Ruiva no Rio: a pesquisadora de 'Praia dos Ossos' — Gama Revista
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Ruiva no Rio

A tradutora americana Flora Thomson-DeVeaux é o nome por trás da pesquisa do podcast ‘Praia dos Ossos’. Mas faz muito mais que isso

Isabelle Moreira Lima 06 de Novembro de 2020
Carlos Dorantes

Quem ouviu “Praia dos Ossos”, podcast da Rádio Novelo sobre o assassinato da socialite Ângela Diniz pelo namorado Doca Street em 1976, deve ter entendido que por trás daquela longa e cuidadosa investigação, crucial para o sucesso da série, estava o nome de Flora Thomson-DeVeaux. A tradutora norte-americana nascida na Virginia é citada nos primeiros episódios como “pesquisadora”. Mais para frente, compreende-se que ela faz muito mais que isso. Acompanha a narradora e idealizadora do programa, Branca Vianna, nas entrevistas; assina, com um time, os roteiros; e tem o mérito de conseguir, entre outras coisas, acesso a Doca Street, o autor do crime que é dissecado ao longo de oito episódios. Nesse contexto, “pesquisadora” parece pouco.

Mas depois de uma hora de conversa com Flora aceita-se a descrição. Ela mesma se define com os predicados que são pré-requisito para ser uma boa pesquisadora (e, mais até, uma investigadora): é curiosa e obsessiva.

O trabalho de pesquisa de “Praia dos Ossos” iniciou-se há dois anos. Flora passou cerca de dois meses enfiada em bibliotecas, acervos de jornais e em plataformas digitais como a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (seu xodó), para montar um mapa de personagens vivos, mortos, dos núcleos nas diferentes cidades por onde Ângela Diniz passou, e a partir dali traçar a estratégia sobre quais entrevistas seriam fundamentais para o “prainha”, como ela chama o podcast. Montou um fichamento enorme em ordem cronológica por décadas, de 1950 até hoje, um trabalho que, segundo ela, poderia tê-la feito “feliz por seis meses”.

Na entrevista do Doca, ficou o registro da minha ansiedade em letras garrafais no arquivo

Acontece que a maior parte dessas pessoas eram muito idosas e, depois que o primeiro personagem morreu, ficou complicado seguir apenas com a pesquisa. Branca decidiu que era hora de começar as entrevistas.

As duas iam juntas. Flora ficava em um canto, no computador, mandando pistas à Branca por meio de um arquivo compartilhado pelas duas em tempo real. “Na entrevista do Doca, ficou o registro da minha ansiedade em letras garrafais no arquivo.”

O roteiro foi uma etapa igualmente complexa. “Em um primeiro momento a gente achava que ia resolver a oito mãos. Mas jogamos a toalha e tentamos outro método: eu sentava com os roteiristas e fazia uma checagem dos fatos em cima dos arcos dramáticos de cada episódio. Eu infernizei a vida deles e vice-versa”, conta. Por fim, até na narração de Branca Vianna Flora palpitou. “E fico muito feliz que nossa amizade tenha sobrevivido a isso.”

“Uma trabalheira dos infernos”, e por isso mesmo deve doer (e dói, ela afirma) quando ouve que “Praia dos Ossos” foi maratonado em um dia. “As pessoas pensam que o cronograma de um podcast desses parece com uma produção do Youtube. Mas tem mais a ver com cinema mesmo.”

Não matamos o dragão em 1981, o caso da Ângela é o caso da Ângela, mas é também o de tantas mulheres

Com o fim do podcast e as notícias diárias de novos casos de violência contra a mulher, muita gente sugere que a Rádio Novelo faça novas temporadas de Praia dos Ossos. “Não matamos o dragão em 1981, o caso da Ângela é o caso da Ângela, mas é também o de tantas mulheres. A gente espera ter abordado o cerne dessas questões, mas as respostas individuais têm muitos ângulos a serem abordados, não há uma única solução. É a ocupação das instituições, é reforçar a rede de apoio, é ter na legislação mais mulheres, são mil medidas para conseguir tirar a gente um pouco desse buraco. E por isso a gente não vai fazer um novo episódio a cada novo abuso desses.Não ia acabar nunca e seria o podcast mais deprimente da história.”

Pódcasht, Princeton e Machado

Flora contou sobre o processo de trabalho e criação do podcast narrativo que virou febre em 2020 com um português com sotaque carioca temperado por discretos Rs do interior paulista. É espantoso que tenha começado a aprender português apenas na graduação, em Princeton, e que sua primeira visita ao Brasil tenha ocorrido num intercâmbio em 2011. Ela conta que caiu no papinho da turma do Departamento de Português e Espanhol de que a primeira seria uma língua muito fácil. “Mentira absoluta.”

(Aqui um parêntese para dizer que a relação entre Flora e o Brasil teve seus lances de acaso. Ela era fascinada pelo slogan informal da Universidade de Chicago, “onde a diversão veio morrer”, o sonho de qualquer nerd. Também queria ficar um pouco longe dos holofotes da irmã, a jornalista política e de dados Amelia Thomson-DeVeaux, espécie de celebridade no meio em que navegavam. Mas uma bolsa em Pricenton, onde Amelia estudava, foi irresistível. Em Chicago, onde o departamento de Português não era tão forte, Flora provavelmente não teria se aproximado do Brasil.)

Foi em Princeton que Flora estreitou os laços com a música popular brasileira, aliada para entender tempos verbais (“Chuva, Suor e Cerveja”, de Caetano Veloso, ensinou o imperativo com “Não se perca de mim”, por exemplo). Foi convocada a traduzir documentos para uma biografia de Carmem Miranda e apaixonou-se pela música das décadas de 1920, 30 e 40.

Também na graduação leu “Memórias Póstumas de Brás Cubas” pela primeira vez. “Sabe quando você faz uma espécie de amizade com um livro? Uma coisa de bater o santo. Notei que ia ser uma referência para mim, que eu recomendaria sempre a outras pessoas.”

Flora cismou com Machado. Começou a traduzir trabalhos acadêmicos sobre sua obra, como o do pesquisador João César de Castro Rocha, e por fim concluiu que o inglês precisava de uma nova tradução de Brás Cubas. Decidiu ela mesma cuidar da tarefa que, anos mais tarde, foi publicada pela Penguin Classics e ganhou destaque com resenha elogiosa na New Yorker.

Ruiva no Rio

Há três anos, Flora Thomson-DeVeaux é residente do Rio de Janeiro. “Não sei em que momento tomei a decisão, mas quando vim ela já estava bem tomada. Tudo começou com um intercâmbio, um semestre no Rio, outro em Buenos Aires. Mas o Rio é covardia, o Rio me ganhou.”

Em 2012, ganhou uma bolsa de pesquisa feita em cima da vida e da obra de Santiago Badariotti Merlo (1912-1994), mordomo da família Moreira Salles por mais de 30 anos e que foi tema de documentário de João Moreira Salles (casado com Branca Vianna) de 2007.

Via Santiago como alguém criado por Borges e criei ódio do João. Soube que ele ia dar um curso na universidade, e me recusei a me inscrever

Flora havia feito uma disciplina sobre cinema brasileiro dois anos antes, que terminava com o filme. “Tendo grande identificação com os grandes personagens da literatura argentina, eu o via como alguém criado por Borges e criei ódio do João. Soube que ele ia dar um curso na universidade, e me recusei a me inscrever, mas fui convencida por três professores”, conta.

João ficou muito intrigado com a adolescente que estava imersa naquele mundo tão distante: Flora pesquisava a febre do tango no Rio nos anos 1920 e 1930. Os dois se aproximaram, ela foi ao Rio seguir com a pesquisa. Neste período, resolveu ler o manuscrito de 24 mil páginas de Santiago (ao contar aqui, ela relembra: é curiosa e obsessiva). Foi nessa época também que conheceu as pessoas que trabalhavam no Instituto Moreira Salles, na revista Piauí, e Branca Vianna. “Mas a Novelo ainda era a pré-história, éramos só eu, Branca e Paulinha (Paula Scarpin, com quem se casou em 2017) falando sobre fazer podcasts”, conta.

Já não me sinto tão principiante assim. Tenho mais propriedade em todos os sentidos, sinto o país mais meu

Nesses três anos em que é “residente estável” do país (sem idas e vindas como fez desde 2011 e mesmo depois que ingressou no doutorado na Brown University em 2014), Flora concorda com a frase de Tom Jobim, citada por Branca em “Praia dos Ossos”, que diz que “o Brasil não é para principiantes”. “Primeiro que a frase é verdadeira, mas já não me sinto tão principiante assim. Tenho mais propriedade em todos os sentidos, sinto o país mais meu”, afirma, mas logo diz que mesmo tendo fincando raízes, não deixa de se surpreender. “Nunca estou em terreno firme e acho isso muito saudável. Gosto de ser estrangeira, de não ter a mesma capacidade de naturalização da história e das coisas. Presumo menos.”

Esse olhar, mais que um aliado, é um trunfo para seu trabalho. “Posso até me familiarizar com o passado recente, mas a pesquisa histórica me surpreende. E eu não vejo isso se esgotando, espero não perder essa curiosidade”, afirma.

Flora tem uma tradução e uma pesquisa para um novo podcast em curso, mas não dá mais pistas. Diz apenas que suas obsessões não são muito planejadas. “Tenho um projeto muito particular que é sentar e ler meus dicionários do século 19 e ver o que sai dali. Toda vez que os consulto aprendo algo sem querer. Bato o olho e, além da palavra, tem algo sobre o cotidiano material da época. Não respeitamos os dicionários como deveríamos, são repositório de conhecimento, fotografias da sociedade. É o que me dá mais comichão no momento, tem muita coisa engraçada e surpreendente”, diz, reafirmando os predicados de curiosidade e obsessão que parecem defini-la tão bem.

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