Exibir e colecionar arte em telas digitais
Na primeira edição digital da SP-Arte, artistas de coletivos estreantes da feira contam como seus trabalhos circulam no espaço virtual
Prevista inicialmente para acontecer em abril, a maior feira de arte do país foi freada pela pandemia. O cancelamento desencadeou um período de tensão entre a organização do evento e os galeristas participantes, em função do destino de investimentos que já tinham sido feitos para a feira presencial. Este mês, depois de amenizada a turbulência, a SP-Arte foi rearranjada em cenário remoto. Seguindo os passos de instituições e feiras de arte internacionais, as andanças pelo Pavilhão da Bienal foram substituídas pela exibição de fotografias, pinturas, esculturas e trabalhos em diversos suportes sob a mediação de monitores digitais.
Nos corredores das edições presenciais da feira, que é voltada ao mercado, mas aberta ao público, instalavam-se antigas e novas galerias, das pequenas às mais influentes do circuito no país e no mercado internacional. Nesta edição, com as operações digitalizadas, o evento se abre também, e pela primeira vez, a perfis de expositores independentes. Chamado de SP-Arte Viewing Room, acontece de 24 a 30 de agosto e vai reunir em um único ambiente digital galerias de arte e de design, editoras, revistas, coletivos e projetos artísticos.
“Essa abertura promove uma atualização e aproximação do evento junto a um público diversificado. De certa maneira, amplia, rejuvenesce e oxigena o evento”, diz Fernanda Feitosa, fundadora e diretora da SP-Arte a Gama. “Acho que estamos diante de uma mudança na ordem das coisas. Na plataforma digital, o protagonismo se direciona para o artista em seu ateliê. Será, para muitos, uma verdadeira imersão em seus processos de trabalho e depoimentos.”
Entre os estreantes estão o Levante Nacional Trovoa, um canal de articulações constituído por artistas e curadoras mulheres racializadas nas cinco regiões do país; a HOA, galeria dedicada à arte latino-americana contemporânea que tem o espaço virtual como centro de sua atuação; a 01.01 Art Platorm, que mapeia produções africanas e afro-diaspóricas e incentiva um colecionismo mais justo e inclusivo; e o Projeto Vênus, escritório de arte fundado em 2020 pelo curador Ricardo Sardenberg.
Gama ouviu artistas dos quatro projetos mencionados, que contam como é estrear na SP-Arte em um contexto digitalizado.
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© Aceita?, Moisés Patrício Moisés Patrício
Artista e fundador da 01.01 Art Platform
“A ideia de que há poucas pessoas negras produzindo é resultado de um apagamento histórico, e neste contexto político a internet surge como uma oportunidade de acessar um espaço que simbolicamente sempre foi interditado, elitizado, que é o espaço das artes. O espaço físico demanda outras dificuldades para adentrar, e com a internet existe um atravessamento que é um pouco mais horizontal.
Essa experiência digitalizada tem sido o cenário ideal porque não temos estrutura como as grandes galerias espalhadas pelo mundo, um grande espaço físico. O espaço virtual vai possibilitar apresentar toda essa riqueza que é a produção negra no Brasil e no mundo. Nossa primeira experiência de acesso vem justamente num momento de crise, coincidência ou não. Eu entendo isso como uma brecha de poder colaborar para que a gente saia desse lugar hermético que está se tornando o mercado de arte.
Ninguém vai sair ileso desta experiência: o grande impacto está justamente na força que vem demonstrando o mundo virtual. Esse lugar em que nos conectamos com outros pares, outros pensadores espalhados pelo Brasil. Minha série “Aceita?” foi pensada para ser ativada no Instagram, porque eu tenho acesso a um maior número de cabeças pensantes sem ter que passar por certos filtros. E foi esse apoio coletivo me possibilitou continuar pesquisando. Hoje, eu já tenho representação de galeria, mas tenho também essa autonomia que o universo virtual dá. E você vê muito mais pessoas pretas produzindo conteúdo.
