Maria Homem: ‘A transformação é lenta, é dureza, é trabalho' — Gama Revista
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Veridiana Scarpelli

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Conversas

Maria Homem: 'A transformação é lenta, é dureza, é trabalho. Só você pode fazer'

A psicanalista Maria Homem fala sobre o otimismo da ideia de um Ano Novo como ferramenta de sobrevivência e o lento processo que envolve uma real renovação

Isabelle Moreira Lima 20 de Dezembro de 2020

Maria Homem: ‘A transformação é lenta, é dureza, é trabalho. Só você pode fazer’

Isabelle Moreira Lima 20 de Dezembro de 2020
Veridiana Scarpelli

A psicanalista Maria Homem fala sobre o otimismo da ideia de um Ano Novo como ferramenta de sobrevivência e o lento processo que envolve uma real renovação

O ano de 2020 foi tão difícil quanto uma prova de resistência. Pandemia, crise financeira, violência e racismo extremos. E, claro, com o fim de um período tão duro é apenas natural esperar que as coisas vão melhorar, seguindo a lógica de que não tem como piorar e que o “novo” é sempre melhor. Para a psicanalista Maria Homem, pesquisadora do Núcleo Diversitas da USP e professora da FAAP, no entanto, essa ideia é ficcional, está no âmbito do pensamento mágico, mas tem lá sua função, como uma estratégia de sobrevivência, que nos faz seguir adiante em uma eterna repetição da vida.

Maria Homem acompanhou com cuidado e atenção redobrada o ano que se encerra em poucos dias. Da sua prática psicanalítica, observou que os comportamentos dos pacientes foram amplificados. “Irrequietos não conseguem ficar quietos ou em casa. Deprimidos ficam mais tristes e ansiosos. Loucos ficam mais delirantes. Agudizar seria o verbo destes tempos?”, escreve no livro “Lupa da Alma – Quarentena revelação”, que lançou em setembro pela editora Todavia e em que analisa as angústias causadas neste ano. “A coisa mais importante de 2020 foi sem dúvida a psique, que transbordou, se revelou”, disse a Gama.

Ter um ano efetivamente novo, de mudança e transformação, é algo que a psicanalista vê com desconfiança. Primeiro porque o “novo” é um termo usado historicamente em movimentos violentos. Segundo, porque, como ela diz, “o inconsciente é um bichinho repetitivo”.

Maria Homem fala sobre a vida como uma sequência de repetições, de como tentamos mudar mas caímos no mesmo quase que invariavelmente, e que para mudar de verdade é preciso trabalhar muito, investir, suar, abrir mão de coisas que trazem prazer. “Paga-se um preço alto, não só pela análise, mas sobretudo ao abrir mão de um gozo, de um lugar que está muito cansativo, de onde você não consegue sair. É esse o paradoxo”, afirma na entrevista que você lê a seguir.

Para mudar e ter algo novo é ralação, trabalho

  • G |O ano de 2020 foi muito difícil. Há tanta confusão envolvendo a pandemia, a vacinação, o cenário político e econômico que 2021 não parece alvissareiro. Por que ainda assim a gente fica com a expectativa de que o próximo ano seja melhor?

    Maria Homem |

    O que chamamos vida talvez seja uma coisa muito mais caótica do que gostaríamos. É uma sucessão contingencial de encontros, desencontros, eventos, erros e acertos; a eterna batalha entre o caos e a ordem. Buscamos ordenações, e isso é muito importante, mesmo que sejam ficcionais. O simbólico não é nem verdadeiro nem falso, mas uma ferramenta de ancoragem, de ordenação. Trinta e um de dezembro é réveillon, Ano Novo. Mas não existe nem ano, nem novo — são ficções. Dizemos “2020 foi um ano difícil, então 2021 vai ser melhor, vai ser novo”. O novo é uma palavra interessante para acobertar o nosso medo do desconhecido, do futuro. Temos uma neurose obsessiva coletiva de controle e planejamento com a projeção do PIB, o crescimento, o orçamento. Criamos a ordem e o projeto e damos uma roubadinha no jogo, que é a expectativa do bem ou do melhor.

  • G |Esse otimismo, que nos faz dar essa roubadinha, usar da ficção, é positivo?

    MH |

    Ele é necessário. Otimismo pode ser uma palavra, mas eu diria que é o jeito que a gente inventou de viver, de suportar a vida. É o que de melhor a gente pode fazer, nos ajuda a sinalizar o que queremos. Gosto da ideia da lista dos desejos.

  • G |Por que você gosta da lista?

