A nobre arte da brasileira Beatriz Ferreira — Gama Revista
Jonne Roriz/COB

A nobre arte de Beatriz Ferreira

Promessa de ouro olímpico, a boxeadora brasileira Beatriz Ferreira segue os passos do pai e é a melhor do mundo em sua categoria

Daniel Vila Nova 27 de Outubro de 2020

Aos 27 anos, a boxeadora Beatriz Ferreira é uma das muitas atletas brasileiras que se preparavam para as Olimpíadas quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) anunciou que o mundo começava a enfrentar uma pandemia. Ela era parte dos atletas da seleção que treinavam na Colômbia para o pré-olímpico, competição que garante as vagas nas Olimpíadas, quando recebeu a notícia de que deveriam retornar ao Brasil. Uma semana antes do torneio, o CT foi fechado.

A frustração foi enorme, afinal sua história com o boxe começou muito cedo, ainda na infância, era como se ela se preparasse a vida inteira por aquele momento. Mas ao longo de sua trajetória, ela aprendeu a não esmoecer e decidiu continuar o treinamento de Beatriz numa espécie de “home office” esportivo. O apoio da comissão brasileira e dos colegas de equipe foi essencial. “Aprendi na seleção que ninguém é campeão sozinho. Podemos lutar sozinhos, mas por trás da luta existe todo um trabalho em equipe.”

Beatriz hoje é o principal nome de sua categoria e acumula conquistas por onde passa. Campeã brasileira, sulamericana, panamericana e mundial, a atleta é hoje a primeira colocada no ranking de boxeadoras do seu peso — sendo a única brasileira a conseguir esse feito.

Com mais de cem disputas e apenas cinco derrotas, Ferreira é um fenômeno do boxe brasileiro e mundial. Era promessa de ouro na olimpíada de Tóquio, e agora treina enquanto espera a realização do torneio pré-olímpico, que deve classificá-la para a competição mais importante de sua vida. Otimista, diz até que foi a pausa que permitiu uma preparação ainda melhor para os brasileiros.

Beatriz com a medalha de ouro no Pan de Lima

O começo no boxe, a relação com a família, uma suspensão de dois anos e a vontade de quebrar barreiras são alguns dos assuntos que Beatriz Ferreira relata para a Gama.

Filha de peixe, peixinho é

Sexta-feira era um dia especial para Beatriz ao longo de sua infância na Bahia. Durante a semana, ela seguia as ordens da mãe à risca. O comportamento ideal garantia a liberação para acompanhar seu pai até o Balbininho — um dos tradicionais ginásios esportivos de Salvador.

Lá dentro, a menina acompanhava as lutas de Raimundo Oliveira, o Sergipe, tricampeão baiano, bicampeão brasileiro e seu pai. A dedicação e o esforço que ele dedicava ao esporte encantava a garota, que se perguntava o que atraia o pai a aquela atividade tão desafiadora e exigente.

Aos poucos, a paixão pelo boxe foi passando de pai para filha e em pouco tempo, Beatriz convenceu o pai de que deveria aprender a lutar. Sergipe temia que a pequena filha se machucasse, mas ela, teimosa como só uma criança pode ser, insistiu até que ele cedesse.

Em pouco tempo, ficou claro que a paixão não era a única coisa que Beatriz havia herdado do pai: o talento também estava ali

Com um preso improvisado e um par de luvas velhas, a futura campeã mundial deu início a sua vitoriosa carreira na garagem de casa. Em pouco tempo, ficou claro que a paixão não era a única coisa que Beatriz havia herdado do pai: o talento também estava ali.

Beatriz não podia acompanhar todos os treinos de Sergipe, que eram longos e ocorriam longe de casa, mas às lutas ela sempre assistia. A habilidade para o boxe era óbvia, estava flaro que Beatriz trilharia o caminho da luta. “No começo, eles achavam que era só uma empolgação de criança. Eles sempre me apoiaram, mas não insistiram muito na minha carreira. Não queriam que houvesse qualquer comparação com a trajetória do meu pai. Ainda assim, ficavam bobos com meu talento. Meu pai até se gabava para os amigos”, diz Ferreira.

Beatriz e seu pai, o lutador Sergipe

A paixão se tornou profissão e, aos 15 anos, Beatriz começou a dar aulas de boxe. Mas o primeiro trabalho não foi parecia suficiente para ela, uma vez que já na adolescência tinha a noção de que precisava lutar para valer. “Não existe um professor de boxe que não tenha praticado, que não tenha sentido a adrenalina de subir em um ringue. Como é que eu vou ensinar meus alunos sem nunca ter passado por isso?”

Naquela época, seu maior entrave era seu endereço. Aos 13 anos, Beatriz havia se mudado para Juiz de Fora e não encontrava lutas de boxes com a mesma facilidade que havia em Salvador. Foi somente em 2014, já com 21 anos, que Ferreira lutou em seu primeiro campeonato brasileiro.

