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ConversasPaulo Saldiva: "Não tem nada que você queima e inala que não produza inflamação"
Um dos maiores pesquisadores dos impactos da poluição para a saúde, médico e professor da USP aborda a respiração em tempos de mudanças climáticas
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Paulo Saldiva: “Não tem nada que você queima e inala que não produza inflamação”
Um dos maiores pesquisadores dos impactos da poluição para a saúde, médico e professor da USP aborda a respiração em tempos de mudanças climáticas
Paulo Saldiva costuma pedalar com frequência pelas ruas de São Paulo, registrando em suas redes imagens que remetem ao passado e presente da cidade. Um dos maiores pesquisadores brasileiros dos efeitos da poluição atmosférica para a nossa saúde, o médico patologista e professor da Faculdade de Medicina da USP vem alertando com frequência sobre os impactos de respirar diariamente um ar carregado de poluentes. O tema se torna cada vez mais urgente em meio às mudanças climáticas, que chegaram a elevar a cidade de São Paulo à nada desejada primeira posição no ranking de pior qualidade do ar no mundo em setembro, em meio à falta de chuvas e proliferação de incêndios.
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“Com os níveis habituais [de poluição] em São Paulo, os benefícios da prática [de exercícios] ao ar livre ultrapassam os malefícios se você pedalar até 2h30”, aponta o especialista em entrevista a Gama. Ele se refere ao delicado equilíbrio entre os ganhos de se exercitar e o fato de inalar ainda mais poluentes quando você faz isso ao ar livre.
Nos períodos de menor qualidade do ar, Saldiva, que tem 70 anos e é asmático, costuma pedalar usando uma máscara PFF2 — sim, daquelas que usamos com frequência na pandemia. “A bicicleta é a minha terapia para ver gente. Eu gosto de olhar a cidade, de andar, prestar atenção, aquilo dá uma melhorada na minha cabeça. Eu vejo gente morta todo dia”, conta o médico, que coordenou as autópsias de mortos pela covid-19 em São Paulo. Um dos últimos registros que fez no Instagram, no entanto, foi da janela de casa mesmo: uma grande nuvem de fumaça preta — incêndio que atingiu o Shopping 25, no Brás, nesta quarta-feira (30).
Cuidar da respiração significa, para um adulto, tomar conta de uma superfície de 100 m², que corresponde às dimensões de uma quadra de tênis, mas que fica toda no nosso pulmão. “Se colocar um lençol na janela da sua casa, ele vai ficar preto depois de um tempo. Imagina impedir que cresçam bactérias ou vírus em 100 m²”, reforça o pesquisador. “Esse é o desafio que a gente enfrenta todos os dias.” Por isso, ele aponta, mesmo que o cigarro cause mais mal individualmente do que a poluição, combatê-la é mais importante, pois ela atinge o ar respirado por toda a população, especialmente nas grandes metrópoles.
Divulgação
Saldiva também integrou os comitês que estabeleceram os padrões de qualidade do ar e o potencial carcinogênico da poluição atmosférica, na Organização Mundial de Saúde. Ele defende como política de saúde pública levar as equipes de saúde da família para orientar a população sobre os principais sinais de alerta para problemas respiratórios. Também indica a importância de ações de planejamento urbanas locais nas periferias, que acabam sendo as mais afetadas pelas mudanças climáticas.
“O poder criativo embutido na cidade pode ensejar soluções locais. Mas, para isso, precisa ter interlocução com a comunidade”, afirma o médico e professor. Na entrevista com Gama, ele aborda também a mobilidade nas grandes cidades, nossa reação usual às crises climáticas e responde se é possível ser otimista em relação ao futuro.
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G |Quais fatores costumam gerar uma atmosfera de poluição? Que tipos de poluentes podem ser mais perigosos para a nossa respiração?
