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SemanaZé Gotinha: como o maior influencer da vacina sobreviveu ao cancelamento
Mascote das campanhas de imunização já amargou o ostracismo e sofreu tentativas de golpe. Agora, quer conquistar novas gerações com memes e funk nas redes sociais
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SemanaZé Gotinha: como o maior influencer da vacina sobreviveu ao cancelamento
Mascote das campanhas de imunização já amargou o ostracismo e sofreu tentativas de golpe. Agora, quer conquistar novas gerações com memes e funk nas redes sociais
A cena tem força histórica suficiente para explicar às futuras gerações o que foi o negacionismo bolsonarista no Brasil. Durante a apresentação do Plano Nacional de Operacionalização da Vacina Contra a Covid, em dezembro de 2020, quando as mortes pela doença já passavam de 190 mil, Jair Bolsonaro, sem máscara e tendo acabado de limpar o nariz, estende a mão para Zé Gotinha, símbolo das campanhas de imunização do governo desde 1986. Num lampejo de ousadia, o mascote recusa o aperto de mão do presidente e dá um singelo “joinha” à distância. Evitava assim o contato físico, como ditava a etiqueta médica tão desprezada por Bolsonaro naqueles meses pandêmicos.
A reação do personagem viralizou nas redes sociais. E não foi a primeira vez que o bonequinho com cabeça de pingo desfrutou de popularidade – para o bem e para o mal. Nos últimos anos, Zé Gotinha sofreu sucessivas tentativas de cancelamento, teve seu layout minimalista convertido pela extrema-direita e até associado à seita terrorista o coitado foi. Mas segue amado pelo brasileiro por ser, antes de tudo, um forte.
Sergio Lima/Poder 360
Concebido pelo artista plástico mineiro Darlan Rosa, o mascote originalmente seria apenas uma logomarca da campanha de vacinação contra a poliomielite. Há 40 anos, a doença que pode levar à perda dos movimentos e à morte atingia índices alarmantes no país. A meta do Ministério da Saúde era a imunização em massa e a erradicação até 1990. “Visitei postos de saúde de vários pontos do país e percebi que a vacina era assustadora, principalmente para as crianças. Em alguns lugares, tinha até soldado do exército na porta”, recorda Rosa.
O artista então sugeriu ao governo que a campanha tivesse um personagem infantil ao invés do logo. “E ele deveria ser muito simples de ser desenhado, para que qualquer funcionário dos postos de saúde pudesse reproduzi-lo em uma cartolina. Porque nas cidades mais pobres não havia nem mimeógrafo para copiar os cartazes oficiais.”
Darlan Rosa/Acervo Pessoal
Monalisa
A estratégia de lançamento do mascote incluiu um pleito, no qual as crianças foram convocadas a ajudar na escolha do nome. “Foi um sucesso estrondoso. O ministério recebeu mais de 10 milhões de cartas”, conta Rosa. A participação popular contribuiu para o engajamento para a causa e é inegável que Zé Gotinha foi um dos responsáveis pelo fim da pólio no Brasil, em 1994.
O êxito com o personagem ajudou Rosa a internacionalizar seu trabalho. A convite da Unicef, o artista criou um mascote para a campanha de imunização contra a doença em Angola. O “Zé Gotinha” de lá tem formato de estrela e também ajudou a erradicar a pólio, em 1999.
Aos 76 anos, Rosa tem em seu portfólio obras bem mais conceituais – só em Brasília, são 58 esculturas espalhadas pela cidade. No entanto, ao longo da carreira, não houve abertura de vernissage em que não tenha sido abordado para falar do mascote da vacinação, a “Monalisa” entre suas criações. “Isso nunca me incomodou. Me sinto muito honrado de ser o pai do Zé Gotinha”, garante.
Campanha “Gotinha Gotinha e Tchau Tchau Paralisia Infantil” (1989) Reprodução/Youtube Darlan Rosa
Sucessão
Manter-se na posição de ícone das campanhas de vacinação brasileiras, que por muitos anos foram consideradas referência mundial, não tem sido nada fácil para o bonequinho. Tal qual um Logan Roy, Zé Gotinha vive cercado de tubarões que sonham com a sucessão. Segundo seu criador, não faltaram mentes dentro do Ministério da Saúde propondo a troca de mascote a cada novo programa de imunização lançado em diferentes governos. Nunca deu certo. “Mesmo em campanhas sem o Zé Gotinha, os próprios postos de saúde tomavam a iniciativa de desenhá-lo para atrair a criançada ou alguém se fantasiava como o personagem”, orgulha-se.
