Claudio Angelo: "Zerar o desmatamento está ao nosso alcance" — Gama Revista
Como manter a Amazônia em pé?
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Foto: Victor Moriyama/Amazônia em Chamas

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Conversas

Claudio Angelo: "Zerar o desmatamento está plenamente ao nosso alcance"

Jornalista que cobre meio ambiente há 25 anos diz que real vontade política pode livrar Amazônia de crimes e destruição, mas vê na mudança climática desafio sem saída

Isabelle Moreira Lima 01 de Setembro de 2024
Foto: Victor Moriyama/Amazônia em Chamas

Claudio Angelo: “Zerar o desmatamento está plenamente ao nosso alcance”

Jornalista que cobre meio ambiente há 25 anos diz que real vontade política pode livrar Amazônia de crimes e destruição, mas vê na mudança climática desafio sem saída

Isabelle Moreira Lima 01 de Setembro de 2024

Ao conversar com o autor de “O Silêncio da Motoserra” (Companhia das Letras, 2024), o jornalista Claudio Angelo, que traz consigo a experiência de 25 anos de cobertura ambiental, fica a dúvida sobre se o escritor é um otimista ou pessimista. Ao mesmo tempo em que afirma que podemos zerar o desmatamento da floresta amazônica — afinal demos sinais durante os anos de 2005 a 2012, quando Marina Silva, como ministra dos governos Lula, liderou recordes históricos de redução —, Angelo tem a clareza de que podemos estar chegando a um momento que considera um “privilégio dúbio”: ver com os próprios olhos os efeitos (catastróficos) da mudança do clima prevista por cientistas há décadas.

No novo livro, Angelo, que tem o engenheiro ambiental Tasso Azevedo como coautor, faz um panorama histórico do desmatamento desde os anos 1970, quando avançar pela floresta era política de Estado e incentivos eram concedidos a fazendeiros interessados em plantar suas monoculturas na região da Amazônia. É ao mesmo tempo familiar e revelador ler a extensa apuração que envolveu quatro anos e mais de 130 entrevistas, além da minunciosa investigação em documentos científicos e do Itamaraty.

 Foto: Renato Parada

O livro conta, por exemplo, que os primeiros dados sobre desmatamento foram levantados por uma equipe formada por dois mestrandos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) ainda na década de 1970. Que a cientista Clara Pandolfo, que dirigia a frente de recursos naturais da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) foi uma pioneira da sustentabilidade, ainda que fosse obcecada por uma ideia arcaica de progresso. Foi dela a ideia de pedir o monitoramento do Inpe para ter registros do desmatamento feito pelos projetos agropecuários.

Entre esses projetos, estava o do grupo do apresentador de TV Silvio Santos, morto no último mês, que foi um dos beneficiários da ditadura, com 40 mil hectares da fazenda Tamakavy. “A Volkswagen também entrou na ciranda, sendo presenteada com uma área no Pará para criar ‘o bife do futuro'”, escreve Angelo.

Para ele, esse passado em que o desmatamento era política de governo não é exatamente página virada. O jornalista acredita que se o Estado, de fato, quisesse zerar o desmatamento, bem como outros problemas que hoje vemos na Amazônia — queimadas, garimpo, crime organizado, entre outros —, conseguiria. “É aquele clichê, impossível até que seja feito. Alguém tentou sufocar a estrutura do garimpo, principalmente as conexões políticas do garimpo? Não tentou”, afirma.

O pior mesmo são os problemas que estão fora do alcance humano. Na entrevista que você lê a seguir, Angelo fala também sobre o ponto de virada do clima. “Podemos evitar que as queimadas sejam tão graves, algumas tragédias, mas, se a mudança climática já estiver levando a Amazônia ao colapso, escapa do nosso controle. Isso é o que me assusta hoje.”

Se a política do Estado brasileiro é contra o desmatamento, o que o governo está fazendo sendo sócio de frigorífico?