O mundo inteiro pergunta onde estão esses artistas, quem são essas pessoas. Existe um constrangimento quando instituições e feiras não conseguem responder. E, quando você entra no universo virtual, essas questões aumentam, porque todo o racismo, o preconceito e as dificuldades ficam muito mais evidentes. As feiras pelo mundo estão se adequando e correndo para um lugar que antes se subestimava, que é esse lugar da internet, da realidade 3D. Acho que essa movimentação vai gerar um impacto, e eu me sinto parte desse movimento.
Acho que é um movimento muito inteligente se adequar a isso. Enquanto artista e ativista estou o tempo inteiro trabalhando para que se entenda que a diversidade é a resposta. Sinto que as fronteiras estão sendo borradas e está sendo reconfigurada uma nova coisa — que a gente não entende ainda, mas que tem a ver com o coletivo.”
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© Imenso é o mundo que ainda guardo em mim, Igi Ayedun Igi Ayedun
Artista e fundadora da HOA
“Nesta edição, eu vou apresentar pinturas inéditas e também uma exposição digital na programação paralela à feira. Quero deixar o físico ali, mas eu também resolvi fazer um anexo que é todo feito para a tela, para o mundo digital. Acho que antes o próprio mercado de arte não entendia, e hoje meu trabalho ganhou novos espaços, novos olhos. As pessoas de fato reconheceram o trabalho digital como um trabalho de arte. E depois disso, acho que uma das grandes questões que a gente vai ter com relação ao mercado é: como comercializar arte digital?
Com relação aos artistas representados pela HOA e a forma de utilizar a internet, a dinâmica não mudou muito porque a galeria já nasceu com essa ideia de ter um presencialismo virtual muito forte. Eu sempre vi o digital como um outro plano, outra gravidade que deve ser estudada e considerada. E a maioria dos artistas que eu represento são da geração Z, que usa a internet como principal meio de difusão e comunicação. Boa parte deles comercializa pelo próprio instagram, com pessoas que nunca tocaram nas peças, nunca viram como elas são. Acho que a partir dos próximos anos a arte vai se flexionar mais para conseguir achar esses novos formatos, e os artistas vão ter uma grande influência na forma como o mercado vai ver o digital no futuro.
Eu e a artista Caroline Rica Lee [representada pela HOA] falamos muito sobre agora ser a era da difusão, e não da aquisição. É um outro lugar também. E como monetizar essa difusão? Acho que essa é a pergunta, e a HOA está experimentando. Acho que é sobre estar com antenas bem ligadas, romper com qualquer tipo de preconceito e estar aberto para receber as transformações e mudanças do mundo, porque elas são inevitáveis.”
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© Mônica Ventura Mônica Ventura
Artista do Levante Nacional Trovoa
“É a primeira vez que eu participo de uma feira de venda de artes. Minhas práticas artísticas têm a função de abrir um canal de negociação com as instituições e, de um modo geral, têm pouco caráter comercial. Sendo meus trabalhos uma proposta decolonial de arte, ao estarem em um espaço como a Viewing Room, acabam adentrando um lugar de estranheza. Então esta edição da feira eu apresento esculturas, fotografias e pintura, que foram retiradas do meu acervo pensadas para a experiência do Viewing Room. Na seleção dos trabalhos, o coletivo tomou o cuidado de escolher obras que de alguma forma tenham um recorte um pouco mais comercial.
A experiência virtual, tal como estamos vivendo, é muito nova, e acredito que a experiência estética perca bastante o desempenho em relação ao plano físico e visual que as obras têm. Mas a digitalização destas operações trazem uma experiência interessante: o lado positivo é conseguir atingir um público maior, chegar a colecionadores que por vezes não teriam acesso a essa produção específica, porque a nossa obra, por ser uma obra por vezes dissidente, não permeia a lógica mercadológica. O virtual permite esse passeio de uma forma menos seletiva, você pode entrar no espaço e se deixar ir naquela vivência, rolando as páginas e tendo uma experiência visual.
