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ConversasAna Fontes: "Líderes mulheres até chegam lá, mas nos cargos maiores elas simplesmente desaparecem"
À frente da Rede Mulher Empreendedora, empresária e ativista aponta falta de mulheres em cargos mais altos e dificuldade de empresas para lidar com a maternidade
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À frente da Rede Mulher Empreendedora, empresária e ativista aponta falta de mulheres em cargos mais altos e dificuldade de empresas para lidar com a maternidade
Criada na periferia de Diadema (SP), ao lado de outros nove irmãos, Ana Fontes começou a trabalhar cedo para ajudar a complementar a renda dentro de casa. Ela considera que a educação, o fato de ter concluído o ensino básico e cursado uma faculdade, foi o principal fator que a levou a conquistar espaços no mercado de trabalho. Mas sempre com muita luta. “Para trabalhar nos ambientes privados, eu tive que estudar dez vezes mais, trabalhar dez vezes mais, mostrar dez vezes mais resultados”, conta em entrevista a Gama. Ainda no início da carreira, Fontes chegou a ocupar um cargo de gerente de marketing na Volkswagen, ambiente onde precisava lidar com o machismo corporativo e no qual suas capacidades eram diariamente questionadas.
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Hoje à frente da Rede Mulher Empreendedora, instituição que fundou em 2010 a partir de um blog que criou quando começou a empreender — em que falava sobre o tema com foco nas mulheres —, Fontes ajuda outras profissionais que, como ela, vêm de origens pouco privilegiadas para ocupar novos espaços no mercado. Ao longo desses 14 anos de atividade, a Rede e seu braço social Instituto RME já impactaram mais de 10 milhões de pessoas, entre mulheres e seus familiares, se tornando uma organização de referência no setor.
Embora os cargos de liderança ocupados por mulheres sejam mais numerosos do que no passado, pesquisas mostram que ainda há muito a avançar. Apenas 5% das posições de CEO no país hoje são ocupadas por mulheres, segundo levantamento da consultoria Vila Nova Partners. Além disso, apesar de 46% dos que começam a empreender no Brasil serem mulheres, de acordo com a pesquisa global sobre empreendedorismo GEM 2021, cerca de 54% delas ainda empreendem por necessidade.
“Essa mulher é empurrada a empreender porque falta espaço para ela no mercado. Além disso, ela empreende de forma precária, porque tem todo um entorno para resolver”, diz Fontes, em referência à grande parcela delas que enfrentam uma situação de vulnerabilidade e empreendem para botar comida no prato dos filhos e familiares. Para dar mais ferramentas a essas mulheres que acabam entrando no mercado com pouco ou nenhum preparo, a Rede Mulher Empreendedora oferece cursos, eventos e mentorias gratuitas voltadas para diferentes setores do mercado.
Além do trabalho no comando da instituição, a empreendedora também é vice-presidente do Conselho do Pacto Global da ONU Brasil, delegada líder do W20 — grupo de engajamento do G20 voltado para mulheres — e membro do Conselhão da Presidência da República. Ela defende a criação de políticas públicas para a oferta de crédito a empreendedoras, maiores incentivos do setor privado e uma legislação que ofereça uma rede de creches adequada para essas profissionais. “Ter uma política séria de creches, olhando para a perspectiva dessa mulher, também muda o jogo.”
Na conversa com Gama, Fontes reforça a importância de pensar em intersecções raciais e sociais na elaboração de políticas públicas, aponta a necessidade de mudanças estruturais nas empresas para uma maior diversidade e aconselha mulheres que estão começando a empreender no mercado atual.
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G |Apesar de termos vários exemplos positivos, uma pesquisa recente mostra que só 5% dos cargos de CEO no Brasil hoje são ocupados por mulheres. O que falta para avançarmos de forma mais contundente no tema?
