O Verdadeiro Criador de Tudo
Novo livro do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis ousa ao propor que o cérebro humano é o real centro do universo
POR QUE LER?
“Talvez seja o meu grande legado científico.” Assim Miguel Nicolelis definiu seu mais recente livro, “O Verdadeiro Criador de Tudo”, que sai neste mês pelo selo Crítica da Editora Planeta. Pudera: o título é ambicioso — com ele, o neurocientista brasileiro lança a hipótese de que o cérebro humano deve ser encarado como o centro do universo.
Eleito algumas vezes um dos pesquisadores mais influentes do mundo, Nicolelis baseia a ousada proposta não só em conhecimentos biológicos, mas também em um amplo arcabouço humanístico — crenças e filosofias, culturas e tecnologias, arte e política. Munido de tão diversas referências, ele expõe a Teoria do Cérebro Relativístico, que descreve como o órgão evoluiu e funciona. Nesse processo, se destacariam as capacidades de trabalhar coletivamente, fazer abstrações mentais e incorporar informações: um combo essencial para o desenvolvimento da civilização humana.
O tema parece bastante complexo, mas a linguagem do livro é bem acessível ao intercalar densas — mas diretas e didáticas — explicações científicas a passagens quase literárias sobre a história da humanidade. De quebra, nos capítulos finais, o cientista prevê como a interação excessiva com a tecnologia pode afetar o funcionamento do cérebro humano, danificando atributos que fizeram dele o centro do cosmos.
De fato, em algum lugar no meio de uma paisagem glacial que dominou o sudoeste e nordeste das montanhas da região dos Pirineus, onde hoje se situa a região sul da França e norte da Espanha, grupos de nômades do Paleolítico Superior deixaram para trás registros históricos altamente elaborados e impressos, na forma de pinturas coloridas, feitas com as próprias mãos, nas paredes e nos tetos rochosos de cavernas subterrâneas altamente convolutas. Em conjunto, essas obras de arte constituem os fragmentos sobreviventes dos aspectos fundamentais que definiam a vida física e mental de membros ancestrais da nossa espécie que adquiriram o desejo e a habilidade de deixar relatos das suas experiências e dos seus pensamentos. Para caracterizar apropriadamente a natureza épica dessa conquista do povo do Paleolítico Superior, é fundamental enfatizar que, até o momento em que eles decidiram se valer da pintura, gravando e esculpindo as paredes de cavernas subterrâneas, por milhares de anos, a linguagem oral era o único meio disponível para os membros da nossa espécie comunicarem as suas experiências. Da mesma forma, o cérebro humano era o único meio disponível para estocagem de memórias de longo prazo. Assim, de trinta mil a quarenta mil anos atrás, o substrato neural do cérebro humano servia de repositório primário tanto da história de vida individual como da acumulada da nossa espécie. Apenas a linguagem oral permitia que os registros históricos fossem transmitidos para gerações presentes e futuras.
Quando os nossos ancestrais se dirigiram para o subterrâneo e começaram a pintar as paredes e o teto das cavernas, deram início a uma gigantesca revolução na forma de comunicação por meio da qual a história humana passou a ser registrada, estocada e disseminada. Na rocha nua, os peregrinos foram capazes de projetar os seus mais íntimos sentimentos e representações do mundo ao redor e, em alguns casos, criar registros perenes das emoções e dos pensamentos humanos que, até hoje, nenhuma linguagem falada ou escrita pode reproduzir apropriadamente. Nesse contexto, diz-se que, ao escolher a pintura, esses antepassados destruíram de vez as grades que mantinham o cérebro humano prisioneiro da sua cela craniana. De acordo com o pensamento do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, os magdalenianos inauguraram a tradição humana de mostrar com as mãos aquilo que não podia ser dito com voz. Usando os termos da teoria do cérebro relativístico, os nossos ancestrais do Paleolítico Superior usaram a pintura em vez da fala para melhor retratar as manifestações mentais da informação gödeliana de alta dimensão, coisas como emoções, abstrações, pensamentos, que não podem ser descritas de forma completa por canais que transmitem informação shannoniana de baixa dimensão, por exemplo, a linguagem.
