Para aprender a dormir
Conheça dicas e sugestões de especialistas para dormir melhor em meio à loucura do cotidiano, um hábito essencial para a qualidade de vida
O sono é tão essencial em nossas vidas que a trajetória de praticamente qualquer pessoa, do primeiro engatinhar incerto aos passos firmes da idade adulta, pode ser contada através da forma como ela dorme.
Em seus primeiros dias neste mundo, um bebê, ainda sem uma percepção definida de claro e escuro, costuma dormir de 16 a 20 horas. Nessa idade, ele adormece e acorda várias vezes ao longo do dia. Nos meses que se seguem, porém, vai ficando cada vez menos no berço, e em algum tempo seu padrão de sono passa a se dividir entre um longo período à noite e uma soneca curta durante o dia. A partir dos cinco, a criança, ainda necessitada de 12 horas de sono, costuma ser ensinada a dormir uma única vez à noite. Mesmo sete anos mais tarde, em meio às espinhas e à rebeldia da adolescência, ela ainda vai precisar passar de nove a onze horas na cama para estar realmente descansada.
De acordo com a presidente da Associação Brasileira do Sono, Andrea Bacelar, são necessárias entre sete e oito horas diárias de sono para que um adulto produza em quantidade suficiente a melatonina, hormônio que nos ajuda a dormir e que precisa do escuro. Só que uma boa parte da população não passa todo esse tempo na cama — segundo estudo da ABS, os brasileiros dormiam em média 6,4 horas por dia em 2019. E, se passa, nem sempre é com qualidade.
O sono não significa ficar sem fazer nada. É uma atividade de recuperação tão importante quanto praticar exercícios físicos e mentais de alta intensidade
Durante o sono, os sentidos ficam embotados e se atenuam para que a pessoa consiga viver estágios de sono superficiais e profundos, se recuperando para permanecer acordada durante as 16 horas seguintes. E não apenas isso. De acordo com Bacelar, o coração também bate mais lento, a respiração é menos intensa, o rim filtra menos, os músculos relaxam. É um estado das coisas essencial para nossa sobrevivência.
Quando a pessoa adormece, ela passa por três fases: a sonolência, o sono leve e o profundo. Só que eles não acontecem uma vez só. Vão se repetindo a cada novo ciclo de sono que o indivíduo enfrenta. Dependendo do tempo que a pessoa passa dormindo, são de quatro a seis por noite.
Mas engana-se quem pensa que o sono é só calmaria. No estágio REM (da sigla em inglês, movimento rápido dos olhos), apesar de os músculos relaxarem ainda mais, a frequência cardíaca aumenta e a atividade cerebral se acelera num nível semelhante ao de quando acordada. Essa fase, em que temos sonhos vívidos, é importante para consolidar a memória e eliminar as toxinas acumuladas ao longo do dia no nosso sistema central. Do total, cerca de 75% do sono é feito de relaxamento, enquanto os outros 25% são marcados pela atividade intensa do REM.
“O sono não significa ficar sem fazer nada. É uma atividade de recuperação tão importante quanto praticar exercícios físicos e mentais de alta intensidade. É sobre criar um momento para que seu cérebro e corpo se regenerem, rejuvenesçam, se preparem para enfrentar os desafios da vida”, afirma o “coach do sono” Nick Littlehales.
Muita gente pode pensar que o tipo de sono necessário varia de acordo com a atividade que uma pessoa exerce, mas não é bem assim. Especialista em técnicas de sono, o britânico e ex-golfista Littlehales ajudou atletas de alguns dos maiores times de futebol do mundo, como o Manchester United, o Real Madrid e a seleção inglesa, a dormir melhor. Para ele, não há nenhuma diferença entre as necessidades de atletas e não-atletas.
“Nós acordamos todos os dias, temos diferentes estilos de vida e comportamento social. Mas não importa se você é um atleta de elite, um pai, um designer gráfico ou um morador de rua. Nada disso faz diferença alguma para o seu sono”, diz o especialista, conhecido por, em seu tempo de Manchester United, ter ajudado Cristiano Ronaldo a repousar o “sono dos justos”.