    MH |

    Ela pode eventualmente ajudar a ser livre no desejar, pode nos autorizar a querer e a poder. Seria muito produtivo se cada um conseguisse ter uma relação com o próprio desejo desvinculado dos materialistas, do capitalismo clássico que fetichiza o objeto. [Nas listas] muita gente pede o tripé básico do desejo: um amor menos doentio; um trabalho que tem a ver com quem é você; e coisas práticas, conseguir comprar uma casa, pagar prestação, trocar de carro, fazer uma viagem à Europa.
    É muito interessante poder se experimentar desejando, porque a prática do dia a dia é obedecer ao desejo do outro. A lista do Ano Novo tem a ver com você se aproximar das identificações inconscientes relacionadas a esse jogo muito enigmático entre o eu e o ideal de eu. O Ano Novo é uma oportunidade para reprocurar essas matrizes identificatórias, que são sempre confusas, inconscientes e não são óbvias.
    Agora, o outro lado é que, ao fazer isso, há essa comparação entre o que eu desejo e o que eu suponho que o outro deseja de mim. A frase famosa do Lacan, “o desejo é o desejo do outro”. O desejo brota em mim a partir do que eu vejo que faz seu olho brilhar, seja você a mãe, o pai, a família, a cultura.
    Ano que vem, você vai fazer todo esse percurso e você queria fazer tanta coisa, desenhou essa lista desejante, se permitiu esse movimento de interrogação, mas você colocou ideais imaginários, fictícios, irrelevantes.

  • G |Erramos então na nossa lista de desejos?

    MH |

    Muitas vezes erramos no desenho dessa materialização do ideal abstrato. Você não sabe o que você quer, está meio perdido e vaga. Se você sabe, mesmo assim pode errar. Você conseguiu o cargo que queria, fez todas as traquitanas, tirou o rival e foi eleito, promovido, tem o bônus, mas está infeliz que nem uma praga. Queria muito um carro. Compra e entra em uma depressão imensa. Isso se revela assim: “Todo o meu edifício é só um carro”. Vamos pegar a série “The Crown”, é só uma mulher que casou com um cara dentro de uma estrutura hiperenrijecida e simbólica. Mesmo se você pega a Camila, é só uma relação com outro ser humano de outro sexo.
    A lógica do ideal é sempre estar longe do eu, mostrar que aquilo que você tem não dá a completude imaginada, sempre é sofrimento, é incompletude. O que te move é a cenourinha na frente do burrinho. Cadê a totalidade? Você não conseguiu aquilo que idealizou. É preciso mais um ano para reprojetar e ter gás para continuar o movimento.

  • G |É daí que vem a importância do ritual? De alguma maneira essa lista se apresenta como algo da ordem do desejo, mas ritualístico.

    MH |

    Sim. Trata-se do velho jogo Eros e Tânatos, que erotiza a vida, nos mantém desejando e acreditando que circundar o vazio é um bom negócio. A gente acorda, põe o despertador, escova os dentes, vai lá e produz, produz, produz. Os rituais nos ajudam a elaborar para seguirmos adiante. Inclusive o funeral e os rituais de morte, de passagem, de renascimento. Tudo bem, morreu, perdeu, mas a alma vai continuar ali. A finalidade básica de qualquer ritual é ajudar a suportar. São feitos para brincarmos: estamos aqui na quadra e é um recreio bem grande. Então vamos lá: move, move, move. Tem até slogan, “keep walking”.

  • G |Este foi um ano de perdas financeiras e de mortes. Como é possível sentir então essa renovação, ainda que ficcional, do feliz Ano Novo, depois de um trauma dessa magnitude? E, antes mesmo disso, superar um trauma para seguir adiante?

    MH |

    Essa é uma pergunta evoluída. Ela já supõe que houve a perda, o trauma e o trabalho de elaboração para seguir adiante. E quando nem conseguimos ver e subjetivar a perda? Estamos doentes a ponto de precisar voltar algumas casas nos mecanismos subjetivos e ir para uma defesa mais arcaica. Falamos “esse negócio de pandemia deu”. Não suportamos a realidade do vírus, da ameaça, da contenção do movimento, do isolamento. Como eu vou abrir mão dos rituais de fim de ano, da festa de réveillon? Dei uma entrevista sobre a lógica da negação ao Jornal Nacional, em uma reportagem sobre uma festa de réveillon em Santo André, na Bahia, que era temida pela população local. Eu disse que negar é um mecanismo, mas que pressupõe um custo. Quando se corta a conexão com o real é porque há muito sofrimento. Mas, ainda assim, paga-se caro. No vídeo da entrevista, um cara comentou: “Foda-se, somos maioria, não usamos máscara, somos a elite, foda-se. Já estamos de saco cheio da pandemia, foda-se”. Ele repetia isso 20 vezes, 30 vezes. É até título de livro que é best-seller, “Ligue o Foda-se”. Eu entendo isso por um lado, pode ser muito operativo subjetivamente, libertário em alguma medida. Por outro lado, não sei se é um bom imperativo moral para se viver no coletivo. O que estamos vivendo é o corte da relação com a realidade. É o corte angustiado, desesperado, patológico, insano.

  • G |Esse corte com a realidade é algo sem precedentes?