A primeira vitória veio, mas foi seguida por um gosto amargo: desclassificação e suspensão. A punição ocorreu por conta de um torneio de muay thai que a lutadora havia participado alguns meses antes, uma vez que a Aiba (Associação Internacional de Boxe) proíbe que atletas participem de competições de outras modalidades. Beatriz conta que a punição foi uma surpresa. Com poucas lutas de boxe disponíveis, ela havia optado por se aventurar em outros estilos de luta, tentando encontrar de novo a adrenalina que sentia ao subir no ringue.

Pensei em desistir, mas me convenci de que havia um jeito de reverter toda a situação e passei a treinar para isso

A suspensão foi pesada: dois anos sem poder competir em um campeonato organizado pela Aiba. Abalada, pensou em desistir. “Foi logo no começo da minha carreira. Estava muito ansiosa, arquei com todos os gastos. E logo no primeiro campeonato tomei um baque desses. Pensei em desistir, mas me convenci de que havia um jeito de reverter toda a situação e passei a treinar para isso.”

A lutadora procurou outros eventos de boxe que não eram organizados pela Aiba e encontrou nos Jogos Abertos do Interior sua chance de brilhar. Ela se destacou em duas edições do torneio e chamou a atenção da seleção brasileira.

Em 2016, participou de uma seletiva para a seleção e passou a ser convocada regularmente. Foi sparring de Adriana Araújo, que conquistou o bronze em Rio 2016 e após a colega ir para o boxe profissional, assumiu a vaga de titular.

“Eu participei de dois Jogos Abertos do Interior e ali tive a certeza de que era isso que eu queria para minha vida. Durante todo o tempo da punição, desci duas categorias: fui de 69kg para 60kg. Me adaptei ao peso e aprendi muito na seleção. Quando assumi a titularidade, não tinha muitas lutas mas já era muito experiente.”

A Medalha Olímpica

Com o fim da suspensão e a titularidade na seleção, Beatriz pode então começar sua carreira no boxe. E ela não decepcionou. Os títulos e as vitórias vieram aos montes e hoje a baiana é o principal nome em sua categoria. Falta apenas uma medalha em seu peito: a olímpica.

Ela sabe que é a favorita da modalidade, mas garante que isso não subiu a cabeça. “É bom saber que várias pessoas confiam no meu trabalho, mas eu não deixo isso me atrapalhar. Sei do que sou capaz e sei também que sou o alvo a ser abatido, que todo mundo vai vir para cima de mim. Isso me motiva a treinar mais. Quando penso que já treinei o suficiente, me dedico um pouco mais só para garantir.”

Um exemplo para a próxima geração

Embora saiba que a carreira pode ser longa, Beatriz tenta não fazer planos mirabolantes e se ater ao presente. “Penso em ir para Tóquio e, se Deus quiser, trazer a medalha para cá. Depois disso, faço um check up e vejo se ainda tenho fôlego para mais um ciclo olímpico. Se eu estiver bem fisicamente e mentalmente, quem sabe? É dureza, mas gosto de fazer isso.”

Ela, que até já pensou até em competir no MMA, admite que também tem curiosidade em se aventurar no boxe profissional, mas sabe que essa é uma possibilidade para o futuro. “Pretendo me arriscar no profissional, tenho curiosidade. Sentir essa adrenalina, que é diferente do boxe amador. Mas não pretendo ficar velhinha no ringue.”

“São seis anos trabalhando e me dedicando, sei também que tem um momento de parar e respeitar a galera que está vindo atrás com todo o gás”, afirma a atleta. O talento para a modalidade é óbvio, mas é a paixão pela chamada nobre arte que chama a atenção.

Feliz com o seu sucesso e com o sucesso de suas colegas de equipe, Ferreira também deseja incentivar uma nova geração de meninas “Menina tem espaço para fazer de tudo, jogar bola, lutar boxe ou MMA. Não existe isso de coisa de menino. Se você gosta, você pode fazer.”

Sinto que tenho muito a ensinar e desejo dar oportunidade às meninas que estão vindo aí, quero que elas achem as coisas mais fáceis

Para Beatriz, a sua geração está conquistando respeito e espaço graças às oportunidades que as anteriores não encontraram. “Começamos disputando os jogos olímpicos com três categorias, agora já somos cinco. Eu quero mais, tenho mais ambição. Quero que a gente iguale o número do masculino. Temos o mesmo boxe, o mesmo treinamento e a mesma capacidade. Por que não?”

“Entrei no boxe uma menina, hoje sou uma mulher. Amadureci muito e tenho orgulho de quem me tornei. Sinto que tenho muito a ensinar e desejo dar oportunidade às meninas que estão vindo aí, quero que elas achem as coisas mais fáceis”, afirma Beatriz, que, movida à adrenalina, luta para honrar o nome do boxe e romper barreiras.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação