Entrevista com Chico Fellitti sobre o livro "A Casa" — Gama Revista

Conversas

A formação de um monstro

Chico Felitti, autor do livro ‘A Casa’, sobre João de Deus, fala do processo de investigação de um ano que inclui mais de 400 entrevistados e sobre como o guru construiu um império da fé e acabou condenado por crimes sexuais

Isabelle Moreira Lima 06 de Abril de 2020

A esperança da cura, a vontade de conectar-se com algo maior e a experiência da fé viviam lado a lado com crimes sexuais terríveis e recorrentes por décadas na Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia. Se a história de João Teixeira de Faria, o curandeiro religioso João de Deus, condenado por porte de armas e crimes sexuais, já era conhecida, agora é lançada uma nova luz sobre ela.

Lançado nesta segunda-feira (6), “A Casa” (editora Todavia, 264 páginas), uma investigação de Chico Felitti, traz riqueza de detalhes e uma narração viciante sobre o guru e a Casa Dom Inácio de Loyola, onde atendia. A edição é fruto de uma investigação de um ano que o fez entrevistar 400 pessoas e ser insistente como um vendedor ambulante em um cenário em que quase ninguém queria falar.

Segundo ele, os dois maiores aprendizados foram que ninguém nasce monstro, mas eles são “construídos”, e ter respeito pela fé. “Eu comecei muito questionador, mas aprendi que não se deve duvidar da crença de ninguém”, afirma.

Leia a entrevista do autor, que fala sobre como criminosos sexuais (a exemplo dos vilões do #metoo) conseguem se manter no topo por tanto tempo, sobre a necessidade humana de iluminação.

  • G |Você disse que essa foi a apuração mais difícil da sua vida. Quais as maiores dificuldades que você encontrou?

    Chico Felitti |

    Tive uma dificuldade técnica tremenda: eram 20 mil fontes que tinham a história, mas havia 20 mil pessoas que não estavam dispostas a falar. Foi muito custoso, como tirar leite de pedra até ganhar a confiança das pessoas. Teve gente muito hostil, de contato muito difícil. Culminou em uma situação de insegurança que foi intensa na última viagem à Abadiânia. Fui entrevistar uma pessoa que me alertou sobre saber não só o nome do hotel, mas o número do quarto onde eu estava hospedado. Ouvi tantas histórias de gente que sumiu. Mas nada esquisito aconteceu ao longo daquela noite.

  • G |Quanto tempo você ficou na cidade ao todo?

    CF |

    Quase um mês, principalmente para ganhar a confiança das pessoas. A insistência foi importante, chegava uma hora que as pessoas já me conheciam. Você se apresenta à dona da fábrica de bolo, que te recomenda para o ateliê de costura, para o dono da pizzaria. Quem me ajudou muito foi o Rafael, filho da Sabrina Bitencourt [ativista que auxiliou nas denúncias contra João de Deus, morta em 2019], e a irmã. Eles me colocaram em contato com muitas vítimas, fizeram muitas pontes.

  • G |Você ainda tem contato com eles?

    CF |

    Sim, e estão todos em polvorosa. É um momento esquisito pela prisão domiciliar [João de Deus teve a prisão domiciliar concedida por conta do coronavírus]. As vítimas estão muito inconformadas. Tinha muita expectativa de condenação, mas ele tem muita informação privilegiada. Desde a primeira vez que foi condenado por posse de armas, essa foi a primeira vez que foi à cadeia, em 2019.

  • G |Uma investigação como essa deve gerar muitas dúvidas, sobre em quem confiar, no que acreditar. Como você lidou com isso?