  • G |O seu livro traz algo que é muito chocante, que é o fato do desmatamento ter sido uma política de estado nos anos 70, algo patrocinado. Acha que esse passado torna mais difícil a luta contra o desmatamento hoje?

    Claudio Angelo |

    Não é passado. O desmatamento ainda é política de governo no Brasil. Se você olhar para o crédito agropecuário, neste ano foram R$ 450 bilhões. Deles, mais ou menos 5% vão para a agricultura de baixa emissão de carbono. Todo o resto vai para a agropecuária tradicional, empresarial, para fazer o que eles sabem fazer, que é trator, semente, gado, capim. Então, o governo ainda subsidia o mesmo modelo de agropecuária que causou o desmatamento da Mata Atlântica desde o século 16, que arrasou o Cerrado no século 20 e que já levou embora 20% da Amazônia de 1970 e pouco para cá. É um fenômeno muito cultural, entranhado na economia política do Brasil. Já a proteção da Amazônia, de entender sua importância, é um negócio muito recente, é uma coisa de 40 anos para cá. E o governo, embora dê sinais para um lado e adote políticas — tem o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) —, é sócio da JBS. O BNDES tem não sei quantos bilhões de reais em ações da JBS. Então, se a política do Estado brasileiro é contra o desmatamento, o que o governo está fazendo sendo sócio de frigorífico?

Foto: Victor Moriyama/Amazônia em Chamas
  • G |Havia uma ideia de que progresso era a cidade, desmatar então era buscar o progresso. Essa ideia ainda existe? Ou as pessoas já entenderam que a floresta precisa ser a floresta?

    Claudio Angelo |

    O historiador norte-americano Warren Dean escreveu um livro maravilhoso sobre a história da destruição da Mata Atlântica, chamado “A Ferro e Fogo”. Em um dos capítulos, o título é “O Imperativo do Desenvolvimento”. Isso permanece no Brasil. Embora se tenha um consenso social contra o desmatamento. Mas, por outro lado, ainda entendemos o desenvolvimento como uma coisa necessária e meio a qualquer preço. As pessoas dizem achar importante manter a floresta, lutar contra o desmatamento. Mas não é bem isso que a gente vê no comportamento eleitoral do brasileiro. Porque um povo que entende tão bem que precisa manter a floresta não elege Jair Bolsonaro presidente da República. Acho que existe um consenso contra o desmatamento, mas ainda patinamos no consenso a favor de um modelo de desenvolvimento que inclua a floresta em pé.

  • G |O livro registra como ponto de virada o ano de 1988, com o relatório do Inpe e reportagem do New York Times que denunciava queimadas e as relacionavam com o efeito estufa, gerando um rebuliço internacional. O quão importante foi — e ainda é — a pressão externa no contexto da preservação da Amazônia?

    CA |

    Infelizmente, a pressão internacional ainda é superimportante. Precisamos recorrer a ela para evitar que o Jair Bolsonaro arrasasse mais do que ele arrasou nesse país. Foram investidores estrangeiros que fizeram pressão, mandaram cartinha, o parlamento europeu que ameaçou, alguns governos entraram muito fortes contra o acordo comercial com a União Europeia por conta do mau comportamento do governo brasileiro em relação ao clima e ao meio ambiente. Carta de senadores americanos falando para o Joe Biden não fazer acordo com o Ricardo Salles. Isso tudo foram coisas que nós, a sociedade civil, precisamos fazer. Recorremos a esses atores externos porque eles ainda têm muita alavancagem sobre o Brasil, porque nós somos ainda um exportador de commodities. O que os nossos clientes nos dizem importa muito. Não é mais como era na época do Sarney, que era uma pressão sobretudo política e um constrangimento internacional do tipo “vocês são um bando de selvagens que não sabem o que fazer com a floresta de vocês”. Até porque, depois do primeiro governo Lula, a Marina Silva calou a boca de todo mundo com a queda do desmatamento. Ela mostrou que o Brasil, se quiser, sabe fazer. E fez sem um centavo de dinheiro externo, com os nossos próprios recursos. Agora, vamos precisar de dinheiro para chegar a zero desmatamento. Mas, naquele momento, nós tínhamos uma emergência criada por criminosos e nós fizemos cumprir a lei com o Ibama, com a Polícia Federal. Foi tiro, porrada, bomba, e funcionou.

