Rafael Cariello: 'Solução para crise fiscal que forjou o Brasil aprofundou desigualdades' — Gama Revista
Domínio público/ Jean Baptiste Debret

Rafael Cariello: ‘Solução para crise fiscal que forjou o Brasil aprofundou desigualdades’

Autor de ‘Adeus, Senhor Portugal’, livro que mostra como a gastança da Coroa foi determinante para Independência, explica como ajuste de contas perpetuou injustiças

Amauri Arrais 30 de Setembro de 2022

“O Brasil nasceu de uma crise fiscal. Seu pai foi o déficit. Sua mãe, a inflação.” A afirmação é uma das ideias centrais de “Adeus, Senhor Portugal: Crise do Absolutismo e a Independência do Brasil” (Companhia da Letras), estudo minucioso sobre como a crise instalada pelos gastos desenfreados de Dom João VI e família foram determinantes no processo da Independência.

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Embora a mudança histórica de colocar o poder na mão de um Parlamento tenha conseguido equilibrar as contas ao menos até o final da monarquia, nascia ali também um ajuste de contas à brasileira, calcado num elitismo que está na raiz de desigualdades que se perpetuariam pelos 200 anos seguintes.

“Outros países começam a cobrar mais imposto de quem podia pagar mais e isso virou a tendência dali para frente. No Brasil, continuamos a ser um país elitista que não conseguiu aumentar a arrecadação de impostos e prestar serviços para a população”, afirma Rafael Cariello, jornalista autor do recém-lançado livro junto com o economista Thales Zamberlam Pereira.

Para Cariello, a diferença já é resultado de uma cultura escravocrata, com elites regionais que concentram poder e, portanto, podem resistir às pressões por maior tributação. “Sem que o estado tenha dinheiro para gerir os problemas da própria sociedade e as demandas da população, a gente vai estar sempre em conflito, escorregando de uma crise fiscal em outra.”

Na conversa a seguir, ele traça paralelos entre outras crises econômicas e tensões políticas e sociais no país e diz por que acredita que só por meio de regimes representativos e democracia podemos superar problemas radicais de origem de um país construído pelo trabalho de pessoas negras e indígenas escravizadas.

Continuamos a ser um país elitista que não conseguiu aumentar a arrecadação de impostos e prestar serviços para a população

  • G |Uma das ideias que abrem o livro diz que o Brasil nasceu de uma crise fiscal. É algo que se repetiria muitas vezes na história, com a gestão das contas públicas se mostrando decisiva para sustentação política dos governos desde D. João VI. Essa é uma característica do nosso país ou na raiz das grandes reviravoltas políticas sempre está uma crise financeira?

    Rafael Cariello |

    É um pouco as duas coisas. Essa parte da repetição ao longo dos 200 anos seguintes de crises fiscais não é tão particular do Brasil, mas de países pobres. E tem uma outra parte que é comum a todas as nações que fizeram essa transição do antigo regime para a política representativa. Uma mudança fundamental que acontece em vários países entre o final do século 18 e início do século 19. Esse regime em que os reis mandam com muito controle e poucos freios e contrapesos leva, em última instância, a uma má gestão porque eles não têm nenhum incentivo para se conter e vão fazer muitos gastos, sobretudo para financiar guerras. Ao longo do século 18, os conflitos vão ficando mais caros e eles vão elevando cada vez mais os impostos e criando insatisfação. A independência dos Estados Unidos tem um pouco a ver com isso e a Revolução Francesa também. E foi isso que aconteceu em Portugal e no Brasil. Dom João veio para cá por causa da guerra napoleônica. Portugal já estava tendo que gastar mais para defender seu território lá e depois para expulsar os franceses, o que já consumia 80% do orçamento concentrado em Lisboa. E aí a parte que vem para o Brasil tem que montar do dia pra noite um Estado, uma nova corte. Começa a cobrar mais impostos das elites do Norte, que ficam insatisfeitas. Mesmo assim, isso não é suficiente e, na reta final, é preciso pegar dinheiro emprestado no Banco do Brasil sem pagar de volta, ou seja, imprimir dinheiro, provocando inflação que corrói o poder aquisitivo de mais pessoas que engrossam essa revolta. Em resumo, existia um movimento comum no mundo Atlântico, envolvendo a Europa e a América do Norte de mudança institucional que é deflagrado em grande medida pelas crises fiscais.

