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ReportagemIgualdade salarial: como garantir esse direito?
A disparidade de salários entre homens e mulheres aumentou. Para economistas, mudar esse cenário leva tempo, mas a lei que regulamenta remunerações iguais é um passo importante
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Igualdade salarial: como garantir esse direito?
A disparidade de salários entre homens e mulheres aumentou. Para economistas, mudar esse cenário leva tempo, mas a lei que regulamenta remunerações iguais é um passo importante
A desigualdade de salários entre homens e mulheres existe desde que elas entraram para valer no mercado de trabalho — no Brasil, com a industrialização, foi na década de 1930. Quase cem anos depois, a disparidade entre gêneros relacionada à remuneração ainda persiste e, pior, tem aumentado. É o que mostra o 2º Relatório de Transparência Salarial e Critérios Remuneratórios, divulgado em setembro pelos ministérios do Trabalho e Emprego e das Mulheres.
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De acordo com o levantamento, realizado a partir de dados de 50.692 empresas com cem ou mais empregados, em 2023 as mulheres ganharam, em média, 20,7% a menos do que os homens. Em março, o primeiro relatório, com base em informações de 2022, mostrava que a diferença era de 19,4%.
Esses documentos fazem parte das estratégias da Lei 14.611, que regulamenta a igualdade salarial e que, em julho, completou um ano de vigência. A legislação surgiu como um reforço ao que já estava previsto tanto na Constituição Federal quanto na Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT, que garantem o pagamento igualitário para trabalhos de mesmo valor. No entanto, apesar desses avanços institucionais, as disparidades persistem de forma estrutural, às vezes invisíveis ou naturalizadas.
Impactos e reações
A Lei 14.611 estabeleceu um marco ao obrigar empresas com mais de cem funcionários a publicarem relatórios de transparência, visando garantir que trabalhadores e trabalhadoras recebam igualmente ao desempenharem funções equivalentes. Além disso, as organizações que apresentarem disparidades precisam elaborar um plano de mitigação em parceria com entidades de classe.
A economista Marilane Teixeira, professora e pesquisadora do Cesit (Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho) e do Instituto de Economia da Unicamp, comenta que o primeiro ano da lei trouxe avanços, mas o impacto prático ainda é limitado. “Não houve tempo para uma evolução significativa. As empresas não foram notificadas para apresentar justificativas sobre disparidades salariais no primeiro relatório. Agora, com o segundo, o processo de autuação deve começar”, diz.
Teixeira destaca que, apesar de alguns campos econômicos terem demonstrado resistência — há companhias que se recusaram, por exemplo, a entregar o relatório, ficando sujeitas a uma multa —, a agenda da igualdade salarial mobilizou tanto empresas quanto sindicatos. “Os setores reagiram mal à ideia do relatório, alegando que ele fere a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Algumas associações empresariais entraram na Justiça para suspender a aplicação da lei e, enquanto o STF [Superior Tribunal Federal] não julgar o caso, haverá certa instabilidade”, explica.
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Ainda assim, ela acredita que o relatório é essencial para provocar uma conscientização sobre a cultura organizacional excludente em relação às mulheres, especialmente às mulheres negras. No país, uma mulher negra recebe, em média, 50,2% do que um homem branco. Em 2023, a remuneração média das mulheres negras foi de R$ 2.745,76, enquanto os homens brancos ganharam, em média, R$ 5.464,29.
Discriminações, desafios
Em “Iguais e Diferentes: Uma Jornada pela Economia Feminista” (Zahar, 2024), a economista Regina Madalozzo escreve: “É muito plausível que a discriminação salarial contra mulheres — e contra pessoas negras, ainda maior — não seja deliberada. Isto é, os empregadores e os departamentos de recursos humanos das empresas não têm tabelas de remuneração diferenciando homens e mulheres. Entretanto, uma série de fatores que se acumulam nas carreiras acaba por resultar em uma diferença salarial que evolui para a discriminação.”
Entre esses motivos estão a maternidade e a economia do cuidado, trabalho invisível e estruturalmente imposto às mulheres, que gastam cerca de 61 horas semanais em afazeres domésticos e cuidados com outras pessoas. São elas que mais levam os filhos ao médico, vão a reuniões escolares, fazem mercado e organizam as refeições da família.