Paulo Saldiva |O que você respira como poluição é uma mistura de misturas. Quando você queima um cigarro, tem centenas de componentes, divididos em hidrocarbonetos e partículas. E as partículas variam conforme a temperatura do cigarro, a forma como você fuma e o tipo de instrumento. Um cachimbo queima a uma temperatura mais baixa. O cigarro, mais alta. Essa queima interfere na combustão do processo. E também depende do que você está queimando. O crack, por exemplo, ganha da cocaína em termos de rapidez de efeito porque a cocaína, quando você põe no nariz, pega uma superfície pequena. Já o crack é que nem uma injeção endovenosa, ele tem uma velocidade de absorção enorme.
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G |Quais os principais impactos da poluição e das queimadas para a saúde de quem respira diariamente esse ar?
PS |Não tem nada que você queima e inala que não tenha capacidade de produzir inflamação e, em alguns casos, mutações. Estou falando das ites, como a bronquite, ou da asma. Do outro lado, falo de câncer. O que você inalou não fica no pulmão, é espalhado. Então, tem uma via de acesso de componentes e nanopartículas, até plástico, pelo pulmão ou intestino. Ao longo da evolução, a gente selecionou mecanismos de limpeza dessa superfície e dos tubos: os cílios e o muco. No caso do pulmão, ele é batido, que nem chão de rock naquela hora em que o cara pula e os braços vão levando. Os braços são os cílios das células, e o muco é o tapete. Aquilo vai subindo e chega na orofaringe, onde você deglute, tosse ou espirra. Se ultrapassar a capacidade, seja porque a dose é alta ou o tempo de exposição é longo, você desenvolve uma doença.
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G |Qual a comparação de inalar poluição com fumar um cigarro, por exemplo?
PS |O cigarro é pior. Se você nunca teve câncer, enfisema ou bronquite e para de fumar, a sua expectativa de vida aumenta em 10 anos. Só que hoje, em São Paulo, fumantes são só 10%. Se todo mundo parar, vai se refletir em um aumento de um ano de expectativa média na cidade. Por outro lado, se atingisse o padrão ideal da OMS de poluição, ganharíamos dois anos de expectativa de vida. Então o risco relativo do cigarro é muito maior, só que ele é ponderado pela população. E quanta poluição é aceitável? Depende de quem você é, dos seus genes, da fase da vida, da idade. A gestante sai de perto do fumante porque não é que ela vai ficar doente, mas o feto. É uma janela de vulnerabilidade muito grande, assim como as pessoas que estão entrando na quarta idade agora.
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G |Algumas pesquisas já apontam que respirar poluição pode ter efeitos inclusive no nosso cérebro…
PS |Existem evidências fortes, mas não certeza. A gente agora está publicando um arquivo que mostra que se encontram partículas no bulbo olfatório, que é onde o nosso cérebro está mais perto da rua, com inflamação local. Então, sabemos que a poluição penetra tanto pela circulação quanto pelas vias próximas do nariz. Muitos nervos na boca e no nariz transportam, através do sistema olfativo, partículas para dentro do cérebro. E há evidências de aceleração do processo de declínio da idade, de envelhecimento precoce e distúrbios de atenção e autismo. O duro é que existem algumas outras variáveis, então talvez a poluição não seja a maior causa. Apesar disso, há evidências de que ela pode acelerar alguns processos de neurodegeneração.
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G |A baixa qualidade do ar já traz efeitos mais coletivos e duradouros para a saúde?
PS |Quando você tem um episódio agudo como esse recente em São Paulo, é muito fácil de perceber. Houve uma sobre demanda dos serviços de saúde. Principalmente em idosos e crianças, problemas de saúde aumentaram cerca de 60%. Do ponto de vista do efeito crônico, demora. E é sutil, não tem gente caindo na rua. A gente estima que, nos períodos em que a temperatura está mais alta, 2,5% dos dias, há um aumento de mortalidade de 50%. Numa cidade como São Paulo, onde morrem de 150 a 200 pessoas, é bastante gente. Mas é mais difícil identificar do que vítimas de inundação. Vai aparecer como aumento de infartos do miocárdio, AVC, pneumonia… São os alvos principais da descompensação de doenças respiratórias crônicas [ou a piora do estado de saúde de pessoas com doenças crônicas que estavam controladas]. A presença de fuligem também facilita que os microorganismos grudem nas partículas. O vírus é muito leve. Ele fica no ar um tempo, mas se grudar em uma partícula, ela funciona como Sedex e deposita o vírus no pulmão. Ele pega carona, agradece e vai infectar a gente. Então aumentam muito os casos de virose respiratória numa hora em que o sistema de defesa está desidratado.