Ana Fontes |Está muito distante ainda do que deveria ser, considerando que nós mulheres somos 52% da população. A maioria das pesquisas mostra que, em cargos de alta liderança, de diretoria para cima, ainda somos de 15% a 16%, então não temos uma mínima representatividade. Líderes mulheres até chegam lá, mas, nos cargos maiores, elas simplesmente desaparecem pelos fatores que a gente já sabe: o setor privado ainda não sabe lidar com a maternidade, a economia do cuidado e todas as outras questões mais estruturais. Eu estava conversando com um alto executivo que disse que tinha disposição para fazer essa mudança. Respondi: tem a disposição, mas não intencionalidade de querer mudar o jogo de verdade.
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G |Apesar de uma maior conscientização sobre a importância da igualdade de gênero no mercado de trabalho, por que esse processo tem sido tão lento? Como você apontou, as empresas resistem a mudanças mais profundas?
AF |Uma pergunta que sempre faço é: quem você está preparando para a sucessão na sua organização? Normalmente, os sucessores são homens. Então a chance de fazer essa mudança fica mais distante. Uma das coisas que muda o jogo é colocar mulheres na linha de sucessão com clareza. Não é natural que as pessoas pensem nisso. Você teria uma próxima geração de executivos com chances maiores de ser mais diversa. O segundo ponto é de fato abrir oportunidades. Outro dia, uma empresa de recrutamento me contou que eles tiveram que chamar a atenção de uma organização para que considerasse ter candidaturas de mulheres no processo seletivo. Associado a isso, estamos tentando endereçar uma questão conjuntural tanto no W20 — o grupo de engajamento do G20 na pauta de mulheres, que eu lidero — quanto em outros movimentos: a economia do cuidado. Parte dos problemas das mulheres não conseguirem ocupar esses espaços é porque o cuidado ainda é majoritariamente feito por elas. Enquanto a gente não olhar para isso de forma mais profunda, entendendo que o cuidado tem que ser reconhecido, compartilhado e valorizado financeiramente, esse jogo fica cada vez mais difícil. Um homem numa posição executiva não tem toda essa bagagem, então larga com uma diferença enorme. Mesmo que seja uma mulher privilegiada, ela já tem toda essa carga mental.
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G |Quase metade das mulheres empreendedoras no Brasil são negras, mas uma boa parte empreende por necessidade. Fica complicado falar em liderança feminina quando tantas empreendem para sobreviver? E, ao formular iniciativas, é importante pensar nessas intersecções raciais e sociais?
AF |Precisamos tratar dessa interseccionalidade pensando não só em mulheres negras, mas também em mulheres 50+, indígenas, quilombolas, trans… Elas também podem e estão preparadas para ocupar cargos de liderança. Se a gente não olha para isso no setor privado, o movimento de muitas é ir para o empreendedorismo, e não necessariamente é o que elas gostariam. Então essa mulher é empurrada a empreender porque falta espaço para ela no mercado. Além disso, ela empreende de forma precária, porque tem todo um entorno para resolver. Para as mulheres em situação de vulnerabilidade, que são a maioria, elas buscam empreender porque o mercado de trabalho é extremamente hostil. Precisam botar dinheiro em casa, ajudar a sustentar a família através de um pequeno negócio. É uma luta por sobrevivência, não necessariamente para ganhar dinheiro, pensando em uma oportunidade ou inovação. Isso é uma minoria. Então a gente precisa atuar para que elas tenham mais apoio. É a causa da minha vida, que elas consigam empreender de forma melhor, mais estruturada e com políticas públicas que as apoiem.
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G |Você começou a trabalhar cedo e atuou num cargo de gerência na Volkswagen. Quais foram os maiores desafios dessa trajetória?