Ocupações — e preocupações — que, por não serem divididas na grande maioria dos lares, já deixam a mulher com alvo de discriminações no trabalho. Mesmo que pesquisas mostrem que o número de dias que mulheres e homens ficam afastados do mercado de trabalho é muito parecido.
Em entrevista à Gama em maio, Ana Luiza de Holanda Barbosa, economista do Ipea, comentou sobre a necessidade de políticas públicas, creches, conscientização e estímulos para as empresas que olham para as trabalhadoras de uma forma mais amigável.
“Tem que colocar os incentivos na direção correta: licença parental, oferta de creche e novos formatos. Claudia Goldin, em um artigo, escreveu: ‘Como é que você vai terminar com a desigualdade de gênero? Não é pedindo para os seus maridos fazerem mais o trabalho de casa, embora isso não fosse também de todo ruim’. É você colocar uma estrutura mais adequada, mas flexível. É ter um lugar em que seja normal ser mãe e trabalhar. Tem que conscientizar quem demanda as trabalhadoras.”
Muitas empresas não percebem que, mesmo sem intenção, acabam pagando menos às mulheres
Economista e pesquisadora do GeFam (Grupo de Estudos em Economia da Família e do Gênero), Madalozzo ressalta que há resistência de algumas organizações em relação à lei. “Muitas empresas não percebem que, mesmo sem intenção, acabam pagando menos às mulheres. Algumas só se dão conta disso após analisarem os próprios relatórios”, afirma.
Madalozzo destaca que, para além da divulgação dos dados, o grande avanço da legislação está no reconhecimento do problema. “O que a lei trouxe foi um start. Ela fez as empresas perceberem que, muitas vezes, inconscientemente, reforçam essa diferença de gênero que existe na sociedade. Mas provar que se ganha menos para o mesmo trabalho é muito difícil na prática.”
De acordo com a especialista, a lei ainda precisa avançar em alguns aspectos como na definição clara de cargos e funções, o que facilitaria a comparação dentro das empresas. Mas frisa: “O importante é que a gente não pode retroceder na divulgação dos dados.”
Como garantir esse direito?
Mesmo com a regulamentação da lei e com os temas da equidade e da diversidade cada vez mais presentes nas corporações, muitos profissionais — e as mulheres, sobretudo — enfrentam barreiras para cobrar seus direitos no ambiente de trabalho. Afinal, quem é que tem coragem ou que pode se dar ao luxo de “negociar” com o patrão?
Muitas mulheres sabem que ganham menos do que os seus pares homens, mas têm medo de reclamar
A hesitação de conversar e se queixar para a chefia é um obstáculo, como aponta Regina Madalozzo. “Muitas mulheres sabem que ganham menos do que os seus pares homens, mas têm medo de reclamar. A insegurança de sofrer retaliações, como não ser promovida ou ser demitida em um lay-off, ainda é muito grande.”
A pesquisadora do GeFam fala que hoje não vê a legislação dando proteção a uma profissional para que ela tenha estabilidade depois de entrar com uma reclamação trabalhista. “Não sei se teríamos meios legais para isso, o que temos no momento são meios legais para que as empresas divulguem seus dados. A gente está várias casinhas atrás ainda. Por isso, é difícil que as mulheres possam fazer essa reclamação vir à tona e terem algum benefício com ela”, frisa.
Além do cumprimento da Lei 14.611, as especialistas acreditam que outras ações são necessárias para reduzir essa lacuna salarial. A medição da desigualdade salarial é apenas o primeiro passo. Em seguida, as empresas precisam desenvolver estratégias de correção, o que inclui revisitar processos de avaliação e progressão de carreira, que muitas vezes penalizam as mulheres.
Marilane Teixeira sugere a inclusão de medidas voltadas para a diversidade nas negociações coletivas: “Estamos estimulando que aspectos da lei sejam incluídos nas convenções coletivas para garantir que as empresas publiquem os relatórios e convoquem os sindicatos para discutir os planos de mitigação das disparidades.”
Apesar dos inúmeros desafios, as economistas acreditam no potencial da legislação implantada em 2023 para reduzir as desigualdades salariais a longo prazo. A lei não resolverá tudo de imediato, mas é um ponto de partida crucial para que empresas sejam responsabilizadas por suas práticas de remuneração e, mais do que isso, se conscientizem e mudem suas culturas organizacionais discriminatórias.
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