O país não vai quebrar se o agronegócio se enquadrar. Falta um pouco de mais coragem do poder público

  • G |Depois dessa fase e desses bons números, a gente teve um revés, chegando a uma situação crítica ao fim do governo Bolsonaro. Que análise faz desse vai e vem no jeito de tratar a Amazônia? Não vai ter jogo ganho nunca?

    CA |

    O jogo já está ganho, de certa forma. O Bolsonaro aumentou o desmatamento em 60% no mandato dele, a maior alta de um único mandato presidencial desde que as medições começaram. Ele chegou nos 10, 11 mil quilômetros quadrados desmatados, mas não voltou para o nível dos 20, 25 mil que a gente viu na década de 90. Tivemos um alinhamento de uma série de atores, até dentro do agronegócio vimos uma reação: o Bolsonaro queria sair do Acordo de Paris, e o agro falou “não, pelo amor de Deus”. A Dilma não foi exatamente um retrocesso, foi um descaso. O Lula disse que deu um único conselho quando ela foi eleita: “Não deixe o desmatamento da Amazônia sair do controle”. Mas ela queria fazer hidrelétrica, é uma pessoa com mentalidade da década de 70, tipo sovietes e eletricidade. Mas foi a partir do Temer que as coisas começaram a degringolar de verdade, com a chegada da bancada ruralista ao poder. Eu sempre brinco que o Bolsonaro foi o primeiro presidente da história do Brasil que tinha a questão ambiental como prioridade. A prioridade dele era acabar com a terra indígena, acabar com a conservação, meter a força no Ibama, passar a boiada. Mas nem isso levou o desmatamento de volta aos 19, 20, 25 mil quilômetros quadrados. É uma conquista da sociedade brasileira e do avanço civilizatório representado pela Constituição de 88.

  • G |Você mencionou a bancada ruralista agora e no livro vemos o agronegócio como agente importante na gênese do desmatamento da Amazônia. Como vê hoje o papel do agro nessa história?

    CA |

    O agronegócio brasileiro vem sendo tratado, há muito tempo e inclusive pelo setor ambiental, como uma espécie de vaca sagrada. A gente sabe que eles são péssimos, mas, “poxa vida, eles têm tanta importância econômica, 25% do PIB”. Conversa: é 7% do PIB, o Brasil não é uma economia agrícola, mas de serviços. A gente é um exportador de commodities agrícolas, e isso é importante, evidentemente, para a balança comercial. Mas o agronegócio exportador está longe de ser tão gostoso assim como ele se vende. É um setor com uma representatividade política desproporcional ao seu peso econômico. E sempre foi muito tratado como, de novo, uma vaca sagrada. Não pode mexer muito porque o país vai quebrar. Não, o país não vai quebrar se o agronegócio se enquadrar. Falta um pouco de mais coragem do poder público, do poder executivo e da sociedade civil brasileira para botar o dedo na cara do agro. Falar “não, daqui vocês não passam. Isso que vocês estão fazendo é uma selvageria, está errado, vocês precisam se enquadrar”. E isso não acontece, porque todo mundo fica com o medinho do agro.

Imagem aérea de área preparada para monocultura ou pecuária, próximo a Porto Velho. 07 de agosto de 2020
Imagem aérea de área preparada para monocultura ou pecuária, próximo a Porto Velho. 07 de agosto de 2020
Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real
  • G |A história da Amazônia é feita muito em Brasília também. Você acha que isso vai continuar assim ou o roteiro também pode ser desenhado em outros lugares ou por outros atores?

