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Curriculum VitaeCV: Cilene Soares
Técnica de enfermagem do SUS compartilha sua trajetória vacinando crianças e adultos: “Amo evitar que uma criança sinta medo de agulha”
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CV: Cilene Soares
Técnica de enfermagem do SUS compartilha sua trajetória vacinando crianças e adultos: “Amo evitar que uma criança sinta medo de agulha”
Cilene Soares se deu conta da profissão que queria seguir quando levou o filho ainda bebê para ser vacinado. Era 1998, na época, ela sentiu que poderia dar um acolhimento mais completo do que recebeu às pessoas que buscam serem vacinadas no posto de saúde. Mas até chegar ao cargo que ela ocupa hoje, Técnica de Enfermagem de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) em Abaetetuba, no Pará, o caminho foi longo.
Quando criança, Soares saia às 5h da manhã de casa para estudar, na época a família morava em um sítio afastada da cidade. Como a mais nova, ela conta que retornava com o lanche da escola para repartir com os outros quatro irmãos, já que a família era muito carente. Aos 12 anos, começou a trabalhar como faxineira e nunca mais parou.
Até que os irmãos, já adultos, formaram suas próprias famílias e se mudaram, mas ela seguiu morando com os pais e cuidando deles até a mãe e o pai morrerem em decorrência do câncer. “O falecimento de minha mãe me fez querer lutar por algo melhor para mim, me motivou a fazer o curso e a querer ajudar as pessoas, já que não pude ajudá-lá”, conta a Gama.
A paraense começou um curso técnico, mas precisou interromper várias vezes por não ter condições financeiras. Até que finalmente se formou e hoje trabalha com vacinação em um lugar que tem orgulho de ajudar a construir, o Sistema Único de Saúde, o SUS. “Sempre lutei e corri atrás do que era a minha vontade, tive minhas dificuldades, mas hoje estou aqui, realizada com a minha profissão.”
O SUS é o melhor que nós temos
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G |Por que você escolheu trabalhar na área de vacinação?
Cilene Soares |Quando fui levar meu bebê pra vacinar, que na época tinha 1 ano e 8 meses, a profissional que nos atendeu foi rude. Eu saí dali com o sentimento de querer mudar aquela situação, mostrar que é possível trabalhar no SUS e prestar um bom atendimento. Queria ser gentil com uma criança porque naquele momento eu gostaria que o meu filho tivesse sido bem tratado, para evitar um pouco o medo dele da agulha.
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G |Quais os seus maiores aprendizados nesses anos como técnica de enfermagem?
CS |O atendimento ao público me ensinou muito. As pessoas procuram o SUS com o estigma de que serão tratadas de qualquer forma. Porém, quando eu atendo, tento tratar do primeiro ao último [paciente] com delicadeza. Até mesmo aqueles que chegam esculhambando, prontamente eu digo “calma meu amor, o que está acontecendo? Já vamos te atender”. E entendo que esse pensamento negativo com o SUS vem de antes, e é isso que precisamos quebrar, temos que mostrar que o SUS tem um tratamento humanitário.
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G |Qual a importância do SUS na sua visão?
CS |A importância do SUS na sociedade é imensa. Porque hoje eu vejo que, uma criança que nasce no hospital particular não tem direito ao teste do pezinho, ela não tem direito ao teste do ouvidinho, do coração, do olhinho. Ela tem que pagar ou sair de lá e procurar o SUS. A gente tem isso tudo de graça. Mesmo se você não tiver cadastro você consegue. Por isso as pessoas precisam ver esse valor. São tratamentos fundamentais que todo mundo precisa. Esse pensamento de que o SUS é uma porcaria não é verdade, falta gente, faltam coisas e precisa ser melhorado, mas o SUS é o melhor que nós temos.
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G |Já pensou em desistir da sua carreira? Por quê?
CS |Nunca. Nunca passou pela minha cabeça desistir. Passei por situações que a minha família queria que eu largasse o curso e desistisse porque era muito difícil… Mas eu amo trabalhar no SUS, principalmente com a vacinação. Amo poder brincar com uma criança e evitar que elas sinta medo, gosto de falar “você não vai chorar porque é um bebê forte.” Não tem preço poder trazer segurança às crianças, elas prestam atenção. Faço esse atendimento pelos meus trabalhadores. É o que eu gosto. Eu amo a minha profissão.
Arquivo pessoal
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G |Quais são os principais desafios da sua área e como lidar com eles?
Cilene Soares |Durante a pandemia da covid-19 eu tinha que trabalhar durante o dia na sala de vacina e à noite no atendimento de pessoas que estavam infectadas com o vírus. Eu entrava às 7h, ficava até às 17h no posto, depois pegava a estrada até em casa para tomar banho e me arrumar. Às 20h eu entrava no hospital e ficava até a meia-noite, depois voltava para casa. Fiquei nessa rotina por um ano, durante o pico da pandemia. Para lidar com essa situação foi preciso muito cuidado, objetividade e reforço das técnicas de higiene. Além de, claro, tomar a vacina. Felizmente nunca fui infectada e consegui tirar de letra.
