Um amigo mais próximo que um irmão
“Nada nos prepara para perder o melhor amigo aos 30 anos.” Um depoimento sobre amor, amizade e morte
“Você chama isso de loucura, mas eu chamo de amor” Nat King Cole
Em 2013, numa manhã de sábado, bateram na porta de casa e corri para abri-la. Do outro lado estava João e, com ele, os sete anos seguintes da minha vida. Ele entrou com um lampejo nos olhos e uma mochila nas costas. De última hora, tinha mudado seu destino para pegar estrada com nossa turma, rumo à praia. Foi a primeira vez que nos vimos, mas a intimidade imediata fez parecer um reencontro, e então nos abraçamos, não como quem se apresenta, mas como quem põe a saudade em dia. Sem demora, começamos a conversar embalados por um ritmo incomum, e assim seguimos até bem tarde, quando caímos no sono.
Daí em diante, nos frequentamos praticamente todos os dias, trocando nossas experiências e compreensões do mundo e, sobretudo, nos apoiando incondicionalmente em qualquer situação. Atravessamos muitos outros dias e madrugadas esmiuçando assuntos infinitos, de casos corriqueiros à matemática pura. Viajamos para incontáveis lugares e rodamos a pé, sem rumo, por diversas cidades. Dividimos quarto por um tempo e, muitas vezes, a cama. Escrevemos ensaios a quatro mãos, criamos projetos e organizações, e colaboramos o tempo todo com nossos respectivos trabalhos. Fizemos farras homéricas: muitas festas e Carnavais. E dançamos demais. Numa dessas epopeias, na metade dos nossos 20 anos, debaixo de chuva e diante de ruas alagadas, saímos correndo, pulando, inventando movimentos e cânticos, convidando um monte de gente para essas brincadeiras. No auge daquela noite, tatuamos cada um, na canela esquerda, um garrancho minúsculo em que estava escrito internet. Uma molecagem à toa, que para sempre nos fez rir de nós mesmos, sabendo que estaríamos conectados, on-line, pelo gesto mais ínfimo.
Quando não estávamos juntos, era fácil as pessoas enxergarem os discursos e as expressões de um no outro. E se estávamos, éramos uma fusão de duas mentes e de dois corpos. Essa nossa afinidade se manifestava com muita força, tanto espiritualmente, com os alinhamentos éticos e estéticos, quanto fisicamente, por meio dos constantes afagos — o que, é claro, não combina muito com certa ideia de virilidade. Para os amigos de outra época, eu só poderia ter “virado viado” — rumor que sempre fiz questão de não desmentir, aproveitando a deixa político-pedagógica. Para nossos amigos em comum, infinitamente mais livres e diversos em ideias, gêneros e sexualidades, éramos uma dupla que fazia parte de um sistema maior, com as belezas e as complexidades que envolvem essas junções. Soubemos viver a fundo trios, quartetos e outras amálgamas, mas nossa articulação também trouxe incômodos, especialmente quando entrávamos em divagações e discussões impenetráveis ou insalubres para quem estava ao redor. Isso impedia que mais pessoas participassem de nossos jogos dialéticos. Por conta de nosso laço, carinhoso mas igualmente crítico, nos questionamos seriamente sobre nossas visões de mundo, sobre nossas teorias para as equações mais complexas da vida. Em razão do confronto com nossas parceiras e com as tantas e incríveis amigas, amigues e amigos, aprofundamos ainda mais esses questionamentos, sobretudo em relação a nossa posição de privilégio e aos nossos preconceitos: nossa branquitude e racismo, nossa masculinidade e machismo, nossa heterossexualidade e homofobia.
Éramos uma fusão de duas mentes e de dois corpos. Essa nossa afinidade se manifestava com muita força, tanto espiritualmente quanto fisicamente, por meio dos constantes afagos
No decorrer dos anos, cada vez mais experimentamos os códigos, superamos a palavra e aprendemos a nos comunicar também em silêncio. Primeiro, pelo olhar e demais sinais sutis; mais tarde, pela telepatia aguçada. Foi assim que os períodos mais longos de distância física, apesar de ligeiramente penosos, nunca foram grande problema. Era fácil nos sentirmos perto, ainda que estivéssemos em continentes diferentes. E com o amadurecimento, experienciamos transformações que mais de uma vez deixaram claro como podemos nos aproximar e nos afastar dentro de um mesmo desenvolvimento coreográfico, movidos pelos afetos que nos atravessam. Nem tudo o que ele fazia me dizia respeito, assim como, tenho certeza, muitas de minhas ações não chegavam até ele em bons termos. Me parece que amadurecer e ainda poder manter amizades férteis tem a ver com a capacidade de percepção dos fenômenos produzidos em conjunto, como tomam nosso interesse ou nos geram aversão. E claro, é preciso saber — e querer — reagir prontamente a esses fluxos, criando de modo dinâmico os contornos que dão forma a uma relação. É necessário entender a amizade para além de um exercício para passar o tempo, do qual retiramos algum prazer passageiro, mas como uma troca energética a partir de uma disposição de entrega total. Uma confiança intuitiva que, inclusive, supera questões terrenas ao apontar o que há de mais universal e transcendental na linguagem.