  • G |E o que tem de particular no caso do Brasil para que tantas crises fiscais tenham se sucedido nos 200 anos seguintes provocando instabilidades políticas?

    RC |

    No Brasil, essa revolução política que coloca o poder na mão do Parlamento foi bem sucedida no sentido de conseguir equilibrar as contas. Mas embora a gente não vá ter crise fiscal até o final da monarquia, a maneira como se equilibram as contas é muito cruel. Os outros países que ficaram ricos mais tarde ou que já eram ricos nessa época cortaram gastos de guerra, com palácio, mas passaram a cobrar mais impostos das pessoas que estavam no Parlamento, do que seria uma classe média. Nos Estados Unidos, se passa a cobrar imposto de propriedade, algo que no Brasil não tem até o final do século 19. Com esses impostos, países como Estados Unidos, Inglaterra e França conseguem bancar serviços públicos mais amplos já no século 19. Eles começam a cobrar mais imposto de quem pode pagar mais e isso vai ser a tendência dali para frente. Essa diferença é ruim para nós porque continuamos a ser um país elitista que não conseguiu aumentar a arrecadação de impostos e prestar serviços para a população.

  • G |Parece o começo das nossas injustiças…

    RC |

    Isso não só agrava nossas injustiças como já é um pouco resultado delas. Lá em 1830, quando a Assembleia briga com Dom Pedro, os parlamentares cortam os gastos com militares a tal ponto que ele fica quase sem poder militar. Aí há o conflito com o Parlamento, o imperador perde e abdica da coroa. Mas depois desse corte brusco, que foi uma boa solução, nunca mais se aumentaram os impostos dessa elite brasileira. Isso vai impedir, por exemplo, que a gente financie uma educação melhor já no século 19. Isso também já é resultado de sermos um país escravocrata, com elites regionais que concentram poder e, portanto, podem resistir às pressões por maior tributação. E aí vamos pagar realmente a conta pelos dois séculos seguintes. Sem que o estado tenha dinheiro para gerir os problemas da própria sociedade e as demandas da população, a gente vai estar sempre em conflito, escorregando de uma crise fiscal em outra.

Regimes autoritários vão sempre favorecer o rolo compressor sobre minorias

  • G |Trabalhos anteriores colocam a influência do Iluminismo e da cultura política nesse começo de século 19 como um fator principal para emancipação do Brasil. Vocês, apesar de reconhecerem a centralidade dessas ideias, dizem que elas sozinhas não explicam a Independência. Por quê?

    RC |

    O peso é enorme porque se você tem uma grande insatisfação com o regime político e com a situação material das pessoas, para que isso vire uma mudança de modo de governar é preciso que alguém tenha imaginado essa possibilidade. É preciso que alguém tenha dito: “existe uma alternativa em certo lugar de que as pessoas se reúnam e votem e decidam pelo destino delas”, que é a alternativa da constituição. Isso foi construído ao longo de mais ou menos um século, entre John Locke, no final do século 17, passando por Montesquieu. Existe uma imaginação iluminista liberal que permite que no Brasil, de 1817 a 1820, as pessoas insatisfeitas com o rei saibam que existe uma alternativa. No nosso caso, já existia um exemplo desse projeto em outros lugares, como na Inglaterra, onde já funcionava há mais de um século, na França ou na Espanha. As mudanças de mentalidade ajudam a explicar por que de repente a gente quis derrubar um rei e instaurar um regime constitucional, mas não explicam por que aconteceu entre 1817 e 1822. Ali chegou o momento em que as pessoas já tinham esse repertório de possibilidades e havia uma crise de governo por má gestão econômica que as pessoas não aguentavam mais.