    CF |

    Eu acho que com muita cautela e como no “Serial” [podcast da norte-americana NPR, que revisita um crime ocorrido no fim dos anos 1990] você tenta refazer o máximo possível a trajetória da informação para ver se bate ou não o que estão te contando. A entrevista que mais demorou foi com a aposentada que fingiu ser paraplégica e que se curou. Eu sabia que essa história e essa mulher existiam, mas demorei muito para conseguir falar com ela. Eu precisava retratar tudo para ver se fazia sentido. Fui atrás de gente que é aliada do João Teixeira até hoje. A cronologia batia e eu pude chancelar o depoimento dela, que é o único em off. Esse off é muito sério, porque minava o poder dele. Era o único questionamento de poder de cura. Ela não quis revelar o nome por medo. Cortou relação com a casa [Dom Inácio de Loyola, o centro de João de Deus], mas ainda tem familiares que trabalham para a casa até hoje.

  • G |Aconteceram várias coisas com você ao longo do processo de apuração: seu marido ficou doente, e perdeu os avós, você caiu num bueiro. Uma pessoa chegou a desejar um câncer para você e sua família. Você teve medo?

    CF |

    No começo não deu medo, e a maior parte dessas coisas esquisitas aconteceu em outubro, quando eu já tinha tudo apurado e já poderia escrever. Se fosse antes, eu teria balançado. Mas achei importante contar que isso aconteceu em um período tão curto de tempo. Cair no esgoto não é o tipo de coisa que acontece. Eu não queria cair na crendice, mas fazer uma reportagem neutra. Dá para associar tudo a João de Deus. Quando se está lidando com essa história, existe uma pressão esotérica. Você acaba bambeando um pouco.

  • G |Você se sentiu atingido pela fé de alguma maneira?

    CF |

    Sim, no sentido em que aprendi a respeitar. Entrei muito questionador nessa apuração. Talvez as pessoas tenham se curado por elas mesmas. E pela casa como um todo. Hoje em dia não questiono mais, respeito e vejo espaço para essa contradição: esse caso é de um criminoso. Mas não achei nada documental. Pedi para ver exames, mas não havia. Teve até famoso que disse que foi curado de câncer.

  • G |Como escrever um livro investigativo que tem principalmente relatos como base?

    CF |

    Boa parte da história é feita de relatos, é uma história oral. Mas encontrei documentos que nunca esperava. Dentro da casa havia tinha 13 biografias, que João Teixeira pedia para os fiéis escreverem. Só usei o que consegui checar, havia incoerências muito grandes. E teve a Justiça também, encontrei fontes na Justiça que me mandaram muitos processos a que eu não podia ter acesso. Até um dossiê americano de Sedona [no Arizona, que João de Deus visitou em 2010].

  • G |No meio dos seguidores, há vários estrangeiros. Como você acha que eles entenderam e se jogaram nessa fé, que parece tão brasileira?

    CF |

    Foi justamente por ser peculiar. É tão alienígena para eles, tão encantador, o calor humano brasileiro, as plantas e frutas do cerrado, a experiência de quem nunca tinha tido ou visto aquilo. Para o brasileiro era mais a figura do João Teixeira. Para um estrangeiro, havia toda a experiência de viver no Brasil, um lugar de gente pobre mas generosa, que acolhe bem. A crença também passava por ser um bom destino turístico. Na década de 1990, a Casa Dom Inácio de Loyola virou um spa da alma. Dezenas de pessoas iam lá para tirar férias. Começou como hospital de pobre, que não tinha dinheiro para nada. E foi virando uma coisa meio new age.

  • G |Mas não era exatamente sofisticado, né?

    CF |

    Não, pelo contrário, era muito mambembe. Eu achei que ia ser um grande esquema sofisticado, eles desviaram milhões de dólares. Mas era tudo muito simples, com chão de terra batida, salão de concreto com banco de madeira, o que desconstrói um pouco essa imagem. Os rajneesh [seguidores do guru indiano Bhagwan Shri Rajneesh, mais tarde conhecido como Osho] viviam com aquelas roupas lindas. No caso brasileiro, eles usavam branco e tinha pouco apuro estético.

  • G |Talvez isso fosse um escudo para esconder aos desvios de dinheiro?