Nem contando carneirinho
Um levantamento da Associação Brasileira do Sono (ABS) feito em 2019 apontou que 80% dos brasileiros não dormem o suficiente. Boa parte deles, segundo Bacelar, abdicam de dormir de forma voluntária. “Tenho que acordar cedo, enfrentar o trânsito, deixar meu filho na escola, bater o ponto, produzir, trabalhar, fazer uma pós, voltar para casa, fazer os trabalhos domésticos e ainda arrumar tempo para dormir”, exemplifica a neurologista. Para viver uma rotina desgastante como essa, as pessoas tendem a descontar justamente no sono, dormindo mais tarde, despertando cada vez mais cedo e tentando repor as horas perdidas nos finais de semana.
Aumento da ansiedade, o estresse, o medo da doença, do desemprego e da crise financeira minam a qualidade do sono
Com a chegada da pandemia, nossos temporizadores internos e externos deram pane. Muita gente que passou para o regime home office até deixou de usar o despertador por não precisar mais madrugar para ir ao trabalho. Segundo Bacelar, isso levou as pessoas a mudarem o padrão de sono, passando a dormir e acordar mais tarde e a ter hábitos menos regulares.
Para alguns, especialmente quem vive em apartamentos minúsculos, virou rotina dormir, comer e trabalhar em um mesmo ambiente, diz o especialista em medicina do sono George Pinheiro. Ou começar a trabalhar às 8h para só encerrar o expediente às 23h.
Além disso, questões como o aumento da ansiedade, o estresse, o medo da doença, do desemprego e da crise financeira que vem se avolumando também minam a qualidade do sono. Todos esses problemas viram uma bola de neve que, ao interferir no sono, pode levar a uma maior irritabilidade, à dificuldade de concentração, perda de capacidade de memória e exaustão.
A rotina de fechar os olhos
O ciclo biológico de quase todos os seres vivos se baseia no ritmo circadiano ou, traduzindo para os meros mortais, no período de 24 horas que compõe um dia. “Temos um cronotipo natural, um twist genético que caracteriza nosso sono e define se somos pessoas de hábitos matutinos ou noturnos. Alinhar isso ao ritmo circadiano é um processo complexo”, explica Nick Littlehales.
Segundo Bacelar, respeitar o próprio cronotipo é o melhor dos mundos, pois ajuda a manter-se saudável e aumenta a eficiência do indivíduo. Caso uma pessoa que funciona melhor à noite precise acordar cedo constantemente, a solução acaba sendo um tanto dolorosa: ela precisa ajustar-se a essa lógica com muita paciência e disciplina. Qualquer descuido pode quebrar a rotina, porque o ritmo biológico está impresso nos nossos genes.
O tempo perdido de sono está perdido, a gente não recupera
Para ter um sono de qualidade, manter hábitos regulares é tarefa essencial. Não adianta fechar os olhos algumas poucas horas por dia ao longo da semana e tentar compensar dormindo mais nos dias de descanso. “O tempo perdido de sono está perdido, a gente não recupera”, afirma Bacelar. Ao passar 12 horas seguidas na cama num domingo, a pessoa pode sentir até mais sono ao voltar à rotina a partir de segunda. Além disso, dormir demais não é positivo. Estudos mostram que fazer isso com frequência pode levar a problemas cardíacos, aumentando as chances de desenvolver hipertensão, sofrer um infarto ou um AVC.
E veja que nem entre os especialistas tudo é consenso. Littlehales, por exemplo, desafia a velha ideia de que dormir por oito horas toda noite é o ideal. Ele defende que dividir o sono em diferentes períodos durante o dia e a noite, sempre acordando após completados um ou mais ciclos de 90 minutos, seria na verdade a melhor forma de descansar.
Dias de luta
O que a pessoa faz ao longo do dia interfere diretamente na forma como ela dorme. É importante, por exemplo, não comer muito à noite e ficar em jejum pelo menos duas horas antes de deitar, para que o processo de digestão não dificulte o sono. O especialista George Pinheiro também recomenda evitar o abuso de cafeína, restringindo o consumo até às 16h, para que seus efeitos não se arrastem até o horário de dormir.