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G |Como é sua rotina de trabalho?
CS |Meu horário de trabalho oficialmente começa às 7h, mas muitos pacientes vêm de longe, das ilhas [Arquipélago de Abaetetuba], e chegam no posto por volta das 5h30. Então tento chegar e começar a atender às 6h30. Tenho esse cuidado de estar lá um pouco mais cedo para atender eles, porque eles tem horário de voltar. E aí atendo esse pessoal logo pela manhã, depois eu atendo o povo da cidade.
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G |Para atuar na sua área, o que um bom profissional precisa saber?
CS |Precisa ter em mente que está trabalhando para o público. Ele precisa ter paciência, dignidade e acima de tudo, amor. Porque você encontra de tudo. Aquelas pessoas que lhe ofendem e que gritam. E você tem que manter a tranquilidade para também não se tornar uma pessoa como aquela que te tratou mal. Tem aquelas que são irredutíveis, principalmente na parte da vacina, onde chega aquele pai ou mãe que diz assim, “não quero que o meu bebê tome isso, quero aquilo”. Mas também tem pessoas que lhe dão atenção, que lhe dão carinho, que lhe tratam bem.
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G |Qual é a importância de uma boa formação acadêmica na sua área?
CS |Hoje eu tenho uma equipe de estagiários e percebo que eles chegam praticamente crus, sem saber quase nada. Eu instruo a fazerem todas as perguntas quando tiverem dúvidas, me suguem ao máximo. No curso particular de enfermagem em Abaetetuba tem que pagar por qualquer aprendizado extra, além da mensalidade. Os que não têm condições acabam aprendendo quase nada, e isso é muito problemático. Fora que as aulas teóricas são muito diferentes da prática, no SUS precisa ter um molejo que não é ensinado em aula.
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G |Você teve que abrir mão de algo para chegar onde chegou?
CS |Perdi minha mãe para a leucemia. Foi muito difícil, senti a necessidade de fazer algo, que foi o curso de técnica em enfermagem, no Grupo Educacional Genoma, em Abaetetuba. Minha família continuou morando em Belém, minhas irmãs e meu filho. Eu morava e até hoje moro em Abaetetuba. Tive que deixar de vê-los, tento visitar sempre que possível no final de semana, mas às vezes não dá certo. No início do curso eu não tinha um salário fixo, trabalhava como faxineira, não podia comprar sapato e roupa, precisei me isolar de muitas coisas para pagar o curso dos meus sonhos. Meu primeiro trabalho na área foi como voluntária, as pessoas falavam que eu era besta por trabalhar de graça, porém eu sabia que iria recompensar, em seis meses fui contratada e estou até hoje.
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G |Você teve um mentor?
CS |No estágio eu encontrei duas pessoas maravilhosas que hoje não trabalham mais, a Gleice e a Cleide, que me ensinaram e tiveram dedicação comigo. Sou uma profissional de qualidade por elas. Elas me inspiraram e fizeram eu ter o cuidado e o amor que eu tenho pela vacina e pelas crianças. Depois teve o Gleidson, a Adina e a Josi, que me abraçaram com um sorriso e me ensinaram tudo o que podiam.
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G |Como você enfrenta o machismo no mercado de trabalho?
CS |Passei por machismo, mas demonstrei que nós mulheres somos perfeitamente capazes de realizar qualquer atividade. Um colega de trabalho disse para mim que lugar de mulher era na cozinha e passando roupa. Briguei. Lugar de mulher é onde ela decidir estar, é onde ela quer estar, seja trabalhando como pedreira, faxineira, técnica de enfermagem, médica, advogada, qualquer profissão. Nós mulheres é quem decidimos o que nós queremos ser.
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G |O que você diria para alguém que pensa em trilhar um caminho parecido?
CS |Não desista dos seus objetivos, dos seus sonhos, porque nada é fácil. Vão surgir obstáculos e você vai precisar mostrar que é capaz de vencer todos eles. Eu sempre lutei e corri atrás do que era a minha vontade, tive minhas dificuldades, mas hoje estou aqui, realizada com a minha profissão.
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G |Qual é a sua missão?
CS |Minha missão é estar sempre disposta a ajudar o próximo. Sempre ter amor pelas pessoas que precisam de ajuda. Sempre ter humanidade. Como aquele lema “sempre fazer o bem, sem olhar a quem.”
Este conteúdo é parte de uma série especial sobre a vacina no Brasil, produzida com apoio da Fundação José Luiz Egydio Setúbal, instituição que atua em iniciativas sociais dedicadas à melhoria da qualidade de vida na infância, ao conhecimento científico sobre a saúde infantil e à assistência médica infanto-juvenil.
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