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Conversas"Se há telas, não há descanso"
O psicólogo Alexandre Coimbra Amaral fala sobre como vivemos tempos de exaustão e da necessidade de ficar offline para nos reconectarmos com nossa humanidade
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“Se há telas, não há descanso”
O psicólogo Alexandre Coimbra Amaral fala sobre como vivemos tempos de exaustão e da necessidade de ficar offline para nos reconectarmos com nossa humanidade
A pandemia parece ter deflagrado uma exaustão generalizada – e você deve ter sentido pelo menos um pouco disso na pele: cansaço de quarentena, de convivência confinada, de home office, de “Zoom”. Mães, profissionais da saúde, motoristas de aplicativo: todos exaustos.
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Foi em meio a esse cenário que Alexandre Coimbra Amaral resolveu escrever sobre o problema. Mestre pela Pontificia Universidad Católica do Chile, o psicólogo, palestrante e terapeuta familiar é conhecido pela participação ativa em diversas mídias, do programa Encontro com Fátima Bernardes, da TV Globo, a podcasts como o Café com Cuscuz, que ele toca junto à educadora parental Elisama Santos. Também é autor de “Cartas de um terapeuta para seus momentos de crise” (Paidós, 2020).
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“Nós, psicólogos, tivemos um aumento de trabalho nesse período nunca antes visto na história da profissão”, contou ele a Gama. “Todas as máscaras que podiam estar escondendo a exaustão caíram.” Em “A Exaustão no Topo da Montanha: Uma jornada de reconexão com outros ritmos da vida e com o que é essencial” (Paidós, 2021), lançado em setembro do ano passado, Amaral encarnou a exaustão como uma personagem que, do alto da montanha, olha para a humanidade cansada e a convida a imaginar outra realidade possível.
As questões relacionadas a esses tempos acelerados, claro, não é um tema novo, assim como os índices que a evidenciam: uma pesquisa de 2019, por exemplo, já mostrava que 33 milhões de brasileiros poderiam estar padecendo de burnout. O tema é muito discutido em obras como a do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, autor de “Sociedade do cansaço” (Vozes, 2015), uma das referências de Amaral para pensar seu livro. Mas conversar sobre isso segue sendo urgente.
“Na sociedade do desempenho e da performance, em que a exaustão é glamourizada, parece haver quase uma crença de que é inevitável viver assim”, diz. Por isso, o livro convoca a reflexões sobre como chegamos nesse estado e convida a imaginar reformas íntimas e estruturais para uma mudança de cultura. Ele também ajuda a desmistificar a exaustão, que explica ser um fenômeno multifacetado.
“Existe, por exemplo, um mito de que burnout é uma coisa que acomete só quem não gosta do trabalho. Mas é o contrário: dentro da lógica produtivista, atinge sobretudo quem é apaixonado pelo que faz e por vezes têm missões muito nobres, como os profissionais da saúde.”
Entenda mais na conversa abaixo, entremeada com trechos do livro.
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Na sociedade do desempenho e da performance, em que a exaustão é glamourizada, parece haver quase uma crença de que é inevitável viver assim
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G |No livro você fala muito de uma glamurização da exaustão nesses tempos. Como se dá isso?
Alexandre Coimbra Amaral |Na cultura do desempenho e da performance, você só é uma pessoa valorosa a partir do que faz ou apresenta como produto para o mundo. Fora que antes a gente não tinha tantos papeis sociais – há 30 anos, por exemplo, não tinha que dar conta de uma vida virtual ao mesmo tempo que uma vida real. Antes, a exaustão era tida como um sinal amarelo: atenção, é preciso parar. Era um sinal de que algo estava indo errado, estava em excesso, uma chamada para reorganizar a estrutura da vida. Você tinha a possibilidade de se incomodar com a exaustão e fazer algum ajuste para sair disso. Já no século 21, a exaustão virou símbolo de sucesso: ser uma pessoa muito ocupada é ser uma pessoa exitosa. Ela passou a ser vista como uma manifestação de status. Isso mostra uma perda de referência sobre a nossa saúde, a gente não usa a exaustão mais como uma referência de adoecimento da estrutura da vida.
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G |O que acontece com uma sociedade exausta?
