Solange Rosset: Organização na relação do casal — Gama Revista
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Conversas

Solange Rosset: "Brigar por bagunça é mais fácil do que brigar por infelicidade"

Para terapeuta de casal, é preciso fazer contratos desde o início da relação para manter organização financeira, emocional e prática do casal

Isabelle Moreira Lima 21 de Maio de 2023

Solange Rosset: “Brigar por bagunça é mais fácil do que brigar por infelicidade”

Isabelle Moreira Lima 21 de Maio de 2023

Para terapeuta de casal, é preciso fazer contratos desde o início da relação para manter organização financeira, emocional e prática do casal

Viver a dois não é nada fácil. No começo, é comum que casais que passam a viver em uma mesma casa tenham que se adaptar com a convivência. Passados alguns anos, certos hábitos podem virar motivo de irritação. Muitas vezes, esses pontos de discordância têm a ver com o jeito com que organizam e mantêm o ambiente doméstico – atire a primeira pedra quem nunca brigou por conta de uma casa bagunçada.

Para a terapeuta de casal Solange Rosset, autora de livros como “O Terapeuta da Família e de Casal: Competências teóricas, técnicas e pessoais” (Editora Artesã, 2021) e “Temas de Casal” (idem, 2017), o jeito como o casal olha para a organização é estruturante da relação. Quando os estilos são distintos, é preciso não olhar apenas para a dificuldade alheia como problemática, mas assumir as próprias limitações.

“Como eu posso sinalizar que a bagunça da casa ou do armário está me incomodando sem que vire uma briga? É importante entender que para chegar a um acordo é preciso enxergar o seu jeito e o incômodo do outro, acolher esse incômodo”, afirma a psicóloga que tem um canal onde discute situações familiares e de casal no Youtube.

Para Rosset, a organização financeira é um dos temas mais importantes dentro de uma relação de parceria. Ela defende que contratos sobre gestão dos recursos do casal sejam acordados antes mesmo que comecem a viver juntos. “Com o contrato, você se protege de um item que é responsável pelos maiores dissabores na relação, que é ter expectativas. As expectativas normalmente são irreais e têm a ver com carências internas de cada um”, afirma na entrevista a Gama, que você lê a seguir.

Dinheiro é um tema difícil, mas talvez seja o mais importante da relação

  • G |Pela sua experiência clínica, a organização é um tema desafiador para a saúde dos casamentos?

    Solange Rosset |

    É um tema recorrente nos casais. Mas é importante perceber qual é o padrão de funcionamento individual: como é que cada um lida pessoalmente com o tema e como lidam juntos quando viram um casal? Mais importante do que ver a organização em si, é como usam as questões de organização para atacar um ao outro, para se queixarem, para mostrar o ponto vulnerável do parceiro. Nesse aspecto, o tema organização é terrível porque serve bem para esse fim. É preciso ficar muito atento para não cair numa questão sem saída.

  • G |Qual a importância da organização para a vida em casal e em família?

    SR |

    A forma como o casal lida com organização é estruturante e organizadora da relação. Qual é a saída honrosa quando um é mais e o outro menos organizado? É possibilitar primeiro que cada um enxergue o seu padrão de organização. Muitas vezes as pessoas não enxergam a sua própria dificuldade. Há pessoas que não se incomodam com a sua desorganização e podem se incomodar com o excesso de organização do outro. O pulo do gato é fazer contratos. Como eu posso sinalizar que a bagunça da casa ou do armário está me incomodando sem que vire uma briga? É importante entender que para chegar a um acordo é preciso enxergar o seu jeito e o incômodo do outro, acolher esse incômodo. O movimento imediato é se defender e contra-atacar, mas esse caminho vai levar a guerras e dissabores. Então um treino muito importante é acolher o mal-estar e a queixa, avaliar que há aspectos passíveis de mudança, outros que talvez você não queira abrir mão.

  • G |Você acha que em algum momento é preciso abrir mão dos ideais de organização?

    SR |

    Existe um limite para abrir mão sem se sentir lesado, mas esse precedente pode ser aberto desde que a pessoa queira isso e como um investimento na relação, sem ser algo que vai ser cobrado mais cedo ou mais tarde. O limite do que e do quanto abrir mão é muito individual e depende do jogo do casal. Eu não gosto de trabalhar com o “tem que” e “deve”, porque abrem precedentes para o contra-ataque. Eu nunca enxergo isso como uma coisa de fora para dentro. No meu trabalho, a minha pergunta individual é o que você consegue flexibilizar sem correr o risco de ficar magoado, de jogar embaixo do tapete e contra-atacar em outro momento.

  • G |E quando essas desavenças sobre a organização em casa viram um assunto para além do casal?

    SR |

    Isso vai depender do padrão de funcionamento do casal. Mas é importante lembrar que a intimidade do casal é do casal. Quando levam a público coisas que não conversam como casal, é um jeito de falar coisas para o parceiro. Isso pode devastar a relação e levar ao caos.

  • G |Como abordar a organização financeira de uma maneira saudável?