    CF |

    Sim, era uma fachada, não se via o dinheiro. E ele importava o discurso de Cristo, era um jeito de se associar a um discurso humilde.

  • G |Muitos famosos se encontraram com João de Deus. Você procurou essas pessoas?

    CF |

    Eu não fui atrás das celebridades grandes. Procurei o documentarista [Candé Sales, autor de “João de Deus, O Silêncio é uma prece”, de 2017], mas ele não me recebeu. Foi uma grande questão para mim ser incisivo com as pessoas que tinham depositado a fé nele. Como eu não tinha questionado anônimos, não quis fazer com os famosos também; eles foram igualmente enganados. Muitos apagaram as fotos que tinham com ele. Mas a Xuxa fez algo inacreditável, ela tuitou que errou. Ninguém quis falar sobre isso, e ela teve essa coragem muito grande.

  • G |Como e por que você acha que esse abuso se manteve por tanto tempo? Envolve tanta gente, como em casos do #metoo. Como os abusadores conseguem se manter impunes por tanto tempo?

    CF |

    Poder. O poder dele era inacreditável. A cidade inteira era cúmplice. No começo eu ficava muito abismado. Ouvi das pessoas da cidade coisas como “minha filha foi chamada para fazer uma entrevista às 23h e eu não quis que ela fosse porque sabia que seria estuprada”. Há processos que nunca foram para frente. A casa já nasceu em cima de poder: ele foi à cidade levado pelo prefeito, pelo deputado, por homens poderosos. Foi ele quem levou luz elétrica ao local. Tratou muitos presidentes, amigos de ministros do Supremo, que se recusaram a julgá-lo. Vai muito além da cidade. Mas, na verdade, na cidade o poder dele era muito mais financeiro do que político. Ele não elegia prefeitos e era odiado no outro lado da cidade, o católico. Ele era um mal necessário para muita gente.

  • G |Essas pessoas comemoraram a prisão dele?

    CF |

    Teve um grupo que ficou feliz e gente que ficou vitimada. Foi muito ruim para a economia da cidade.

  • G |No fim, qual sua avaliação sobre o João de Deus?

    CF |

    Para mim a grande questão do livro é como foi um crescimento, como criou-se um monstro. Ele não era um monstro tão poderoso desde sempre. E houve muita oportunidade de pará-lo, que foi desperdiçada. Se os primeiros processos tivessem sido levados a sério, ele poderia ter sido parado 40 anos antes. Quantas pessoas teriam sido poupadas? O poder preferiu não olhar para dentro daquele lugar. A gente fica achando que as pessoas hediondas nascem fortes, mas é um processo gradual. Ele foi alimentado por muito tempo, por décadas.

  • G |O que você acha que essa história pode nos dizer sobre a necessidade humana de transcendência?

    CF |

    Não sei se é transcendência. O livro termina numa nota negativa, niilista, que parece haver uma demanda por curas mágicas e milagrosas. Mas não sei se se chama de transcendência. É mais ter a fé como atalho e não resolver seus problemas, não querer lidar com as dificuldades. Mas claro que tinha também o pessoal que ia lá por questões espirituais, transcendentais, porque eles realmente acreditavam. Não estavam esperando a cura, nem nenhum grande favor, estavam a serviço de uma coisa maior. E é essa uma das partes mais tristes.

  • G |Por que você acha que é tão comum que gurus descabem para a dominação física e sexual?

    CF |

    É poder demais. Quanto mais poder você dá a uma pessoa, mais ela fica acima das regras que servem para todos. O raciocínio vira “não vamos sacrificar essa pessoa porque ela está fazendo o bem”. Cria-se um vácuo, é a lei de mercado da fé. O mais inacreditável para mim é como estão aparecendo novos gurus. Há um novo em Abadiânia, inclusive.

Produto

  • A CASA
  • Chico Felitti
  • Editoria Todavia
  • 264 páginas

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