Como recuperar a coragem depois da pandemia? — Gama Revista
Como ter coragem?
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Mariana Simonetti

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Reportagem

Irmão, é preciso coragem...

Com o medo e a ansiedade alimentados pela pandemia, como recuperar o ânimo e a ousadia para viver uma vida plena e saudável?

Leonardo Neiva 14 de Novembro de 2021
Mariana Simonetti

Irmão, é preciso coragem…

Com o medo e a ansiedade alimentados pela pandemia, como recuperar o ânimo e a ousadia para viver uma vida plena e saudável?

Leonardo Neiva 14 de Novembro de 2021

Quem leu o livro ou assistiu ao filme clássico “O Mágico de Oz” vai lembrar da cena. O imponente leão das selvas se encolhe todo e chora depois de levar um tapa bem aplicado pela menina Dorothy em seu focinho. A exemplo dos colegas Espantalho e Homem de Lata, a quem ele logo se junta em busca do mago que deveria ser a solução para seus problemas, o Leão vem sentindo a vida toda que lhe falta um detalhe fundamental: a coragem.

Assim como o Leão da história criada pelo escritor infantil L. Frank Baum (1856-1919), alguns pesquisadores e estudiosos enxergam a geração atual como uma das mais medrosas da nossa história. E isso apesar de supostamente vivermos uma das eras mais seguras e menos bélicas da existência humana.

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Um dos motivos apontados por especialistas é o avanço dos meios de comunicação nas nossas vidas, em especial a internet e as redes sociais, que promovem um bombardeio diário de informações sobre nossos cérebros indefesos. Outro seria o aumento da ansiedade, que já vem há certo tempo fazendo crescer alguns dos nossos maiores pesadelos.

Em meio a tudo isso, uma pandemia de proporções globais certamente não veio para ajudar. Hoje, depois de forçar bilhões de pessoas a se entocar em casa por mais de um ano, evitando ao máximo qualquer tipo de relação física, muita gente ainda vem enfrentando pânico na tentativa de retomar uma rotina fora do lar. E isso mesmo com o avanço da vacinação e os números de casos e mortes, que vêm caindo há meses no Brasil.

Com a globalização e a rapidez de difusão das informações pelos meios de comunicação e pelas mídias digitais, é mais fácil prever perigos

É importante lembrar que o medo não é em si uma emoção negativa, mas parte biológica do ser humano essencial para sua sobrevivência. Segundo a professora de psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), da USP, Valéria Barbieri, os medos nunca desaparecem, mas vão mudando com a história, de acordo com o tempo e o lugar em que uma determinada população vive. “O problema é que, com a globalização e a rapidez de difusão das informações pelos meios de comunicação de massa e pelas mídias digitais, é mais fácil prever os riscos e perigos. Aquilo que está acontecendo do outro lado do mundo fica muito próximo de nós. Logo, as pessoas estão mais expostas a situações que despertam medo e ansiedade.”

O medo, aliás, não nos faz perder só oportunidades. Se experimentado em exagero, ele pode afetar de forma grave a estabilidade mental e ter impacto até sobre a saúde física. Mas como lidar com ele quando tantos estímulos, internos ou externos, dizem que estar constantemente assustado pode ser o estado natural das coisas? Para entender melhor o momento que a sociedade vive, Gama conversou com especialistas e estudiosos que indicam caminhos para ter mais coragem no dia a dia, mesmo sem, para isso, precisar pegar a estradinha de tijolos amarelos ou buscar a ajuda de algum mágico poderoso numa terra distante.

Passinhos de bebê

De um ponto de vista histórico e social, o psicanalista e pesquisador especializado em neurociências Gregor Osipoff discorda que hoje existam mais estímulos para sentirmos medo do que no passado. “Já tivemos duas guerras mundiais, revoluções violentas em países como Rússia e China, guerras como a do Vietnã. Hoje vivemos um dos momentos com menos medo de verdade em relação à nossa própria existência.”