Uma vez liberada no mundo, não havia mais como voltar atrás. A transferência humilde de imagens mentais humanas cruas e nuas – derivadas, como outros produtos mentais, da atividade eletromagnética neuronal de grande escala – para um meio artificial – no caso, a rocha – permitiu aos seres humanos expressar e comunicar a forma pela qual representavam e interpretavam o mundo natural, a verdadeira base da sua filosofia de vida e cosmologia, bem como dos seus códigos éticos e morais. Além disso, deu origem a uma busca obsessiva, que continua até hoje, para identificar novas formas de mídia e novos canais de comunicação para estocar e disseminar pensamentos, visões, opiniões e conhecimentos, tão vasta e rapidamente quanto for possível, por toda a civilização humana. Durante os últimos trinta mil a quarenta mil anos, essa busca evoluiu da impressão de imagens mentais na rocha para a nossa habilidade de baixar, em tempo real, a atividade elétrica cerebral que media comportamentos motores e sensoriais em um meio digital, como rotineiramente fazemos no meu laboratório ao realizarmos os nossos experimentos envolvendo interfaces cérebro-máquina. Nada mal, certo?
Em suma, grupos de Homo sapiens no Paleolítico Superior – e talvez neandertais antes deles – foram pioneiros na expressão de um traço dominante do éthos humano, frequentemente expresso como se fosse alguma forma de maldição atávica, podendo ser identificada em uma variedade de formas, ao longo da história de todas as civilizações. Refiro-me à aparente inata obsessão humana de estender toda a sua obediência e a sua fidelidade, comprometer a sua vida presente e futura e estabelecer rígidos códigos de conduta moral e ética, com base em nada além de uma abstração mental intangível. Da mesma forma que fazemos hoje, os magdalenianos – nome derivado de La Madeleine, uma caverna na região de Dordogne, na França –, como são conhecidos os povos que pintaram as cavernas da Europa ocidental, viveram e morreram sob o encanto de poderosas abstrações mentais: mitologias primordiais criadas, disseminadas e assimiladas, como se fosse uma realidade tangível, pelo Verdadeiro Criador de Tudo. De acordo com a minha teoria, naquele passado distante, e ao longo de toda a história da nossa espécie, essas visões de mundo foram inicialmente cultivadas nos confins dos circuitos cerebrais de um indivíduo ou de um grupo restrito de pessoas. Logo, porém, as abstrações mentais individuais se espalharam por comunidades, como fogo em arbusto seco, adquirindo vida e uma dimensão tão poderosa, tão influente e tão irresistível que, invariavelmente, cada uma delas ascendeu para se transformar em uma teologia dominante, um credo, uma cosmologia, uma ideologia ou uma teoria científica – os nomes variam, mas as verdadeiras origens neurobiológicas são provavelmente as mesmas –, determinando comportamentos individuais e coletivos, sem mencionar a cultura definidora dos princípios essenciais que guiam todas as civilizações.
No avassalador processo de conquista social, cada uma das abstrações mentais dominantes, em cada momento da nossa história, subitamente impôs o que passaria a ser legal ou ilegal, aceito ou inaceitável, próprio ou impróprio, em termos de conduta humana, envolvendo todos os aspectos da vida, produzindo, como resultado, uma sombra onipresente e com frequência autoritária sobre todos os aspectos da existência humana. De acordo com essa visão, ao longo de todo o curso da história humana, à medida que cada abstração mental manobrava para ascender e derrotar a miragem mental anterior, ela era capaz de ditar novos dogmas e cânones, mesmo quando eles contradiziam flagrantemente a razão e os fatos estabelecidos sobre o mundo natural que nos cerca.
Com base nessa premissa – de que as abstrações mentais desempenharam papel essencial na construção da história da nossa espécie –, proponho que a descrição cosmológica dos aproximadamente cem mil anos necessários para a edificação do universo humano – isto é, a totalidade das realizações intelectuais e materiais do Homo sapiens – pode ser radicalmente realinhada a partir de um ponto de vista muito diferente, cujo epicentro é o cérebro humano, por si só ou como parte de Brainets. De acordo com essa remarcação cosmológica, o universo humano foi gradualmente edificado conforme distintas abstrações mentais – e os grupos sociais que juraram lealdade a elas – competiam entre si, em uma grande batalha, pela dominação da mente coletiva da humanidade, com o objetivo de alcançar a posição hegemônica que garantiria ao vencedor, a cada bifurcação crucial da história, o poder de redirecionar a principal trajetória a ser seguida.
- O Verdadeiro Criador de Tudo
- Miguel Nicolelis
- Editora Planeta
- 400 páginas
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