Outro lado positivo é o espaço descentralizado. Por exemplo, uma artista do Levante Manauara poder enviar sua obra para a exposição — isso fisicamente teria um custo e uma logística que talvez a gente não conseguisse neste exato momento realizar.A plataforma online trouxe a vantagem de ser ilimitada e sem fronteiras, ou seja, podemos apresentar obras das nossas artistas que não residem em São Paulo. Certamente, se a feira deste ano fosse no formato físico, teríamos que buscar incentivo financeiro para realizar o transporte das obras, uma vez que a Trovoa não é uma galeria. Neste novo formato de Viewing Room, cada artista será responsável por enviar seu próprio trabalho caso a venda se concretize. A descentralização também é comercial nesse sentido. O aspecto negativo talvez seja ter perdido a chance de montar as obras no espaço expositivo da feira, levando em consideração que somos jovens artistas, seria uma experiência inesquecível lidar com a dimensão do Pavilhão da Bienal.
Eu vejo com otimismo os novos espaços virtuais que estão acontecendo. As exposições digitais acabam de alguma forma suprindo uma experiência estética que neste momento só pode acontecer nesta forma, dentro das nossas casas, em frente a uma tela. E são formatos que estão sendo revistos, justamente porque a internet, especialmente depois dos anos 2000, sofreu uma uma padronização. A interface foi planificada e tudo virou uma grande folha, plana. Muitos artistas e instituições estão voltando para algo que era mais vislumbrado nos anos 90, no início dessa experiência de conexão em rede, que é o espaço virtual multimídia, o espaço 3D. E eu vejo um caminho muito legal que pode se desenrolar a partir disso.”
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© Camile Sproesser (quadro) e Ana Pigosso (foto) Camile Sproesser
Artista do Projeto Vênus
“Estamos todos aprendendo: acho que aquele modelo que a gente conhecia de circulação não existe mais. Mas estamos nos reinventando, as galerias também. É uma transformação muito grande para uma realidade onde as pessoas do mundo inteiro têm acesso aos trabalhos online. Por exemplo: durante o isolamento, eu estou morando no interior de São Paulo. E aí o Ricardo, meu galerista, teve de vir pra cá pegar os trabalhos e levar para fotografar para a SP-Arte. E fotografar uma pintura é muito difícil, é um segmento da fotografia. Nos Viewing Rooms você pode dar zoom, ver a textura do trabalho. É muito diferente. Mas também, depois de todos esses anos pintando, eu com meu telefone já consigo fazer algumas fotos e postar. E tem uma relação intensa do Instagram com o meu trabalho.
É claro que nunca vai ser a mesma coisa estar diante de uma pintura e diante de uma escultura presencialmente, você tem acesso ao que é realmente o trabalho, à vibração das cores. A pintura é muito do físico, você sente a pintura no corpo, faz a pintura com o corpo. A experiência transformadora da arte não acontece pela foto. Mas é engraçado, ano passado eu fiz uma residência e conheci um dealer de Los Angeles que queria comprar trabalho que ele ainda não tinha visto. Como alguém vai comprar uma pintura que nunca viu? Eu perguntei, e ele me respondeu que batia o olho em uma foto e sabia se queria ou não. Isso mudou meu jeito de ver as coisas, me fez pensar que deve ter um monte de gente como ele.
Estamos reaprendendo a jogar o jogo. Mas vejo um lado positivo também, de repensar os modelos de feira: viver esse tipo de evento diariamente drena muito, e pensar que no online você acessa de casa, pode ficar horas, fazer o seu tempo. Basta ter acesso à internet. E a possibilidade de, como artista, ter muitos acessos e pessoas do mundo inteiro de conhecendo o trabalho é muito legal. Não sei se é global a palavra, mas é também, de abrir para gente que talvez não iria numa feira.”