A diferença, ele afirma, é que estamos interconectados de uma forma que nossos antepassados nem imaginavam ser possível. Basta lembrar que poderiam demorar semanas antes que nossos avós ficassem sabendo novidades de conflitos distantes, como os que ocorreram na Europa ao longo do século passado. “Antigamente, as notícias eram filtradas. Hoje, as redes sociais retiram esse filtro que a comunicação tinha no passado, muitas vezes controlado por instituições comoo Estado e a Igreja. Está tudo escancarado, disponível para a interpretação de cada um”, declara o psicanalista.

Nesse estado de coisas, com a globalização e o estabelecimento dos meios de comunicação digitais, a pandemia de covid-19 alcançou um resultado que mesmo epidemias anteriores não tinham chegado perto de conseguir. Como talvez só tenhamos visto antes em histórias de ficção científica, a Terra efetivamente parou. Mais de um ano e meio depois, mesmo com a vacinação em massa e os números de casos e mortes em queda livre, como se recuperar totalmente de algo do tipo?

Segundo Osipoff, que observa casos assim diariamente na clínica onde atende em São Paulo, ao menos um terço de seus pacientes considera a flexibilização um erro e deve se recusar ainda por algum tempo a voltar à vida que vivia antes. Na maioria dos casos, ele diz, a coragem é sim essencial para retomar a rotina e viver de forma mais saudável — ainda que, é claro, com cautela e seguindo as recomendações dos órgãos de saúde, já que a pandemia segue em curso. No entanto, o psicanalista afirma que forçar a barra ou deixar de reconhecer os próprios limites pode acabar sendo prejudicial.

“É um restart após uma ruptura, depois de vivermos durante um longo tempo confinados num lugar pequeno”, explica o especialista. “Para muitos, é bom recomeçar de forma paulatina, com passinhos de bebê.” De acordo com Osipoff, não existe um novo normal, mas sim um novo normal específico para cada um. “É preciso definir seus medos de acordo com a sua expectativa. Ande devagar, não vá com muita sede ao pote, especialmente se a ansiedade já está lá no topo.”

 Mariana Simonetti

Coragem, mas com cautela

De origem francesa, a etimologia da palavra coragem aponta não para o cérebro, mas para o coração. Seu sentido original tem a ver com sentimentos, a coragem de dizer o que se pensa. O medo, no entanto, apesar de poder ter uma parcela relevante de irracionalidade, geralmente se baseia em informações externas que recebemos, possuindo ao menos uma base lógica. “Quanto mais você sabe dos riscos, mais medo tem”, pontua a psiquiatra Livia Castelo Branco.

De origem francesa, a etimologia da palavra coragem aponta não para o cérebro, mas para o coração

Ao se pensar em ter coragem neste momento, no entanto, é preciso tomar cuidado para não levar a origem do termo tão ao pé da letra, como uma espécie de bravura de se colocar em risco, lembra a psiquiatra. Para ela, vivemos sim um momento que permite um maior cuidado com a saúde mental e física, algo que era mais difícil no isolamento total. Isso envolve também a possibilidade de socializar com maior frequência e praticar exercícios físicos. Mas o momento não favorece descuidos. Portanto, cuidados como o uso da máscara e álcool gel em todos os momentos e a preferência por lugares abertos e arejados seguem valendo para evitar o contágio, mesmo após a vacinação completa.

Tentar se desligar do excesso de informações ou mudar o foco de temas como saúde ou as várias crises que enfrentamos, seja financeira, social ou climática, pode ser uma ação individual positiva, segundo Livia. O mesmo vale para tentar se desconectar das redes sociais, que podem ser propagadoras de boas notícias, mas também de fake news, opiniões que causam mal-estar ou até ansiedade, “caso você tenha amigos mais ansiosos que você”. “A principal coisa é filtrar o que você consome de informações diariamente, já tendo em mente aquilo que te faz bem e o que te faz mal.”