  • G |O Estado brasileiro nasceu, como vocês afirmam, com esse radical problema de origem: mais que qualquer outro país, foi construído pelo trabalho de pessoas negras e indígenas escravizadas – o que não foi corrigido mesmo depois da abolição em 1888. Muita gente notou que nas eleições deste ano o racismo estrutural não foi um tema sequer mencionado em debates. Por que esse é um assunto tão blindado aos ventos de mudança da época e de hoje?

    RC |

    É difícil de dizer. O que nós queríamos no livro é nos questionar se a ideia de comemorar 200 anos de Independência, que está muito ligada a essa metáfora biológica do nascimento de uma nação, faz sentido se somos uma sociedade extremamente violenta – em particular com as minorias políticas, grupos que têm menos força e ganharam menos peso principalmente agora, com o governo Bolsonaro, que anuncia que “a minoria tem que se submeter à maioria”, num total desrespeito à diversidade. E quando digo “desrespeito à diversidade” aqui não é só um conceito. No Brasil, isso significa que as pessoas estão morrendo mais e de forma mais cruel. Eu entendo que alguém diga que não dá para celebrar 200 anos disso. Há um debate, mas acho que dá para separar essa iniquidade de um ganho que tivemos com a independência do Brasil. A independência se confunde com a instauração de uma monarquia constitucional que, embora ainda não seja democracia, é melhor do que o absolutismo. É uma tentativa de resolver por meio do voto – ainda que sejam os votos de oligarquias – os problemas de inflação e da má gestão das contas públicas criados por esse autoritarismo. O que nós queríamos trazer para o presente é essa nossa primeira experiência de governo representativo. Achamos que se for para deixar para trás essa persistência cultural e socioeconômica da escravidão, a única maneira é por meio de regimes representativos e da democracia. Regimes autoritários vão sempre favorecer o rolo compressor sobre minorias. Mas é compreensível que haja uma frustração das minorias porque no Brasil essa mudança é horrivelmente lenta.

  • G |Vocês também fazem um alerta de que, por mais injusto e racista que seja o país, foi essa ideia de que não somos uma democracia real que fez a extrema direita convencer boa parte da população a apostar na “antipolítica”. Como fazer essa parcela da população acreditar novamente na democracia representativa?

    RC |

    É difícil. Aparentemente tem algo entre um quarto e um terço da população identificada com essa prática de governo do Bolsonaro que não é exatamente governar, mas destruir o governo por dentro. É curioso que, enquanto muitos estão incomodados que os avanços são muito lentos, essa parte da população já está incomodada com os pequenos avanços, muito insatisfeita e ressentida. Por outro lado, enquanto conversamos, há chance de que o ex-presidente Lula vença as eleições no primeiro turno. Isso não aconteceria se parte dos eleitores que votaram em Bolsonaro em 2018 não tivesse se arrependido. As pessoas experimentaram um outro modelo e mudaram de ideia. E o que precisa acontecer agora é que precisamos voltar a incluir, a fazer as pessoas sentirem que a vida delas vai melhorar. O Bolsonaro é um sintoma de que essa política representativa está falhando, não está sendo capaz de satisfazer grandes parcelas da população.

Produto

  • Adeus, Senhor Portugal
  • Rafael Cariello e Thales Zamberlan Pereira
  • Companhia das Letras
  • 416 páginas

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Este conteúdo é parte da série “Ecos de Outros 22”, produzida em parceria com o Itaú Cultural, uma organização voltada para a pesquisa e a produção de conteúdo e para o mapeamento, o incentivo e a difusão de manifestações artístico-intelectuais.

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