ACA |O lado mais sombrio dessa história é que uma sociedade exausta produz muito dinheiro. Então, o sistema simplesmente tira de cena quem não aguenta: quem se exaure, é trocado, como a peça de uma máquina. Para além disso, o que acontece também é o florescimento de uma indústria farmacêutica de psicotrópicos como mantenedora dessa sociedade exausta. Há índices altíssimos de consumo de remédio psiquiátricos para depressão, ansiedade e insônia. Há, por exemplo, um abuso de Ritalina, que é um remédio desenvolvido para tratamentos de transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, entre profissões de alta performance: executivos, atletas, etc. É um verdade doping em busca de força, foco e fé. Então tem uma sustentação bilionária por trás dessa exaustão. É uma conduta paliativa, de administrar o sofrimento em vez de atuar na raiz. É como se o sistema dissesse para cada pessoa: olha, não tem jeito, você vai se sentir exausta. O máximo que podemos fazer por você é te dar um remedinho e uma aula de yoga no meio do expediente.
Existe uma indústria farmacêutica de psicotrópicos como mantenedora dessa sociedade exausta
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G |A exaustão atinge as camadas da sociedade da mesma forma? Tem se falado cada vez mais de exaustão entre as mães.
Alexandre Coimbra Amaral |A exaustão é um rolo compressor que está puxando todo mundo. É uma coisa que obviamente têm seus matizes, mas também é transversal à classe social. As diferentes classes sofrem de forma diferente, mas igualmente se sentem pressionadas a performar. Entre as mulheres têm se falado muito de carga mental, que é uma discussão recente, apesar de ser um problema histórico, tão histórico quanto o patriarcado. Então mesmo que a mulher tenha um cônjuge que divida muito bem as tarefas, ainda há um funcionamento mental ensinado secularmente que implica em estar o tempo todo preocupada, antecipando coisas, querendo ver o que ta faltando, etc. Para mudar isso, a sociedade inteira precisa se construir como uma comunidade em torno das mães. Eu não acredito em negligência materna, só em negligência social. Quando tem uma mãe exausta e solitária, tem um mundo que deixou ela assim.
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G |Nessa sociedade da performance, o descanso também foi cooptado?
ACA |Sim. Porque, nessa maratona sem linha de chegada, o que importa é manter o corpo e a mente nesse estado de pleno rendimento. Então se descansa para poder produzir mais depois, não porque descansar é importante e necessário, não porque é um direito inalienável nosso. É uma lógica que culpabiliza o descanso, que o vê como preguiça e falta de ambição.
Se tem uma mãe exausta e solitária, tem um mundo que a deixou assim
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G |Há descanso se há telas?
Alexandre Coimbra Amaral |Não. Há entretenimento, e isso tem um efeito para a saúde mental. Mas, para a saúde física mais profunda é preciso ficar offline, ponto final. A gente precisa se desconectar. Uma das coisas que têm acontecido hoje é que o descanso não tem conseguido cumprir sua função completa por causa da facilidade com que ele é quebrado, pelas notificações, por exemplo. E aí às vezes o sono não é tão reparador, porque o cérebro não consegue desligar. Só o “rivotrilzinho” para apagar.
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G |O descanso real requer ócio total?
ACA |Não. Você pode descansar em atividade, até correndo na rua, desde que não esteja fazendo algo parametrizado pela lógica do desempenho. Precisa ser algo apenas para fruir a vida, pelo prazer. O que faz sua alma cantar? O que te faz nem ver o tempo passar? É brincar com o cachorro? Montar Lego, cozinhar? Tem que ser pelo prazer da experiência. Porque, na sociedade da exaustão, perde-se a consciência do prazer no processo e só se foca no resultado. E o descanso traz prazer durante o ato, não tem a ver com o resultado. Tem a ver com contemplação, com presença. Não à toa, as relações têm pedido mais presença. Nós nunca estivemos tão conectados e, ao mesmo tempo, com pessoas que nos importam dizendo: “Você não está aqui de verdade”. São filhos dizendo para pais, cônjuges dizendo pra cônjuges.
Você pode descansar em atividade, desde que não esteja fazendo algo parametrizado pela lógica do desempenho. Precisa ser algo apenas para fruir a vida, pelo prazer
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G |Há esperança para sair da situação atual coletivamente?
