casa, minha família, se não fosse a gastronomia. É muito forte esse lugar. Hoje eu tenho condições de viajar, comer um menu degustação num restaurante Michelin – e até vou. Mas nunca vou esquecer de onde eu vim, nunca vou deixar os meus na mão, nunca esqueci minha origem. Eu pertenço àquele lugar onde as pessoas tiveram suas casas alagadas. -
G |Você é conhecido por ser um chef muito agregador, reúne os maiores nomes – e egos – da cozinha do país em prol do arraial do Buscapé. Qual o ingrediente secreto para transformar a gastronomia em uma comunidade?
EA |Ninguém tem dúvida da minha idoneidade. É tudo muito transparente aqui. Esse prédio em que eu falo com você tem uma sala de balé, uma sala de artes, um tatame incrível e duas cozinhas. E foi construído com o arraial gastronômico, então é sinal de que a gente sabe usar o dinheiro arrecadado com muita inteligência. As pessoas se espantam: “Você construiu isso aqui sem poder público?” Eu falo: “Com a rede de apoio dos meus amigos chefs”. Então todo mundo, os caras que topam participar, os grandes nomes, não têm dúvida. E essa confiança você passa com a contabilidade. Sobre os egos, tem chefs que não se falavam e voltaram a se falar porque aqui é um lugar pequeno, então eles vão comer juntos ou ficar hospedados no mesmo hotel. Tem histórias de chefs que reataram, outros que se conheceram e fizeram amizade, apesar de terem uma imagem deturpada do outro. Tem muitas histórias do arraial, o Buscapé consegue ser um projeto muito agregador.
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G |Acha que ter nascido em uma família tão numerosa o talhou para atuar na comunidade e na cozinha?
EA |Pode ser que sim, mas acho que foi mais o que eu vivi quando era criança. Eu sei na pele o que é não ter comida, o que é ter casa invadida pela água, o que é não ter um tênis novo. Eu nunca falo em Papai Noel para as crianças do Buscapé ou para o meu filho, digo que ele não existe. Eu ganhei brinquedo de Papai Noel aos 11 anos quando minha irmã mais velha casou. Eu pensei “Então o Papai Noel exclui as pessoas pobres? Os miseráveis?” Entendi que ele não existe. Eu fui uma criança que, em dezembro, não vi Papai Noel; ele não bateu à minha porta.
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G |O que é o melhor e o pior de fazer parte de uma comunidade de uma maneira tão intensa?
EA |Deus me deu essa missão de vida, é orgânico. Toda vez que eu puder ajudar a comunidade ou uma pessoa individualmente, eu vou ajudar, porque eu nasci assim. Já o pior da comunidade é muito pequeno, porque a gente reverte com a contabilidade: são as pessoas duvidarem da sua honestidade ou acharem que você está pegando carona para aparecer. Poxa, eu faço isso há 12 anos e ainda tem gente que acha que eu quero aparecer? Antes de ser empreendedor social, eu já era da cozinha, já tinha ganhado prêmio de chef revelação do Brasil. Não acho que eu sou um chefe superfamoso, mas empresto a minha imagem para o meu trabalho social. Mas aprendi a não gastar minha energia com isso.
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CAPA Como vai sua comunidade?
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1Conversas Eudes Assis: "Pertenço ao lugar onde as pessoas tiveram suas casas alagadas”
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2Reportagem O que podemos aprender com o circo?
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3Podcast da semana Maria Homem: "Em grupo, podemos abrir mão da realidade"
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4Semana Como fortalecer comunidades
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5Bloco de notas As dicas da redação sobre o tema da semana