Os golpes mais duros, no entanto, aconteceram nos anos de governo Bolsonaro. A notória falta de apreço do presidente pela vacina contra a Covid não foi fato isolado – o investimento em campanhas de imunização caiu cerca de 36% logo nos dois primeiros anos de gestão bolsonarista, apontam dados da Lei de Acesso à Informação. Além disso, os movimentos antivacina, que não param de crescer nos Estados Unidos, avançaram a passos largos durante a pandemia. Tudo isso acelerou a ida de Zé Gotinha para a geladeira.
Reprodução/Design Ativista
Um dos primeiros a notar o sumiço foi Lula. “Cadê o nosso querido Zé Gotinha?”, indagou o atual presidente, em março de 2021, em um discurso no Sindicato dos Metalúrgicos, no ABC paulista, poucos meses após deixar a prisão. Na ocasião, Lula apontava a ineficiência de Bolsonaro no combate ao coronavírus que, àquela altura, já havia feito mais de 320 mil vítimas fatais.
A resposta à pergunta do líder petista veio algumas horas depois, via redes sociais do deputado federal Eduardo Bolsonaro. O filho 03 do então presidente publicou uma imagem de Zé Gotinha empunhando uma seringa como se fosse uma metralhadora e usando a bandeira do Brasil como capa. “Nossa arma agora é a vacina!”, escreveu o deputado na legenda da postagem.
A imagem ganhou o mundo e chegou ao criador do Zé Gotinha original por meio de uma mensagem de um jornalista do Japão. “Naquele dia, a imprensa me procurou em massa. Repórter de tudo quanto é canto queria saber o que eu havia achado”, lembra Rosa. “Fiquei indignado, claro! O susto foi tão grande, que eu tive que me sentar para não cair. Estava quase chorando, pedia a Deus que me desse força para enfrentar aquilo.”
Reprodução/Twitter Eduardo Bolsonaro
Joseph Little Drop
Não foi a primeira investida difamatória contra Zé Gotinha. Em fevereiro de 2021, ao se deparar com a foto de um brasileiro usando uma fantasia menos elaborada do personagem, uma americana achou o traje semelhante aos usados por integrantes da seita supremacista branca Ku Klux Klan. “O mascote da vacina do Brasil talvez pudesse ter passado por alguns níveis de verificação e aprovação”, escreveu no Twitter.
Como mexer com tótens verde-amarelo em rede social é tipo ofender a mãe por aqui, tuiteiros num acesso patriotismo com força de torcida organizada começaram a responder em massa. “Esse mascote vem sendo usado em campanhas de vacinação do Brasil por mais de 30 anos. O nome dele é Joseph Little Drop”, postou um brasileiro, colocando a tradução gringa improvisada para Zé Gotinha nos trending topics. “Rindo mas indignado com a perseguição ao Joseh Little Drop”, escreveu outro.
A fantasia de Zé Gotinha que confundiu uma internauta americana Reprodução/Twitter RoxxaneLaWin
O próprio pai de “Joseph Little Drop” também foi às redes na ocasião. “Procurei explicar para a americana que no Brasil não há uma cultura de movimentos supremacistas como no país dela. E que o Zé Gotinha, por ser um personagem tão fácil de copiar, às vezes ganha essas versões mais simples feitas pela população…”, diz Rosa.
Apesar dos efeitos colaterais como esse episódio, as milhares de interpretações que Zé Gotinha propagadas país afora costumam agradar o criador, que coleciona memes e figurinhas de sua criatura no celular – uma imagem do personagem como “bombadão de academia” e rebolando ao som de funk são as preferidas. Também vem acompanhando com entusiasmo as contas do mascote no Instagram e no TikTok, abertas recentemente pelo Ministério da Saúde. “Zé Gotinha ganhou uma sintaxe própria impressionante. Ele foi criado para o povo brasileiro mesmo, para que ninguém tenha medo de usá-lo.”
Reprodução/Ministério da Saúde
Este conteúdo é parte de uma série especial sobre a vacina no Brasil, produzida com apoio da Fundação José Luiz Egydio Setúbal, instituição que atua em iniciativas sociais dedicadas à melhoria da qualidade de vida na infância, ao conhecimento científico sobre a saúde infantil e à assistência médica infanto-juvenil.
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