A cama deve ser usada exclusivamente para o sono, então nada de trabalhar, comer ou assistir a um filme estirado sobre os lençóis. Senão, essas atividades vão acabar confundindo nosso cérebro quanto ao propósito do móvel e do cômodo onde ele está, podendo levar a um sono mais agitado.
Exercícios físicos como caminhadas também são atividades altamente recomendáveis, enquanto manter aparelhos eletrônicos próximos deve ser evitado tanto antes quanto durante o sono, para que sua luminosidade não atrapalhe. “Se a pessoa segue todas essas dicas e ainda assim sente sono durante o dia, ela precisa procurar ajuda profissional, porque algo não está certo”, conclui o médico.
O empreendedor insone
“Estude enquanto eles dormem, trabalhe enquanto eles se divertem.” Assim prega o manual do empreendedor e do funcionário modelo, que não faz lá muito sucesso nas redes sociais, mas que muita gente ainda segue. Na verdade, a frase representa um convite a uma vida menos saudável e produtiva. O conceito de que o ideal para uma empresa é ter um funcionário que não tira férias e trabalha mesmo aos finais de semana pode levar inclusive a uma queda na eficiência.
“No momento em que ele se sobrecarrega e acumula tarefas, o sistema vai falhar. E, quando falha, a falta daquele funcionário gera uma deficiência maior do que se tivesse trabalhado no seu tempo certo”, diz Bacelar. Segundo ela, no entanto, essa mentalidade já vem mudando, principalmente entre as grandes empresas.
Estabelecer horários de entrada e saída rígidos no trabalho, mesmo em home office, é uma boa forma de se precaver contra a exaustão
Como exemplo, a especialista cita os profissionais de saúde que sofreram síndrome de burnout durante a pandemia, por estenderem ao máximo seu empenho físico e mental no atendimento aos pacientes. Numa pesquisa realizada em junho pela ABS e a Associação Brasileira de Medicina do Sono (ABMS), 61% dos médicos brasileiros relataram piora na qualidade do sono e 41% apresentaram sintomas de insônia. “O ser humano é uma máquina biológica, ela precisa de momentos de sono e lazer para funcionar.”
Estabelecer horários de entrada e saída rígidos no trabalho, mesmo em home office, é uma boa forma de se precaver contra a exaustão, segundo Pinheiro. Programar pausas curtas durante a rotina profissional, entre 15 e 20 minutos, também ajuda a chegar ao final do dia sem tanto estresse.
Para o horror dos pais
Terror de qualquer mãe ou pai, o sono do bebê costuma ser polifásico, o que significa que ele dorme (e acorda) várias vezes ao longo do dia e da noite. E a regra é clara: se a criança está acordada, os pais também estão. Embora seja impossível evitar essa fase, Bacelar dá algumas dicas para passar por ela com menos sofrimento.
Uma é tentar se programar para dormir nos mesmos ciclos do bebê, principalmente durante a noite ou em momentos em que a temperatura corporal é mais baixa, como após o almoço. Outra, democrática e bastante usual entre os casais modernos, é dividir a árdua tarefa de acordar durante a noite para ninar ou trocar as fraldas. Só amamentar mesmo continua sendo atividade exclusiva da mãe — e dormir é essencial, já que o leite ideal para o consumo é produzido durante o sono profundo.
Mesmo para pais de segunda ou terceira viagem, o aprendizado com os primeiros filhos nunca é absoluto, porque cada criança tem um padrão de sono diferente. Por isso, não há uma técnica certa para educá-los em todos os casos. O importante é fazer entender que existe horário certo para dormir, para acordar e que é proibido passar a noite na cama dos pais. E, por mais difícil que seja, também é preciso resistir aos choros e esperneios ao dar a notícia.
“Eles vencem pelo cansaço, porque estamos cheios de atribuições e exaustos. Quanto mais tempo fica, quanto maior a idade, mais difícil é para desconstruir esses hábitos.”
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