Alexandre Coimbra Amaral |Sim. Por exemplo, em janeiro, a Organização Mundial da Saúde publicou na nova versão do CID [Classificação Internacional de Doenças], que o burnout não é um adoecimento da pessoa, mas sim do ambiente organizacional em que ela trabalha. Isso muda tudo. Porque, até a última versão do CID, era uma patologia individual, e a pessoa adoecida que se virasse. Agora, abrimos espaço para falar de toxicidade do ambiente organizacional. Se tem uma pessoa exausta na sua organização, tem algo errado. Essa mudança é maravilhosa, para que não fiquemos nessa responsabilização individual, que é uma mania do nosso tempo. Burnout ser classificado como uma patologia do ambiente é trazer para a estrutura. E nosso esforço deve ser justamente denunciar as estruturas.
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G |No livro você fala de uma reforma íntima para começar a se libertar da exaustão. Como podemos fazer isso?
ACA |Primeiro, desromantizar a exaustão, o que já é uma mudança de visão muito profunda. Escutar a exaustão como um alerta para uma reavaliação sistêmica da vida e lutar para falar sobre isso nos espaços que você habita. E uma grande porta de saída que eu indico no livro é recuperar a conexão com a beleza, porque a aceleração impede de perceber outras necessidades da alma que não o resultado da produção. É preciso se inspirar com aquilo que é belo pra você, e fazer da beleza uma morada dos seus dias. Quando você vive momentos de beleza, ela entra na alma e provoca alguma transformação. No princípio vai parecer quase como uma prescrição médica: eu vou me dar 30 minutos por dia para brincar com o cachorro ou tocar violão. Depois, quando começar a sentir o benefício disso e a sua saúde voltando, não vai mais a ser uma obrigação, vai ficar natural. Mas precisa se reconectar com o prazer, porque a exaustão retira o prazer inclusive daquilo que é prazeroso. Eu amo minha profissão, mas se tenho um burnout eu começo a ter raiva daquilo que eu mais amo.
É preciso recuperar a conexão com a beleza, porque a aceleração impede de perceber outras necessidades da alma
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G |Como é o conceito de bem-estar que você propõe no livro?
Alexandre Coimbra Amaral |A imobilidade que a exaustão provoca pode e merece ser revertida, e precisa de um esforço na direção contrária, de reaprender a pausar. Porque a beleza só acontece em tempos demorados, e o bem-estar é o resultado da experiência com o belo em cada grão de tempo. Entenda bem-estar como algo transitório, temporário: não é uma conquista definitiva, é um cuidado permanente. E precisa haver bem-estar nas duas dimensões da vida: na pessoal e íntima e na coletiva, nas interações sociais. Uma vida realizada apenas em uma dimensão cobra um preço alto, em algum momento presente ou futuro.
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G |Mas, se é um problema estrutural, como podemos lidar com isso individualmente?
ACA |Bom, nós temos um corpo que precisamos cuidar, e ninguém vai fazer isso pela gente. Então começa nessa consciência da sustentação desse corpo. E você precisa ler a exaustação como um incômodo no seu eu, é você que sente a exaustão. Então dá pra pegar essa sensação individual e trazer isso para o coletivo, reunir as pessoas do trabalho, conversar com família, cobrar as instituições que estão nos esgotando, etc. Mas essa chama toda nasce a partir da leitura da indignação individual.
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G |A aceleração também não tem a ver com não querer lidar com a nossa humanidade?
ACA |Ah, sim. Porque, quando estamos acelerados, não temos o tempo de contemplação da própria vida. E contemplar a vida significa parar e sentir e, quando a gente sente, não sente só coisas boas. A gente sente a dor de existir, que é inescapável. Então essa aceleração serve a uma certa anestesia da vida; quanto mais acelerados, mais anestesiados. Mas em algum momento essa conta chega. Se até um computador precisa ser desligado, reiniciado, imagine o corpo. A saúde humana também tem a ver com vazio, pausa, silêncio, sobretudo nesses tempos. É preciso cultivar esses espaços.
Entenda bem-estar como algo transitório, temporário: não é uma conquista definitiva, é um cuidado permanente. E precisa haver bem-estar na dimensão pessoal e na coletiva