AF |A minha jornada é muito parecida com a de outras mulheres fora de uma situação de privilégio. Vim de uma família muito pobre, uma entre dez filhos, numa situação difícil de sobrevivência. O que mudou o meu jogo foi a educação, conseguir estudar em escola pública. Uma vez tentei participar de um programa de trainee, e me responderam que eu não tinha vindo de um colégio de primeira linha, de uma boa faculdade e não falava inglês. É um absurdo, mas esse comportamento continua até hoje. Essas condições nos colocam em desvantagem. Para trabalhar nos ambientes privados eu tive que estudar dez vezes mais, trabalhar dez vezes mais, mostrar dez vezes mais resultados. Isso num ambiente muito masculino e machista, como é a nossa sociedade, que o tempo inteiro contestava a minha capacidade. Isso vai te exaurindo, você vai cansando. Além disso, tem o desafio financeiro. Se você não é uma pessoa privilegiada, quando vai conquistando seus espaços e ganha um pouquinho mais de salário, esse salário não é para você. Tem que ajudar a família. Tudo acaba sendo mais sofrido.
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G |Isso te levou a deixar o ambiente corporativo mais tradicional e começar a Rede Mulher Empreendedora?
AF |Foi a combinação de um ambiente super hostil para a mulher e o fato de eu ser de origem negra, nordestina, criada na periferia de Diadema. Não era uma combinação comum dentro desses ambientes, que são cheios de preconceitos. Suportei isso durante um período, mas com a vinda das minhas filhas — a maternidade é um gatilho muito importante para as mulheres —, comecei a pensar em como tornar as coisas diferentes para mim e outras mulheres. Saí da Volkswagen em 2007 e comecei a empreender em 2008. Criei uma plataforma de recomendações positivas na internet e um espaço de coworking. A partir desses negócios, vi um monte de mulheres como eu, também empreendendo, e aí comecei um blog para falar da minha jornada. Mas falar a realidade, a vida como ela é. Eu contava nesse blog como resolvia problemas, como as coisas davam ou não davam certo. Para minha surpresa, em seis meses eu tinha 100 mil mulheres assinando. De forma muito orgânica, as mulheres iam pedindo coisas. Pediram para fazer um encontro, eu criei o Café com Empreendedoras; uma pedia ajuda, eu colocava outra que entendia do setor para ajudar. Assim a rede foi crescendo e fui estruturando com a ajuda de muitas pessoas.
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G |Hoje a gente já vê outras ações como o Mulher Empreendedora, de executivas que usaram o sucesso para impulsionar outras mulheres. Qual tem sido o impacto disso para o empreendedorismo feminino no Brasil?
AF |Ter uma rede de apoio é fundamental para as mulheres poderem caminhar. Quando a Rede Mulher Empreendedora começou, 14 anos atrás, praticamente só existíamos nós. Hoje são mais de 240 no Brasil, nos mais diversos segmentos. A gente conseguiu, mesmo andando a passos muito pequenos, evoluir um pouco por conta dessas ações. Ainda temos uma jornada enorme. Hoje, a Rede Mulher Empreendedora e o Instituto, nossa organização do terceiro setor, têm 2,5 milhões de mulheres conectadas no Brasil inteiro. Nesses quase 15 anos, a gente já impactou mais de 10 milhões de pessoas, considerando a mulher e o seu núcleo familiar. Os depoimentos que a gente recebe são nesse sentido: que bom que eu consegui fazer os cursos com vocês, com isso consegui empreender melhor ou consegui um emprego. O que a gente acredita é que criar autonomia econômico-financeira muda o jogo para as mulheres.
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G |Hoje você é membro do Conselhão do governo Lula. Como avalia a atuação do governo no tema? Quais mudanças e legislações você considera cruciais neste momento?
AF |Faltam políticas públicas. Semana passada eu acompanhei o lançamento do programa Acredita, que oferece crédito acessível para todos os micro e pequenos negócios, bastante focado em mulheres. O Acredita sozinho não vai mudar tudo, mas a gente precisa de políticas como essa, porque acesso a capital é um dos grandes desafios para as mulheres empreenderem. Outra política muito importante é de acesso ao mercado. Fazer como nos EUA, que dá uma forte recomendação para que empresas comprem de pequenos negócios de grupos minorizados. Essa é uma política importantíssima. Imagina que o setor público, um dos maiores compradores do país, e o setor privado façam o que a gente chama de compras inclusivas. Isso muda o jogo. Nós da Rede vamos investir para que essa política chegue na ponta. A terceira política é a do cuidado. As mulheres empreendedoras com filhos pequenos, em situação de vulnerabilidade, não encontram creche. Como é que vão empreender? Não existe essa visão romantizada de que a mulher pode trabalhar dentro de casa com um bando de filhos em volta. Fica impossível. E não é só ter creche, é ter creche adequada à realidade dessas mulheres. Faria uma diferença ainda maior para as mulheres empreendedoras, que não têm horários tão certos como no setor privado.
