Xingu em chamas
Dentista que trabalha na região relata o desespero e a devastação causados por incêndios incessantes
Neste mês, o Pantanal registrou número recorde de focos de incêndio: foram 6.048 pontos de queimadas registrados no bioma. Na Amazônia, as fotos não deixam dúvidas de que a natureza virou brasa. E agora, o Xingu também pede socorro.
No território, já foram mais de 102.918 mil hectares devastados, ocas queimadas, animais mortos, plantações destruídas. Indígenas e voluntários lutam para combater o fogo e evitar o pior, mas não há recurso suficiente para salvar a todos.
Gabriela Rafael da Silva, de 32 anos, dentista cirurgiã na Terra Indígena do Xingu, conta o que viu e sentiu a Gama, e deixa sua mensagem de conscientização e o pedido de ajuda para o meio ambiente.
A sensação que fica é que da floresta só vão sobrar os escombros
“Eu trabalho na Terra Indígena do Xingu, no Mato Grosso, desde 2014. São quase sete anos de trabalho com a saúde indígena. E em tantos anos de atuação, eu nunca vi nada parecido com o que está acontecendo hoje.
Já trabalhei no médio e no baixo Xingu, entre as fronteiras do Pará, da Amazônia e do Mato Grosso. Atualmente, eu atuo no polo Pavuru, um dos quatro da região do médio Xingu. Aqui, são 24 aldeias e um mosaico complexo de etnias. No total, são 19. E muitos desses povos perderam tudo o que tinham nas queimadas. Nos últimos tempos, foram vários pontos de incêndio, um número sempre crescente. No polo Pavuru, eu fui a primeira a ver o fogo se aproximar.
Foi tudo muito rápido, a combustão vem do chão e se alastra num piscar de olhos. Busquei ajuda, em desespero, e acionamos bastante gente para combater os incêndios. A questão é que, aqui, não temos recursos. Temos um único helicóptero para transportar os brigadistas, e a todo momento tem um novo foco de queimada. É um trabalho incessante. Eu sou só uma mulher, dentista, mas quando começa a pegar fogo, todo mundo se compadece, e ninguém solta a mão de ninguém.
Além das queimadas naturais que têm acontecido na região, existe também o problema com os fazendeiros. O Xingu inteiro é rodeado por fazendas, o que é um risco, porque a gente sabe que eles não são a favor dos territórios indígenas. Os dois grupos estão sempre guerra. Em algumas aldeias, inclusive, foram encontradas balas de revólver recentemente. A guerra é real. E esses fazendeiros ajudam no fogo, incendeiam novos focos ou alimentam as chamas que já existem, tudo para fazer com que os indígenas mudem de lugar. A isso se une a falta das chuvas, as queimadas naturais, e a sensação que fica é que da floresta só vão sobrar os escombros.
O problema é que os indígenas aqui do Pavuru, no manejo da roça, queimam para depois plantar. Mas com a mudança climática, toda a lógica de manejo caiu por terra. Antes, eles podiam se basear no calendário das chuvas para controlar o fogo e o plantio. Mas dessa vez, a água não chegou na data esperada. O fogo ardeu na mata e não teve chuva que o impedisse. Plantações de banana e mandioca viraram carvão e a caça ficou escassa, já que muitos animais morreram ou fugiram. Vi diversos tamanduás, jabutis, cobras, todos muito machucados. Uma outra consequência disso foi o aumento de acidentes ofídicos, porque as cobras peçonhentas, assim como todos os outros animais, estão se aproximando das aldeias para fugir das chamas que consomem o ambiente. Eles vêm em busca de abrigo.
No fim, a gente só pode contar com a própria fé e a esperança de que a natureza se reerga
E o presidente ri, né? É fácil rir do conforto da sala em Brasília, com ar condicionado, enquanto a floresta é consumida pelo fogo, enquanto a gente chega a acordar com ar branco de fumaça. Se fosse para depender de poder político, estaríamos fritos, literalmente. No fim, a gente só pode contar com a própria fé e a esperança de que a natureza se reerga. O mais triste de ver é que toda essa mudança climática, causada pela ganância do homem branco, tem impacto direto em quem menos merece. Quem cuida, preserva e respeita nossas florestas são os grandes ameaçados. Há milênios os indígenas fazem a sua roça, plantam e caçam seus alimentos, esse é seu modo de vida, e sempre funcionou. E agora, por causa da ação do homem branco, eles se viram obrigados a mudar. Quem sofre são eles, quem sofre é a floresta. O resto do Brasil não é afetado de forma direta, porque é muito diferente sentir o calor do fogo na pele.”
As imagens da matéria são de autoria do indígena Melobo, liderança do povo Ikpeng, do Xingu.