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G |Nossas cidades estão preparadas para lidar com uma emergência desse tipo?
PS |O atendimento médico, sim, porque o sistema de saúde é mais capacitado. Assim como a Defesa Civil que já tem uma série de cadeias de comando e atitudes de apoio. Mas faltam os efeitos preventivos. No caso dos desastres, só fazem depois que já aconteceu. Para algumas pessoas, é tarde demais. Ou elas já perderam seus bens ou a própria vida. Deveria ter uma articulação da Defesa Civil com a segurança pública. Um caminho possível seria colocar as equipes de saúde da família para orientar as pessoas na atenção primária. Mostrar os sinais a que você deve prestar atenção, quando seu filho, avô ou você mesmo tem que ir a um pronto atendimento. Se você é diabético, dá uma controlada melhor da glicemia, ou então vê como lidar melhor com a asma. A saúde não cuida de arruamento, de verde, política de energia, urbanismo. A saúde só paga a conta.
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G |O planejamento urbano em si tem ganhado destaque para lidar com as emergências climáticas. O que pode ser feito para mitigar esses impactos?
PS |Assim como tem a medicina de precisão, devemos ter um urbanismo de precisão. Temos que começar a discutir o plantio de árvores onde as ondas de calor pegam bastante, comunidades carentes que têm um deserto de concreto e laje. Existem alguns exemplos muito exitosos no Brasil. A própria favela da Maré, no Rio, tem iniciativas de telhado verde e hortas que a própria comunidade discutiu, conhecendo a realidade local, as possibilidades e impossibilidades. Há muitos estudos sobre resiliência urbana de países nórdicos, mas Estocolmo é diferente de São Paulo. Por incrível que pareça, na Índia está surgindo um urbanismo de resiliência. O poder criativo embutido na cidade pode ensejar soluções locais. Mas, para isso, precisa ter interlocução com a comunidade. No caso da covid, o risco de adoecimento e morte variou até nove vezes conforme o CEP. O CEP era mais importante que a cepa do vírus, em relação à desigualdade no território.
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G |Quais fatores é importante avaliar?
PS |Condições de transporte, moradia e capacidade de trabalho impactam. [Para covid] A gente vacinou por faixa etária, mas não por risco de acordo com o tipo de habitação ou para quem tinha que manter a cidade funcionando, se acotovelando no trem ou ônibus. Aprendemos tarde que devíamos levar isso conforme o risco de adoecimento, além da idade. Tem que ser uma política pública, é por isso que eu acredito no Programa Saúde da Família. Tanto a educação quanto a saúde da família foram adaptando as normas gerais às realidades do seu território. É um esforço transdisciplinar muito difícil. Numa cidade pequena, o secretário da Saúde vai tomar café na padaria e o cidadão comum faz o contato imediato. Aqui é que nem ET, você vê de longe. O secretário tem que orientar a política desse tipo. Há um vazio, um gigantismo da cidade e uma ineficiência das concessões. Existem várias São Paulos, e cada política tem que ser feita para uma cidade específica.
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G |Pelo Instagram, dá pra acompanhar um pouco das suas jornadas pedalando pelas ruas de São Paulo. Como saber quando vale a pena fazer exercícios ao ar livre?
PS |Fizemos um experimento em que as pessoas se exercitavam testando vários níveis de poluição. A concentração é como uma dose de bebida. Saímos de uma poluição em São Paulo que nos anos 70 tinha teor de vodka e hoje está numa cerveja. Só que o tempo que você permanece no trânsito aumentou muito. Antes, você ia até qualquer ponto da cidade em 40 minutos. Eu achei um jabuti na rua, o Bartolo, que foi atropelado e ficou com uma pata quebrada. Quando trago ele para andar na calçada, ele ganha dos automóveis. Então alguma coisa está errada.
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G |Mas tem diferença andar de bicicleta e de carro, não?