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G |Como vice-presidente do Conselho do Pacto Global da ONU Brasil, o que é importante fazer para que as diretrizes da organização sobre igualdade de gênero se concretizem? Ainda são poucas as empresas que aderiram a compromissos como ter 50% de mulheres líderes até 2030?
AF |Eu não acho que tenham problema de adesão. A grande dificuldade das empresas é entender qual caminho seguir. No fim, não existe má vontade. O que há mesmo é um contexto bastante complexo. Não é ligar e desligar um botão para termos 50% de mulheres em cargos de liderança. Precisa haver um movimento intencional. E muitas vezes, no dia a dia dessas empresas, o assunto é deixado de lado. O volume de empresas aderindo ao Pacto Global é enorme, acho que o Brasil está na segunda posição no mundo. Mas precisa aderir e cumprir os compromissos. Aí é que as coisas ficam mais nebulosas. Fazendo adesão, você entende o que é esse ambiente de diversidade, vê os números em todos os setores. A partir daí, tem empresa mais adiantada nesse processo e empresa que ainda está começando a ter uma sensibilização interna. O que a gente tem feito é mostrar que diversidade e inclusão, assim como ESG, não é uma pauta apartada da estratégia do negócio. As empresas mais diversas e inclusivas são mais inovadoras e têm maiores chances de sobrevivência. As pesquisas mostram que são empresas com maior lucratividade.
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G |Ao mesmo tempo que se explora com frequência exemplos individuais de superação, é importante lembrar que também há muitas mulheres que batalham a vida inteira sem sucesso no mercado atual? Só assim para ter ideia de um cenário mais realista?
AF |É super importante. A representatividade não pode ser, entre dez pessoas no conselho de uma empresa, ter uma mulher. Isso não é representatividade. Você precisa trazer mais mulheres para esses espaços em toda a sua pluralidade, porque aí consegue ter uma visão crítica, uma densidade de discussão e pensamento. Ter só uma mulher é o que a gente chama de tokenização. Uma mulher, uma pessoa negra, e ponho um check-in na caixinha da diversidade. Isso não é suficiente. Você precisa de fato ter uma quantidade de mulheres nesses espaços que permitam essa movimentação.
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G |Que conselho você daria para tantas mulheres que estão começando a empreender, seja por vontade ou necessidade? O que gostaria de ter ouvido lá atrás?
AF |A primeira coisa é ter um pouco mais de paciência. Quando a gente é jovem, tem pouca. Busque muito conhecimento, porque existe uma visão errada de que, para empreender, não precisa aprender. A realidade no mundo de hoje é diferente de algumas décadas atrás. Hoje tem muito conhecimento gratuito ao qual temos acesso. Outra coisa é buscar uma rede de apoio. Empreender é solitário, muitas vezes você tem vontade de desistir. Se está conectado a uma rede, a chance de continuar vai ser maior e melhor. A terceira coisa é procurar um mentor ou mentora. Eu tive vários mentores na minha jornada como empreendedora. Muitas vezes ia dormir falando: amanhã vou fechar porque não dou conta mais. E aí uma pessoa segurava minha mão, me dava um conselho, abria uma porta. E, por último, trabalhar fortemente a saúde mental. É fundamental estar bem emocionalmente para tocar um negócio, que tem muitos altos e baixos. Se a pessoa não está mentalmente bem, a chance de dar errado é muito grande.
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CAPA Como ter mais mulheres líderes?
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