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ReportagemA saúde mental de crianças e adolescentes na volta às aulas
Com quadros que variam da ansiedade à depressão, muitos jovens ainda precisam lidar com o impacto de dois anos longe das salas de aula
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A saúde mental de crianças e adolescentes na volta às aulas
Com quadros que variam da ansiedade à depressão, muitos jovens ainda precisam lidar com o impacto de dois anos longe das salas de aula
Após a primeira dose da vacina contra a covid-19, em 2021, as aulas começaram a voltar em Manaus. Para a professora Liviane Azevedo, 32, e seu filho Edgar, 8, porém, era ainda um período de luto. Mãe e filho perderam cinco familiares na crise da falta de oxigênio no Amazonas, entre eles o pai da professora e avô de Edgar. “Vimos muita gente morrendo, muito descaso, o que acabou nos marcando muito”, lembra Azevedo.
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Diagnosticada com transtorno de estresse pós-traumático, Azevedo preferiu adiar tanto seu retorno ao trabalho quanto a volta às aulas do filho. “Além de achar que estava expondo meu filho desnecessariamente, poderia contribuir com uma nova onda de casos de covid”, explica. Então, quando Edgar voltou à escola presencial, teve que enfrentar um desafio duplo: além dos quase dois anos que passou em casa, tendo contato com colegas e professores apenas por meio de uma tela, ainda entrou na turma depois que os outros alunos já estavam integrados. “Eles se viam todo dia havia três meses, e ele só conhecia o resto da turma pelo computador”, conta a mãe.
Desse período, Azevedo relembra o estresse diário com as dificuldades de adaptação do filho, que era calado e não conseguia se aproximar dos colegas. “Todo santo dia era muito choro e desespero.” Além disso, as aulas na escola aconteciam em período integral. Quando estava em casa, Edgar passava boa parte do tempo ansioso por precisar voltar à escola no dia seguinte. “O humor dele ficava horrível e, por consequência, o meu também”, diz a professora.
Em 2022, pelo menos metade dos adolescentes precisaram pedir ajuda relacionada à sua saúde mental
Com uma pausa por dois anos não só nas aulas presenciais, mas no contato com amigos e professores durante uma fase essencial para o desenvolvimento, a saúde mental de crianças e adolescentes logo se sobressaiu como uma das questões mais preocupantes desta pandemia. E, embora a covid-19 continue fazendo vítimas no mundo todo, o retorno ao presencial já revela que os jovens vêm passando por muito mais dificuldades psicológicas do que no passado recente, como apontam estudos e especialistas no assunto.
Um levantamento online realizado pela Unicef e a organização Viração em 2022 apontou que pelo menos metade dos adolescentes precisaram pedir ajuda relacionada à sua saúde mental. Outro estudo, este da Faculdade de Medicina da USP, indicou que uma a cada quatro crianças ou adolescentes vinha sofrendo de ansiedade ou depressão no Brasil.
“Embora não existam ainda dados concretos mais recentes, os pedidos para dar palestras em escolas aumentaram bastante, inclusive em nível de gravidade”, afirma a psiquiatra infantil e da adolescência Gabriela Stump. Quando fala em nível de gravidade, a médica se refere a casos de depressão, que a especialista estima ter aumentado cerca de quatro vezes em crianças e adolescentes na pandemia.
É como se as crianças e adolescentes, depois de tanto tempo longe das atividades diárias, estivessem mais cruas e vulneráveis
A professora Clariany Ferreira, 40, que leciona numa escola profissionalizante em Fortaleza, voltou a dar aulas presenciais em 2022. No início, as ocorrências chegavam a ser diárias, desde quadros diagnosticados de ansiedade e depressão até uma tentativa de suicídio na escola. “Uma das minhas alunas chegou a passar um período internada num hospital psiquiátrico”, conta Ferreira.