PS |Na bike, eu vou para casa em 15 minutos. De carro, às vezes demora 1h30. Com os níveis habituais [de poluição] em São Paulo, os benefícios da prática ao ar livre ultrapassam os malefícios se você pedalar até 2h30. Se estiver em algum dos lugares mais poluídos do mundo, reduz bastante. Nos períodos muito graves, eu usava uma máscara PFF2, tendo 70 anos e sendo asmático. Mas a bicicleta é a minha terapia para ver gente. Eu gosto de olhar a cidade, de andar, prestar atenção, aquilo dá uma melhorada na minha cabeça. Eu vejo gente morta todo dia. Essa é a chance de encontrar um pouco de sentido nas coisas que faço.
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G |O combate às mudanças climáticas vem sendo discutido com frequência no mundo, nas COPs, mas parece que avançamos pouco. O que é mais urgente fazer neste momento?
PS |Minha visão é pessimista em relação aos governos e otimista com as cidades. Estamos no meio de uma disputa entre blocos hegemônicos: a China de um lado e os EUA do outro. A gente não consegue nem unir políticas ambientais e de mobilidade em municípios, imagina em escala global. Aquele protesto de 2013 colocou ônibus na agenda de todo prefeito. Acelerou o processo de mudança, com empréstimo deixando de ser aplicado em viaduto e indo para o transporte coletivo. Tem seu lado positivo e negativo. Você aumenta o potencial construtivo nas linhas do metrô, mas também o valor geral do terreno, expulsando as pessoas de onde moravam. Então tem que reservar uma concessão para a construção de imóveis para pessoas de média e baixa renda. Mas existe uma mudança na percepção do transporte coletivo. Quando começou, não era incomum ver na mídia que o corredor de ônibus atrapalhava o trânsito. Hoje, corredor capitaliza votos. Mesmo assim, somos subservientes ao carro, como acontece com o tráfego, a sinalização semafórica, as faixas de pedestre. Mas está evoluindo.
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G |Individualmente, dá para fazer algo? O que é essencial para evitar respirar um ar muito poluído?
PS |Cuidar melhor da própria saúde. Se você tem alguma doença crônica, atenção redobrada. Quando há poluição ou tempo seco, precisa repor a umidificação dos olhos com soro fisiológico ou lágrimas artificiais, a do nariz com inalações periódicas e, duas vezes por semana, umidificar a secreção brônquica. Se possível, reescalonar o seu horário de trabalho ou treino, evitando o período das 10h às 15h para escapar dessa nuvem de poluição. Existem dois tipos de poluentes: aqueles que saem do cano de escapamento e os gerados pela luz solar UV. Esses são mais reativos e tóxicos. Também buscar beber água e usar máscara no seu deslocamento. Naquela semana crítica, a gente devia ter restringido o fluxo de veículos e estimulado as empresas a colocar trabalho domiciliar. Como era véspera de eleição, algum marqueteiro deve ter falado para deixar quieto. Como médico, vi as consequências imediatas e o aumento de demanda por autópsias.
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G |Dá para dizer que nós e as próximas gerações vamos respirar um ar pior daqui a algumas décadas?
PS |Eu sou otimista. Imagine um workaholic que trabalha 15 horas por dia e fuma que nem uma máquina. De repente, ele tem um infarto e vai parar na UTI. Precisa decidir se volta para aquele mesmo trilho ou faz diferente. Já vi muita gente mudar de hábitos depois de uma crise. Assim como a peste bubônica induziu o sanitarismo e o tratamento de água, todos os períodos de crise de saúde nos remetem a um medo muito grande: o de morrer ou perder alguém precioso. Acho que a magnitude da crise, essa falta de luz, vai fazer com que as concessionárias de fato enterrem os fios, algo que está no contrato há 30 anos. E existem tecnologias para controlar as queimadas, como as usadas pela indústria de celulose. Então teremos uma série de iniciativas motivadas não por humanitarismo, mas porque a nossa saúde vai ficar prejudicada e muita gente vai perder dinheiro. O próprio setor produtivo vai se interessar em fazer, porque não quer sofrer perdas.
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