Aprendendo a rugir

Em uma pandemia, estamos de frente para alguns dos nossos maiores medos. Encarar esse fato é um primeiro passo fundamental para conseguirmos atravessar o momento de maneira segura, com boa saúde física e mental, diz Gustavo Arns, especialista na promoção da felicidade e do bem-estar. “Quando lido de maneira saudável com o medo que sinto, posso usar essa emoção como mecanismo para minhas ações.” Por outro lado, quando não lidamos com ele, o sentimento pode se transformar em ansiedade ou até crises de pânico, em casos mais graves.

Algo que hoje já é possível, os encontros físicos com amigos e familiares são um dos pontos que mais ajudam a manter a boa saúde mental, explica Arns, que é idealizador do Congresso Internacional da Felicidade. Se engajar com frequência em exercícios físicos e em algumas de suas ações favoritas, como hobbies e atividades de lazer, ajuda a alcançar um estado mental mais relaxado. Nem tudo, no entanto, é válido. “Não pode ser simplesmente Netflix ou redes sociais. Isso é passivo, tem que ser uma atividade mesmo.”

A palavra para enfrentar o medo que vivemos hoje é confiança. Confiança em si e no outro, na ciência

Para a professora de psicologia da USP Valéria Barbieri, não existe solução mágica que nos permita simplesmente desviar do medo que sentimos. Lidar com ele, portanto, deve ser resultado de muito conhecimento, reflexão e assimilação. “Penso que a palavra para enfrentar o medo que vivemos hoje é confiança. Confiança em si e no outro, confiança na ciência, confiança de que estamos todos trabalhando para ultrapassar esse acontecimento que tem causado tamanha devastação.”

Assim como a coragem não pode ser desmedida, Valéria destaca que a confiança também não deve ser cega. Nesse caso, o perigo é decair para a negação. O próprio medo deve continuar presente, ainda que controlado. É desse equilíbrio que deve surgir uma maneira de viver, que tome sim todos os cuidados necessários para preservar a si mesmo e ao outro, mas sem se deixas paralisar pelas muitas inseguranças.

O medo que transmitimos

Pode até ser que parte dos nossos medos e traumas sejam transmitidos para os filhos geneticamente, mas existe grande chance de acabarmos passando esses temores adiante, consciente ou inconscientemente, com muito mais impacto nos períodos de convivência. Valéria, que vem orientando um estudo sobre o assunto, observa que o medo dos pais de perder suas posições financeira, social e profissional, por exemplo, se reflete com frequência nos seus objetivos para a educação dos filhos.

“Existe uma busca para fornecer à criança ferramentas para lidar com um mundo competitivo e especializado. Por isso é comum observar nelas uma intensa carga de atividades para o seu ‘aperfeiçoamento’, como aulas de idiomas, esportes e artes, que geram estresse”, explica a professora.

Além dessa pressão desde muito cedo para que as crianças sejam competitivas e se tornem “a melhor versão de si mesmas”, Valéria observa que boa parte delas também está sendo exposta precocemente a conteúdos adultos, que ainda não têm capacidade de absorver, seja pelas redes, pela internet ou pela televisão.

Se você parar para refletir sobre um medo que superou, vai perceber que atrás dele existe muita vida. A coragem precisa ser um exercício

Uma prova de que essa influência tem acontecido com frequência é o fato de que muitos terrores infantis estão mais atrelados a perigos reais hoje do que acontecia no passado. “O medo de um tsunami, raio, queimadas e ladrões têm predominado sobre aqueles de monstros e criaturas fantásticas, dos fantasmas, das bonecas e dos pesadelos, principalmente nas meninas e nas crianças de escolas particulares”, declara. Felizmente, segundo Valéria, a fantasia ainda segue sendo parte importante do universo e da vivência infantil, o que, nessa fase, é um dos principais estímulos para o pensamento e o raciocínio.

Para evitar passar esse medo aos filhos, netos ou amigos, no entanto, o ideal mesmo é lidar melhor com a questão de forma individual, afirma Arns, que destaca que a coragem é fundamental dentro da psicologia positiva para garantir uma vida mais feliz. “Se você parar para refletir sobre um medo que superou, como o de montanha-russa, vai perceber que atrás dele existe muita vida. Para vencê-lo, a coragem precisa ser um exercício, um encontro marcado consigo mesmo.”