No caso de crianças mais novas, os principais diagnósticos envolvem quadros de atraso no desenvolvimento por terem passado alguns dos primeiros anos sem frequentar a sala de aula, de acordo com Stump. A psiquiatra ainda relata que fonoaudiólogos têm percebido um agravamento nas dificuldades de aquisição da fala devido à falta de socialização, e também uma capacidade reduzida de perceber expressões, ocasionada pelo uso constante de máscaras. Todas questões que emergem à tona no período de volta às aulas.
Um novo mundo
Com a falta de socialização externa e a convivência excessiva dentro de casa, as crianças e adolescentes também acabaram sendo mais afetados por problemas familiares, casos de abuso e violência doméstica, que explodiram nos primeiros anos de pandemia. Foi com essa realidade que a coordenadora de gestão pedagógica de ensino médio da Secretaria de Educação do Ceará, Iane Nobre, precisou lidar nos últimos anos. O maior desafio era manter os vínculos entre estudantes e escolas em meio aos dois anos de aulas online e milhares de alunos sem acesso à internet.
“Para nós, que somos adultos, já foi muito difícil. Depois de dois anos na vida de uma criança ou adolescente, é como voltar para um outro mundo”, afirma Nobre. Segundo ela, os jovens se acostumaram a assistir às aulas do conforto de casa e enfrentaram dificuldades para se adaptar a regras simples como o uso obrigatório de uniformes e a necessidade de pedir permissão à professora antes de ir ao banheiro.
Logo que as aulas voltaram, casos de choro convulsivo e até coletivo em sala eram comuns
“Muitas escolas precisaram retomar as normas como se eles nunca tivessem vivenciado essa realidade. Isso gerou uma onda que nossos psicólogos identificaram como crise de ansiedade.” A coordenadora recorda ainda que os pedidos de palestras e atendimentos psicológicos vinham de todos os lados. Logo que as aulas voltaram, casos de choro convulsivo e até coletivo em sala também eram comuns, diz Nobre.
Para a psicóloga especializada em comportamento infantil Fernanda Mishima, é como se as crianças e adolescentes, depois de tanto tempo longe das atividades diárias, estivessem mais cruas e vulneráveis. “Às vezes, os pais ou escolas interpretam de maneira errada, como se elas estivessem com preguiça ou não quisessem fazer.” Devido a esse estado psicológico abalado, o aspecto que ainda demanda maior atenção entre os jovens pandêmicos é a capacidade de se relacionar com colegas e professores, por ser uma habilidade que necessita de um preparo emocional maior.
Formas de lidar
Identificar um distúrbio psicológico em crianças e adolescentes nem sempre é tarefa fácil. A sugestão da psiquiatra Gabriela Stump para pais e professores é ficar atento às mudanças de padrão de comportamento. O problema é que, em alguns casos, essas alterações podem ser quase imperceptíveis, alerta a profissional. “A irritabilidade, por exemplo, costuma ser vista como uma característica típica da adolescência”, diz Stump.
“O mais frequente é que, mesmo deprimido, o adolescente mantenha uma boa relação com os amigos, mas se torne mais agressivo com pais ou irmãos”, aponta a psiquiatra. Assim, a mudança é vista como um choque de geração normal com a família e acaba passando despercebida. Outros sintomas em que também é importante ficar de olho são alterações no sono e no apetite, que podem configurar indicativos de ansiedade e depressão.
Se a gente impõe ou exige demais, a criança ou adolescente pode chegar à conclusão de que não consegue dar conta daquilo
O primeiro ponto é não passar do ponto, de acordo com Mishima. Ou seja, caso se perceba que o jovem está enfrentando dificuldades psicológicas, os pais ou professores não devem insistir para que realize algo que ele não quer ou acredita não conseguir. “Se a gente impõe ou exige demais, a criança ou adolescente pode chegar à conclusão de que não consegue dar conta daquilo”, reforça a psicóloga. Em muitos casos, essa visão gera sentimentos de tristeza e ansiedade ou mesmo uma noção de incompreensão, de que ele não está sendo valorizado o suficiente. “Ouvi de muitas crianças na pandemia que elas sentem que não sabem fazer nada. E, para piorar, ainda ficam se comparando ao fulano da internet, outros parâmetros também inalcançáveis.”