    SR |

    A questão do dinheiro, como todas as questões delicadas, deveria ser contratada antes das pessoas se juntarem. Casamento é um contrato, não importa se está passado no juiz ou não. As pessoas vão ficando juntas – e a pandemia foi especialista nisso – sem discutir como será a vida. Mas cada um deve informar como gostaria que o casal lidasse com dinheiro. Um casal resolveu se divorciar dez dias depois de ter se casado porque, depois da lua de mel, um falou para o outro “me dá seus documentos que eu vou no banco abrir uma conta-conjunta”. O rapaz queria repetir o modelo dos pais, em que o pai administrava o que entrava na família, e a moça achava que dividir despesas era importante, mas que a conta conjunta com um administrador estava fora de cogitação. Eu uso esse exemplo porque é uma coisa séria e uma expectativa muito diferente. Se eles tivessem parado para contratar antes, isso talvez tivesse seguido de outra maneira.

  • G |Como você sugere que esse contrato seja feito?

    SR |

    Eu gosto de usar o termo contratar mais do que combinar porque o contrato pressupõe que os dois coloquem suas partes e gastem o tempo e a energia necessária para chegarem a um acordo. É muito importante ter clareza de que é possível recontratar e avaliar a situação depois de um tempo para fazer ajustes necessários. Com o contrato, você se protege de um item que é responsável pelos maiores dissabores na relação, que é ter expectativas. Não é um tema diretamente ligado, mas é o que está por baixo de tudo. Se a pessoa não enxerga as suas expectativas, ela vai sempre ter unicamente as dela como modelo, vai sempre se frustrar e sempre culpar o outro. As expectativas normalmente são irreais e têm a ver com carências internas de cada um.

  • G |Talvez aquela frase que diz que o segredo da felicidade é a redução das expectativas não seja apenas um meme…

    SR |

    Não é uma brincadeira. Quando você vive sempre com expectativa sobre o outro é frustração garantida porque nunca ninguém conseguirá supri-las. Até porque a gente não consegue entrar na vida emocional do outro, no inconsciente do outro, para saber o que ele está esperando. É garantia de confusão.

  • G |Mas é difícil falar de dinheiro no começo de um relacionamento, não? Porque o assunto é um tabu e também porque, quando estão apaixonadas, as pessoas nem pensam nisso…

    SR |

    Ninguém deve se juntar enquanto estiver na paixão. Paixão é uma delícia, é maravilhoso, mas dura entre duas horas e dois anos no máximo e nos faz não olhar o outro real. Então é uma fase para ser muito bem vivida, fazer loucuras, mas não fazer compromisso de vida. Agora digamos que um casal se junta pela paixão, fica junto, não faz nenhum contrato. Eles podem fazê-lo então no momento em que tiverem consciência. Dinheiro é um tema difícil, mas talvez seja o mais importante da relação. Quando não se combina, o risco é ficar preso no pressuposto do outro.

Há casais cuja dinâmica é brigar, brigar, brigar. Nesse caso, a organização é apenas mais um disparador

  • G |Voltando para a organização doméstica, quando um casal briga demais por bagunça, pode ser sinal de um problema mais complexo?

    SR |

    Muitas vezes tem outras coisas por trás sim, porque brigar por bagunça é mais fácil do que brigar por infelicidade. É mais fácil eu dizer que a desorganização do outro atrapalha a minha vida do que falar que eu me sinto esquecida e abandonada. Mas tudo depende do padrão de funcionamento do casal. Há casais cuja dinâmica é brigar, brigar, brigar e às vezes nem sabem porquê. Nesse caso, a organização é apenas mais um disparador e o trabalho a ser feito é olhar a qualidade das brigas. Brigar é uma coisa muito importante numa relação: no momento da briga, você se mostra e o outro se mostra de uma forma que às vezes não ocorre no dia a dia. A primeira coisa é olhar se a questão a ser discutida é organização ou a forma como nós brigamos, se acontece por qualquer coisa. Se a questão é a organização normalmente tem a ver com expectativa e aí voltamos aos tais combinados.

  • G |Como identificar se estamos dando importância demais a maneira como o outro se comporta em casa?

    SR |

    A grande pergunta aí é para que estou tão incomodada com isso e não por que. É facinho de dizer porque me incomoda a organização, a forma do outro ser: porque atrapalha, porque ele não presta atenção, porque ele não ajuda. Agora para que me incomodo? Para atacar o outro. Para que isso, o que eu quero conseguir com isso? Muitas vezes só essa reflexão já leva a ter mais controle sobre o excesso de incômodo.

  • G |Essa fiscalização exagerada do comportamento do outro pode chegar a um problema maior com características de relacionamento abusivo, por exemplo?

    SR |

    Quem é abusivo é abusivo até no jeito de dar amor. Tudo que é em excesso desequilibra a relação. Então o controle em excesso também oferece riscos. Que sinais não se quis enxergar e ouvir lá no começo? Uma relação não fica abusiva de uma hora para outra; são concessões que foram feitas quando não deveriam ter sido feitas; são exigências que foram aceitas para que o outro se transformasse. O primeiro passo é enxergar como se foi conivente com o abuso. O segundo é saber responder como se é abusivo na relação. O mais importante é a pessoa tomar consciência do seu próprio funcionamento.