É necessário entender a amizade para além de um exercício para passar o tempo, mas como uma troca energética a partir de uma disposição de entrega total
Em uma ocasião marcante de nossa afluência espontânea, após ter vivido uma experiência arrebatadora e chorado por horas a fio, cheguei em casa ao nascer do sol de um domingo e, sem pensar, enviei uma mensagem para o João. Eu precisei não apenas compartilhar o episódio de alta intensidade, como esclarecer o que eu pensava de alguns desalinhamentos nossos e lhe agradecer por tudo. Falei da importância da nossa amizade, estabelecida mesmo diante de óbvias diferenças, e do apoio que ele sempre me deu. João era o meu canal de emergência: se vibrava a alma, se girava a cabeça, se apertava o peito ou se minguava a conta, eu o procurava. E todas as vezes que a vida urgia, ele estava lá a postos, inteligente, interessado, bem-humorado e generoso. O que mais se pode pedir de um amigo?
No começo daquela semana, João me ligou para dar a notícia de que havia sido diagnosticado com câncer. Foi um baque imenso, mas não perdi o chão nem amaldiçoei os céus. Antes de mais nada, me dei conta da bênção que tinha sido nosso encontro e busquei entender o que significava aquela mudança de perspectiva, o que poderia vir pela frente. Não tardou e enfrentamos as fases mais duras de hospitais, exames e tratamentos. Foram muitos sofrimentos e momentos de incerteza quanto ao futuro breve, mas também uma oportunidade única de desapego e de conexão com algo maior. No primeiro aniversário do João após o diagnóstico, na sequência de uma semana barra-pesada de quimioterapia, fomos comemorar à beira de um lago, no topo de uma cadeia de montanhas. Ali, falei como admirava vê-lo lidar de modo tão espirituoso com o desafio da doença, e lhe agradeci por poder fazer aquela travessia com ele. Nos olhamos profundamente e não falamos mais nada, apenas choramos juntos — de emoção, nunca de tristeza —, e nos abraçamos deitados na pedra, imersos na paisagem amena de um pôr do sol.
Um ano e meio após aquela ligação, depois de uma trajetória de altos e baixos, seu quadro piorou muito. Logo vieram os sintomas físicos mais dilacerantes e o decaimento da energia vital, mas até quando tudo foi absurdo e doloroso, foi gratificante como sempre. Certo de que os canais de circulação entre nós jamais deixariam de existir, para mim era só mais uma maneira de praticar nossa amizade, de dar o nosso melhor entre nós e com aqueles à nossa volta, na rede tecida de forma tão brilhante pela família e por tantas pessoas queridas. Em seus dias finais, João estava tranquilo. Disse que sentia como se estivesse fazendo a mala para viver uma nova viagem. Me veio à lembrança aquela sua primeira aparição em minha casa, com o melhor ânimo, pronto para a próxima aventura.
Quando fui encontrá-lo para um último abraço, ele me recebeu com uma alegria serena. Em determinado momento, já com bastante esforço, me chamou para perguntar baixinho como eu estava. Só pude dizer que me sentia feliz por estar ali, por tudo que havíamos vivido juntos, por ter encontrado nele o irmão que eu não tive. Ele acenou com a cabeça e abriu um sorriso, fechou os olhos com calma e adormeceu. No dia seguinte, eu estava lá a seu lado na hora da passagem, desejando que ele voasse com liberdade, como tem que ser. Onde sou corpo e carne, doeu terrivelmente. Nada nos prepara para perder o melhor amigo aos 30 anos. Contudo, na alma resplandeceu a luz e a leveza de um amor sem tamanho. Agora que não posso mais encontrá-lo em lugar nenhum por aqui, ficou o presente que é poder viver nossa amizade sem os limites de antes. Agora, posso tê-lo por perto definitivamente, em todos os lugares, o tempo todo.
GERMANO DUSHÁ é escritor, crítico, curador e gestor cultural. Trabalha principalmente com projetos de cultura independentes e experimentações curatoriais, nas intersecções entre arte contemporânea, literatura, filosofia e política.