Gerenciando emoções
Logo no início da pandemia, em 2019, a diretora do Centro de Ensino Médio Bom Jesus, no Tocantins, Elizabeth Gama, precisou quebrar a cabeça para oferecer suporte socioemocional aos estudantes que passavam dias inteiros em casa. “Antes ficavam o tempo todo na escola. Com a pandemia, começaram a se relacionar só dentro de casa e a assumir outros papéis para auxiliar a família”, conta. Com a intenção de ajudá-los a lidar com essa nova realidade, nasceu o Gestão de Emoções, encontro que reunia semanalmente e de maneira online os estudantes do colégio para debater temas como medo, isolamento e relacionamentos.
“No começo, eu sugeria os temas”, conta Gama. “Depois, as ideias começaram a vir dos próprios alunos, professores e pais, muitos dos quais também participavam das conversas.” Segundo a diretora, um dos resultados foi que estudantes que estavam angustiados e meio perdidos nas aulas começaram a retomar o foco ao perceberem que não estavam passando por tudo aquilo sozinhos.
A diretora destaca que o retorno à sala de aula foi marcado ainda por dificuldades de convivência e casos de bullying, antes raros na instituição. “Percebemos que estavam botando apelido e fazendo troça de um aluno com deficiência.” Segundo a diretora, após um encontro de quatro horas de conversa sobre o assunto, “simplesmente acabaram as brincadeiras de mau gosto.” Atualmente, o projeto, que passou a fazer reuniões semestrais, pleiteia uma certificação da Unesco e já vem sendo replicado em outras escolas do país.
Que a retomada seja mais tranquila para a saúde mental dos nossos jovens
A escola de ensino fundamental Waldir Garcia, de Manaus, também vem enfrentando dificuldades desde a volta às aulas presenciais. “No antes, durante e depois, era visível como as crianças mudaram. Muita crise de ansiedade e crianças chorando do nada”, lembra a diretora Lúcia Santos. Para lidar com o desafio, a escola optou por ser flexível, permitindo que os alunos retornassem apenas quando os pais sentissem que eles estavam prontos.
Além disso, durante o período de readaptação, os pais podiam virar tutores, acompanhando as crianças que se sentissem inseguras ou vulneráveis. Em uma excursão da escola, por exemplo, uma das mães pediu que o irmão mais velho fosse junto como acompanhante do filho. “Era um aluno do primeiro ano que viveu toda a educação infantil na pandemia. Quando voltou, não conhecia a rotina de socialização da escola e sentia muito medo de tudo.”
A volta
A solução encontrada para Edgar, que também era aluno do colégio de Manaus, foi flexibilizar os horários na escola. “O problema dele não era com a escola em si, mas com o fato de ficar o dia todo lá”, conta a mãe, Liviane Azevedo. Assim, três dias por semana, ele passou a voltar para casa na hora do almoço, em vez de no fim da tarde, complementando os estudos em casa. “Ele já ficava mais tranquilo e, em casa, a rotina se tornou mais leve.” No início, Azevedo chegou a acompanhar o filho nas aulas, como tutora. Com o tempo, Edgar passou a ter até mais autonomia para decidir quando queria passar mais ou menos tempo na escola.
Para o novo ano letivo em 2023, o jovem precisou mudar de colégio, mas já está muito mais adaptado à rotina escolar. Ainda assim, passar muito tempo longe de casa continua sendo um problema. “Uma das coisas que ele me pediu desesperadamente foi para estudar numa escola de um turno só”, revela a mãe.
Na visão da professora Clariany Ferreira, a palavra-chave desse novo período de volta às aulas é esperança. “Estamos cheios de entusiasmo para retomar o ano. Que ele seja mais tranquilo para a saúde mental dos nossos jovens”, diz a docente. “Aos poucos, conforme fomos nos vacinando e deixando de usar máscaras, meus alunos voltaram a ver meu sorriso e disseram que hoje já se sentem bem mais acolhidos.”
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