    CA |

    A elite amazônica nunca quis saber da floresta. Quem gosta dela são os indígenas, porque precisam daquilo para sobreviver. A elite amazônica queria ir a Paris, ganhar dinheiro, trazer mármore de Carrara. E isso permaneceu assim durante muito tempo. Tanto que até pouquíssimos anos atrás, a imprensa local que se importava com a Amazônia era uma única pessoa, o Lúcio Flávio Pinto. As outras iniciativas locais, a Amazônia Real, que até hoje faz um trabalho meio solitário, isso surgiu agora, no século 21. Isso é um termômetro muito poderoso do quanto as elites locais não se importavam com aquilo. E sempre viram com muita desconfiança as iniciativas sudestinas e gringas de proteção da Amazônia. Tanto que os institutos de pesquisa, que hoje são formados por pesquisadores de ponta nativos da Amazônia, foram criados ou por americanos ou por gente do sudeste. O envolvimento da elite local, de Belém, de Manaus, é super recente.

Estou muito assustado com o que está acontecendo neste momento. Não era para vermos uma repetição da seca de 2023 em 2024

  • G |Você escreve, no final, sobre os novos problemas da Amazônia, como o crime organizado. Dos problemas que a região e a floresta enfrentam hoje, é possível hierarquizar ou dizer o que é pior: seca, garimpo, violência?

    CA |

    Há os problemas contra os quais podemos fazer alguma coisa e os quais temos menos governança. Enquanto Brasil, podemos agir contra o crime. A hora que o governo quiser de verdade, ele acaba com o crime na Amazônia. Em 2002, um ano antes do Lula assumir, pessoas muito instruídas dentro do governo brasileiro diziam que era impossível reduzir desmatamento. Foi feito. É aquele clichê, impossível até que seja feito. Alguém tentou sufocar a estrutura do garimpo, principalmente as conexões políticas do garimpo? Não tentou. Teve operações que demitiram e prenderam agentes públicos, que demitiram agentes públicos, que fizeram uma limpa em órgãos públicos corruptos e isso funcionou. Garimpo, evidentemente, é uma coisa na qual a gente consegue dar jeito, a especulação fundiária, o desmatamento ilegal para criação de gado, soja. Se o governo quiser, ele faz. Tem forças armadas, para que serve esse bando de militar? O problema é que o último governo no Brasil que tinha um plano, um projeto para a Amazônia foi a ditadura. Era um projeto zoado. Queremos ocupar, integrar, asfaltar, desmatar. Mas era um projeto. Os governos democráticos nunca botaram a Amazônia no centro do planejamento nacional.

  • G |E o que a gente não pode resolver?

    CA |

    Estou muito assustado com o que está acontecendo neste momento. Não era para vermos uma repetição da seca de 2023 em 2024. Essa sequência de megassecas é um negócio completamente inédito na história da Amazônia. E isso bate com o que os cientistas vinham falando 30 anos atrás, no primeiro artigo do [climatologista] Carlos Nobre, sobre pontos de virada do ecossistema. E isso é uma combinação de mudança climática com desmatamento. E aí, não poderemos evitar uma nova megasseca. Podemos evitar que as queimadas sejam tão graves, algumas tragédias, mas, se a mudança climática já estiver levando a Amazônia ao colapso, escapa do nosso controle. Isso é o que me assusta hoje.

  • G |No final do livro você escreve que semear desertos é uma escolha, não um destino e que para chegar a zero basta querer. Isso quer dizer que você está entre os otimistas? Acha que ainda tem jeito?

    CA |

    Zerar o desmatamento é uma coisa que está plenamente ao nosso alcance. E digo mais, se a quisermos, fazemos antes de 2030. Agora, a mudança climática, mais difícil mas aí não é só Amazônia, é tudo: é o Brasil, a Califórnia, o Mediterrâneo. Vivemos um privilégio dúbio na história humana: talvez esteja chegando o momento do ponto de virada da mudança do clima, sobre o qual os cientistas falam há tanto tempo.

Produto

  • O Silêncio da Motoserra
  • Claudio Angelo e Tasso Azevedo
  • Companhia das Letras
  • 472 páginas

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