    MH |

    Não, não. Eu adoro uma frase do Brecht, que é: “A cadela do fascismo está sempre no cio”. Há os fascismos do século 20, os movimentos totalitários dos séculos 20 e 21, os neofascismos do 21. Se voltarmos alguns séculos, há grandes desconexões com a realidade, sem dúvida. Já dissemos “vamos fazer umas Cruzadas, vamos queimar essas bruxas, essa mulherada louca que não está se adequando à lógica patriarcal, é demoníaco”. Essa é a história humana. É grave? É grave. É um fenômeno do 21? Infelizmente não é. Mas temos a oportunidade de estar numa encruzilhada e de perguntar o que estamos fazendo, o que perdemos com nossas formas de vida, e o que podemos aprender.

  • G |Considerando esse cenário, é possível se renovar de alguma maneira no Brasil de 2020/2021?

    MH |

    O problema é que o novo pode ser muito velho e muito podre. Uma nova configuração subjetiva, política, social, ela pode ser doentia, ainda mais mortífera. Esse conceito de novo, eu vou ser franca: desconfie profundamente. Qualquer discurso que tenha “o novo homem”, Nossa Senhora! Isso é o álibi para o cristianismo ter destruído tudo, para o nazismo e o fascismo.

  • G |Mas e se pensarmos em uma coisa mais íntima?

    MH |

    Precisamos ter cuidado ainda assim. Cada vez que você acha que está se renovando muito, cortou o cabelo, terminou a relação, trocou o guarda-roupa, mudou tudo, você para no mesmo lugar. A gente repete, não existe renovação 100%. Não somos puramente um pedaço, somos várias partes. A gente quer e não quer as estruturas, qualquer renovação é uma volta muito longa para cair na repetição. Tanto que, todos os anos, a gente faz as mesmas listinhas, a gente precisa do ritual, que nada mais é do que uma repetição.
    Para mudar, para ter algo novo realmente, uma outra posição diante de si mesmo e da vida, é ralação, trabalho, anos de análise, paga-se um preço alto, sobretudo para abrir mão de um gozo, de um lugar que está muito cansativo mas de onde você não consegue sair. É um paradoxo. Em termos sociais, as mudanças são muito lentas, você começa a colocar uma ideia agora — “Ah, quem sabe mulher é sujeito e pode ter uma opinião”, diz Sócrates, no banquete platônico, quatro séculos antes de Cristo — e são milênios para isso ser realidade.

  • G |Existe uma pressão, de maneira geral, em busca de uma renovação. Como lidar com isso e não ficar ansioso?

    MH |

    Pensamento mágico, né? A gente tem essa coisa “ano que vem vai dar certo, eu vou renovar, vai ser diferente, oremos”. E você supõe um Deus, uma figura transcendental, que te ampara, te ilumina, te ajuda na renovação. O inconsciente é um bichinho repetitivo demais, porque os lugares onde a gente foi marcado, nas identificações, nos desejos, no gozo, são muito profundos. É como naquela metáfora do Freud, como se a gente estivesse como aquela cera mole. Gosto de ver velas no mar, é esteticamente interessante, mas não é à toa que a taxa de suicídio aumenta [nesse período]. Você faz o cálculo do que você queria e de onde você está, e vai fazer um cálculo da magnitude do impossível do seu desejo, e vai dizer “estou no precipício, me joga”. Então, mágica não dá, magia não existe. Quando podemos parar de nos apoiar numa transcendência tão radical? Seja por Deus, seja pelo novo homem, novo sistema. A transformação é lenta, é dureza, é trabalho. Só você pode fazer.

  • G |Como foi este ano para você, o que você sentiu no consultório, com a pandemia? Os quadros das pessoas pioraram muito? Que balanço você faz do que você observou em 2020?

    MH |

    A coisa mais importante de 2020 foi a própria psique, que transbordou, se revelou. Tanto que é a hipótese central do “Lupa da Alma”, como se a alma, que a gente vai guardando debaixo do tapete, a caixa de pandora, o recalque de alguma maneira houvesse explodido em 2020. As pessoas ficaram muito loucas, ameaçadas, com medo. Houve mais feminicídio, mais compulsão, mais comida, menos comida, mais anorexia, mais desejo, menos desejo. Mais exploração, violência, racismo, morte. Enfim. Sob pressão, a gente se revela. O movimento no consultório aumentou muito: pessoas que jamais procurariam análise procuraram; pessoas que sempre se analisaram voltaram a se analisar. Há quem diga que é um ano que não existiu, tem a capa da Time com um x. Eu diria exatamente o contrário. As pessoas dizem que as crianças não foram para a escola e perderam o ano. Mas este é um ano que meu filho não vai esquecer. Tudo o que ele viveu, que teve que enfrentar e aprender, ele é criança, mas é insólito, inusitado, e nos revela.

  • G |Qual é a sua expectativa para 2021 depois desse balanço de 2020?

    MH |

    Não vamos conseguir escapar das garras do inconsciente e das várias setas simbólicas que estão aí. Então, eu te daria outra pergunta: qual é o nosso poder real de renovação? Qual é a fresta que a gente consegue operar no imenso caldo já dado, da gênesis subjetiva?