Tudo que Já Nadei
Em seu segundo livro, a cantora, compositora e escritora carioca Letrux reúne minicontos, poesias e pensamentos com veia pessoal e nostálgica
POR QUE LER?
Após aprender a tocar violão fazendo aulas na internet, a atriz, cantora, compositora e escritora carioca Letrux partiu para musicar algumas das poesias que já vinha escrevendo havia tempos. Foi a partir daí que formou a primeira banda, a Letuce, com o então namorado, e depois seguiu carreira solo já com o nome artístico atual. Colunista de Gama, onde escreve mensalmente, a multitalentosa artista, porém, nunca deixou de lado a vocação literária e chega agora ao seu segundo livro.
Em “Tudo que Já Nadei”, Letrux dá continuidade à experiência fragmentada e nostálgica à qual deu início com “Zaralha: Abri Minha Pasta” (Guarda-Chuva, 2015). Mas se aquele tinha um autoproclamado jeitão de pasta escolar, do tipo que a gente abre já adulto para relembrar quem costumava ser, este se parece mais com um diário, repleto de pequenos contos, poemas e pensamentos soltos.
Como descrito pela própria autora, trata-se de um apanhado de “textões (mini contos/crônicas/devaneios), poemas e aforismos”. O clima de confidências adolescentes ao pé do ouvido atrai o leitor e permanece ao longo de quase toda a obra, que tem lançamento previsto para o final de fevereiro. Obrigatório para quem quer conhecer um pouco mais da multiplicidade que é Letrux.
Ressaca
Tinha uma risada esganiçada, que me irritava um pouco. Mas era mais velha que eu e já tinha colocado cigarro e outras coisas na boca, o que me causava fascínio. Éramos primas e fazíamos tudo juntas, quando férias ou feriados permitiam, nos entranhávamos. Nos fins de semana causávamos algum burburinho. Me provocava de uma maneira esquisita, mas eu era súdita, e ela tinha uma cicatriz de cinquenta centímetros na perna, quem era eu, a que nunca tinha quebrado nada, para desafiá-la? Me concentro para lembrar mais, mas temo que a demência apague meus números decorados, CPF, identidade, telefones, senhas sem fim e também sua voz, a cor da pele, as veias azuis na bochecha. Vida interrompida de maneira brutal e imbecil. O que foi mesmo que ela disse naquele dia antes d’eu ter dado um tapa na cara dela? Não lembro, mas revidou, claro. O dia que ela ganhou a prancha de surfe foi tão hipnótico. Foi um marco. Marina ganhou uma prancha. São flashes. Teve a tarde em que ela bradou pra família que iria, sim, pilotar o barco. Só deixavam os primos homens. Ela não queria saber, e eu e Clarisse, sua irmã mais nova, íamos de vassalas da rainha Marina, e a gente ria tanto, porque tudo era tão sério que a gente só conseguia rir. Já era feminismo das jovens da década de 1990, mas não sabíamos nomes e estávamos cortando mato alto do terreno baldio da tradicional família tijucana. Mas era tudo hilário, e fazíamos xixi com a bunda pra fora do barco, morrendo de rir, e ela, capitã, linda, estranha, linda, segura do que fazia. Me viu fazendo teatro. Teatrinho. Do colégio. Afirmou, como prima mais velha, que aquilo seria minha vida. Repetiu de ano, mas era a mais inteligente.
Era tudo hilário, e fazíamos xixi com a bunda pra fora do barco, morrendo de rir, e ela, capitã, linda, estranha, linda, segura do que fazia.
Gargalhávamos com os mesmos dentes. Meu dentista era o dela, a gente respondia quando comentavam que éramos parecidas. A Guerra no Golfo, janeiro de 1991. Marina vai para as ruas de paralelepípedos de São Pedro da Aldeia e começa a pular com fúria e bradar: “Guerra! Guerra!”. Quebrou o pé. Queria viver alguma mudança na vida, no século, uma transformação. Louca, já bruxa e nem sabia. Me encantava a paixão pela independência, pela busca das experiências, pelo ineditismo, pela coragem. A última vez que nos vimos, estávamos num quarto de outra prima. Eu, ela e um menino de um ano. Brincávamos com ele, fazíamos cosquinha. Observávamos o princípio da vida.
Perguntei seus planos para o aniversário, uns dias depois. Me contou o que estava pensando.
Triste pensar que já esqueci quais eram as ideias para aquela volta ao Sol. Ela era bonita, nariz pra baixo, na época não gostávamos, hoje em dia acho que as mulheres mais lindas são as mais narigudas. Não estou me defendendo. E, sim, a minha prima. Morreu completando outra idade.
Ela era bonita, nariz pra baixo, na época não gostávamos, hoje em dia acho que as mulheres mais lindas são as mais narigudas
Envelheci um século. Escrevi uma carta, e acharam bom enterrá-la com meu envelope ali dentro. Não consigo falar muito sobre essa carta. Isso define minha vida de maneira esquisita. Não sei quantos pesadelos, mas me lembro do sonho derradeiro, década depois, me avisando numa outra dimensão que agora estava livre. Houve revolta assim que morreu, as psicografias nos avisaram. Nem precisavam. Era ela, a revolta em pessoa. Após o enterro, fui ao cinema, dopada, não podia ficar em casa, não podia ficar parada, não podia existir depois, não podia ser real. Apelei para a ficção do cinema pra ver se tudo era mentira mesmo. Faltavam quatro meses para eu fazer dezoito anos. Senti o gosto de chumbo da morte na boca. Fui atrás da paixão pela independência, da busca das experiências, do ineditismo, da coragem. Fui atrás de imitá-la, de ser um pouco ela.
Tem um tempo já. Achei um caderno de perguntas, você sabe, aquele caderno com perguntas, todos respondiam no outro século. Uma besteirinha. Ela respondeu. Com fome, lia todas as suas respostas, pois ali se fazia presente, viva. Era um telefonema. Do além. A pergunta de número 32 era: “Você tem medo de quê?”. Eu e minhas curiosidades. Desde sempre. Ela respondeu: “De morrer cedo”.
Flores que parecem um nariz, vozes que parecem envelopes. Do alto desse coreto, eu espero na escadinha, enquanto você caminha até mim. Talvez chova nesta tarde. Cai a lua. Gira o sol. Marina ganhou uma prancha de surfe.
Flores que parecem um nariz, vozes que parecem envelopes. Do alto desse coreto, eu espero na escadinha, enquanto você caminha até mim. Talvez chova nesta tarde. Cai a lua. Gira o sol. Marina ganhou uma prancha de surfe.
- Tudo que Já Nadei
- Letrux
- Planeta
- 160 páginas
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