O colecionador de quinquilharias (cheias de valor) — Gama Revista
Rafael Barion

O colecionador de quinquilharias (cheias de valor)

Thiago Pethit guarda pedras de lugares que visitou e xícaras de hotéis onde se hospedou, e para a Gama conta sua história em dez objetos pessoais

Manuela Stelzer 04 de Junho de 2021

Muito do que o paulistano Thiago Pethit, de 38 anos, tem no apartamento, no armário e na mesa de cabeceira pode parecer um conjunto de quinquilharias. Mas seu olhar passional e cuidadoso transforma qualquer objeto em uma memória valiosa.

Mais do que músico, poeta ou ator, ele se define como um artista da performance, e assim desempenha múltiplos papeis. Cada disco que produziu trouxe uma nova estética também para a vida pessoal, marcando uma espécie de fase simbólica: uma estrela de glam rock em “Estrela Decadente” (2012), um punk dos anos 70 em “Rock’n’Roll Sugar Darling” (2014) e um mítico deus grego de cabelos encaracolados em “Mal dos Trópicos” (2019). “Não dá para saber se eu sou de fato tudo isso, ou se foi uma persona que me foi proposta. É uma troca inevitável entre Thiago Fidanza [seu nome de nascimento] e Thiago Pethit. Difícil saber quem é quem.”

A união entre pessoal e profissional rende bons resultados. “O lugar onde eu moro vira música, a pessoa com quem eu transo vira música.” Seu trabalho artístico, diz ele, também lhe convida a construir outra relação com roupas e objetos. Assim, ele atribui formas à sua vida com os mais variados cacarecos (cheios de valor) que encontrou pelo caminho. A Gama, conta sua história e trajetória a partir de dez desses objetos.

1 | O clichê, mas necessário

“O primeiro objeto que me veio à cabeça é meu violão. Tenho desde meus 20 e poucos anos. Ele não tem particularmente nada de especial, nem é dos melhores violões que existem, mas de certa forma é o meu maior parceiro de profissão. Quando eu escrevo minhas músicas, o violão é um parceiro íntimo, fica próximo ao peito. É um objeto que eu abraço. Acho muito difícil compor sem violão. A vida toda eu gostei de escrever, compor, ler poesia. Mas nada disso acontece se o violão não estiver no meu braço.”

2 | Companheiro de quarentena

“É um par do violão, mas tenho uma outra relação com ele: se eu abraço o violão, com o piano é um pouco o avesso. Ele tem sido um resumo dos meus dias na quarentena. Quando a pandemia começou, comecei a estudar piano erudito. Eu até já sabia algumas teclas, mas agora é onde eu mais fico.

Ganhei esse piano de uma forma bastante inusitada. Sempre quis ter um, mas que ficava abaixo das minhas listas de prioridades, por ser um instrumento caro. No início de 2019, a Cida Moreira, uma grande parceira artista, praticamente minha mestra, me mandou uma mensagem perguntando se eu gostaria de ganhar um piano de uma amiga sua que queria se desfazer do instrumento que era da avó, com muito valor sentimental. Ela queria dá-lo a alguém que fosse realmente cuidar dele. Quando eu vi, tinha ganhado um piano, que hoje faz meus dias menos piores.”

3 | Uma memória do Teatro Oficina — e parte de quem é hoje

“A uso como objeto de decoração. É uma coroa seca, que eu guardo desde que tenho 15 ou 16 anos. Ela tem um valor simbólico, é um acesso a muitas histórias pessoais. Na adolescência, fui pela primeira vez ao Teatro Oficina assistir a uma montagem de Bacantes. Foi um evento tão disruptivo na minha cabeça, uma festa viva de seis horas com muitas pessoas peladas, atores beijando o público na boca, que aquilo ficou guardado no meu imaginário. O que vi lá são coisas que até hoje me inspiram. Meu último disco, ‘Mal dos Trópicos’, foi muito inspirado por essa experiência. Assisti essa peça mais ou menos 50 vezes, em uma delas eu ganhei a coroa de Hera durante a apresentação, e guardei com muito carinho.”

4 | Patti Smith e a força das palavras

“É a primeira edição do primeiro livro de poesia da Patti Smith, ‘Seventh Heaven’ (Charles River Books, 1978). O livro, encontrado em um sebo em Londres, foi um presente do meu marido, com quem compartilho mais de 13 anos de relação. Desde muito garoto, sempre muito fascinado pela figura da Patti Smith, e com o tempo, principalmente quando me tornei músico, comecei a entender mais o universo dela. Fiquei absolutamente devoto e apaixonado, até fiz um show em homenagem a ela. Uma das coisas que eu mais gosto no seu trabalho é essa relação com a poesia. Ela tem o poder, um pouco como a Maria Bethânia, de dizer palavras. Em um show dela que eu assisti em Nova York, logo quando o ex-presidente Trump havia ganhado as eleições, em ela disse coisas tão fortes, sobre se manter vivo, se cuidar, estar pronto para a luta — foi eletrizante. Ter a primeira edição do livro dela é um pequeno tesouro para mim.”

5 | Encontro com Joe D’Alessandro

“É um quadro bem grande de uma fotografia minha ao lado do ator Joe D’Alessandro, um muso do Andy Warhol, tirada por Brad Elterman. Essa fotografia marca um grande encontro. Joe foi uma espécie de ícone contracultural e sexual, e eu sempre fui muito fascinado por esse contexto de Nova York nos anos 70. A história dele serviu como inspiração para o meu disco ‘Rock’n’Roll Sugar Darling’ e para o clipe de ‘Moon’, sobre garotos de programa. O clipe acabou chegando até ele, que me procurou no Facebook para dizer que tinha gostado muito da homenagem. Lembro de ter ficado desconfiado na época, pensei se poderia ser um perfil falso, mas não era. Ficamos superamigos, tive a chance de ir para Los Angeles e até gravei um poema lido por ele para ser parte do álbum. Em 2016, a revista inglesa Hero me convidou para fazer uma entrevista com ele, a última e única que ele deu nos últimos 20 ou 30 anos. Foi quando tiramos essa foto.”

6 | O garfo da avó

“Embora eu seja muito apegado a atribuir símbolos a objetos, na minha família são todos bem desapegados. Mas o grande objeto que eu considero uma herança familiar é um garfo da minha avó, com o qual ela experimentava macarrão. Era italiana, cozinhava muito. Faleceu no fim do ano passado, e eu herdei esse garfo, que provavelmente seria jogado fora, mas que, por me lembrar dela, eu guardei. Ela fazia massas mil, e sempre as provava, puxando os fios de macarrão com esse garfo. Foi com a minha avó que eu aprendi a cozinhar, que é uma das coisas que eu mais gosto de fazer na vida. Gosto mais de cozinhar do que de comer. Acho que o que eu mais sinto falta nesse momento é cozinhar para os amigos. Esse garfo tem essa memória da cozinha, do aprendizado, da família italiana, da saudade.”

7 | A carta que foi parar no livro do Xico Sá

“Minha primeira relação afetiva, aos 19 anos, foi algo que norteou um tanto do que eu sou hoje. Eu era muito apaixonado por um garoto, Pedro, quase uma paixão platônica. Ele namorava um amigo meu — nunca poderia rolar nada entre nós. Nutri essa paixão por meses. Até que um dia o namorado do Pedro foi viajar, e eu e ele ficamos sozinhos. Tivemos um grande fim de semana juntos, realizamos todos os desejos que havia entre nós, aquela coisa superjovem. Ao fim daqueles dias, o Pedro disse que voltaria para o namorado, e que nós não ficaríamos mais juntos. Para mim foi devastador. Nesse dia, escrevi uma carta-poema, ‘Carta Pedra’. Enrolei ela num pedregulho, fui até a varanda da casa onde o Pedro estava, joguei a carta e quebrei a vidraça. E fui embora.

Essa carta virou inspiração para o livro ‘Se um cão vadio aos pés de uma mulher-abismo’ (Fina Flor, 2004), do Xico Sá. Tem um trecho dela publicada dentro do título. Para além da história ser ótima (eu adoro contá-la), ela me mostrou algo que eu penso até hoje: eu sempre quis ser poeta, mas não acho que seja tão bom com as palavras. Sempre fui apaixonado, mas não é isso me transforma em poeta. Sou um grande performer. O ato passional era muito maior do que a paixão em si ou do que as palavras que eu tinha escrito.”

8 | Um abajur da casa dos pais

“Quando eu morava com os meus pais, eu tinha um abajur no meu quarto. Um dia, ele queimou, e eu roubei um abajur que ficava na sala. Adorava ficar ouvindo música só com a luz desse abajur acesa. E ele foi ficando no meu quarto, ficando… Foi o primeiro e único objeto que me acompanhou quando eu fui morar sozinho, sem dividir apartamento com ninguém. Era eu, uma cama e esse abajur. Levei ele para todas em que estive, e pretendo levar para todas as casas em que estarei. Virou uma espécie de objeto indispensável. Tem dias que nem gosto tanto dele [risos], mas olho com certo carinho. Eu nunca avisei que levaria esse abajur para os meus pais. Primeiro ele sumiu da sala, depois da casa.”

9 | Nostalgia dos tempos de aglomeração

“É um microfone que eu usei em quase 90% dos shows que fiz, daqueles modelos antigos, quadradões. Inclusive, pegar esse microfone me traz uma nostalgia gigantesca porque eu não subo num palco há muito tempo – e não sei quando voltaremos. Então, cada vez mais ele tem um valor enorme para mim, porque marca toda uma história da minha relação com o palco, com o canto, com meus shows. Nem é um modelo superespecial, mas ele é o meu microfone. Diz muito sobre o que já foi, sobre minha trajetória. Ele já caiu, já sofreu de tudo, e segue funcionando muito bem. Espero que resista a esse tempo parado com a pandemia.”

10 | O figurino icônico

“Esse é um macacão que gosto demais. Lembro do momento em que fiquei procurando por ele, em 2012. Estava lançando o disco Estrela decadente, e queria um figurino que fosse uma peça única. Na época eu tinha duas grandes inspirações, David Bowie, do glam rock, e Bertolt Brecht, um alemão dos anos 30, 40. E meu disco falava um pouco do simbolismo dessa época, da ascensão nazista e símbolos de combate. Brecht foi um grande pensador antinazista. Passeando num brechó qualquer dei de cara com esse macacão azul de operário de fábrica, que era bastante brechtiano. Nesse mesmo brechó eu comprei um cinto dourado. Assim montei meu figurino, um misto de glam rock com operário trabalhador dos anos 30. Para quem conhece minha carreira, é uma roupa minha que ficou muito marcada. Talvez eu me desfaça de todos os figurinos, mas nunca desse.”

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