Vão
Em poemas, crônicas e minicontos, a paulistana da periferia Jéssica Moreira recorre ao ritmo frenético do trem para evocar o cotidiano do transporte urbano
Como uma espécie de base para a literatura, o trem é o ritmo frenético, a sinfonia de corpos imprensados um no outro, o verso hilário solto pelo “marreta” (gíria paulistana para vendedores ambulantes), a estrofe que se repete diariamente no afã do transporte de cidade grande. São essas e outras inspirações ferroviárias que a cronista, poeta e jornalista Jéssica Moreira vai buscar na vivência cotidiana sobre trilhos para construir os poemas, microcontos e crônicas que se entrelaçam em seu novo livro “VÃO: trens, marretas e outras histórias” (Patuá, 2021).
Ela mesma cria de Perus, bairro da periferia da região noroeste de São Paulo, Jéssica é cofundadora do Nós, mulheres da periferia, site jornalístico criado e administrado por mulheres negras periféricas que buscam contar histórias que não se veem em outros lugares. A escritora é também repórter da Agência Mural de Jornalismo das Periferias, coautora do blog Morte Sem Tabu, da Folha de S. Paulo, integra o coletivo poético Terracota e é ainda uma das organizadoras da FLINO (Festa Literária Noroeste).
Antes de “VÃO”, Jéssica esteve também entre os autores dos livros “Queixadas” (Fapcom, 2013), “Heroínas dessa História” (Instituto Vladimir Herzog, 2020), “Longe de Monte Carlo” (Casa das Rosas, 2020) e “Chão Vermelho” (Uruatu, 2021).
Desde o universo de quem vive o transporte urbano em São Paulo diariamente até os desafios crescentes da mobilidade na cidade, a obra traz experiências que vão do humor ao drama, da sátira à crítica social. Ideal para ler numa viagem de trem ou metrô, pendurado em barra de ferro ou com a sorte de estar sentado à janela, numa oportunidade tanto de conhecer mais do cotidiano de milhões de pessoas quanto de se reconhecer na caótica rotina de todos os dias.
Déjà vu da manhã seguinte
O trem se arrasta.
Uma voz enferrujada geme sua chegada.
Meus pés endurecem em frente
à cortina de ferro. Pernas curtas,
joelhos ásperos, como esticar os tendões?
Vão é abismo. Entre a plataforma
e a ponta do carro de alumínio, unhas.
Ombros e bundas balançando
me jogam pra dentro. Não bambeio.
Meu nariz encontra outros, olhos.
Pulmões estão grudados a estômagos
que roncam salsicha com molho.
Estamos sós, apertados pela lâmina
de poeira que desce arranhando
as paredes de nossas narinas.
Carne viva. Espirro.
Só ácaros, vivos vírus, rasgam os
silêncios diurnos que nos apartam.
Efêmero déjà vu da manhã de ontem./
Mãos para o alto./
Pernas abertas pra não cair.
Partida.
Efêmero déjà vu da manhã de ontem.
Mãos para o alto.
Pernas abertas pra não cair.
Penduramento de gente viva.
Muita mão suada deslizando vidro.
Rachado em dias quentes, inundado
por chuvas altas. Pernas correndo.
Não balança. Trem é balança.
Ninguém cai, a multidão esmaga antes.
Tem até quem durma em pé, com a ponta
do dedinho apertado na ferrugem, fingindo
equilíbrio com sapatos amassados.
Mas a vida, a vida tá rondando a pressa.
A vida tá na corrida até a porta, na
bolsa grudada, no banco brigado a
socos e pontapés, nas mãos calejadas,
no salto agulha, na água, no amendoim,
no salgadinho pisoteado, na voz
distante do maquinista – um vão
vazio que separa o povo do vagão.
As portas que se abrem são as mesmas que se fecham
Quando o trem sanfonado chegou à linha 7-Rubi, muita gente sentiu a diferença. O ar desabafou, mesmo com a janela fechada. A porta não empacava e a tevê embutida fazia a gente até pensar que tava no metrô, e que em um-dois chegaria ao destino.
Seu andar era macio, ferro escondido na carcaça de porcelana. No fim, a gente sabia bem, tudo aquilo era
uma grande farsa. As sanfonas que nem uma parte a outra também começavam a encher, encher, encher…
O que era meio largo logo ficava miudinho de tanta perna, cabeça, braço e ombro. Um dia, nessas idas bem lotadas, um passageiro cutucou a senhora ao lado pra lembrar do tempo que o trem ainda tinha porta.
Lugar não tinha mesmo, né, mas a gente arrumava um jeitinho de sentar no chão, meio amontoado ali na porta que nunca abria, mas sentava… tempo baum que ó…
Olha mercadoria direto de Moscou. Moscou, moscou… o guarda levou.
Mas, fio, não é que é mesmo. Eu até já tentei me ancorar aí nessa sanfona, mas dá umas escorregada que quase dirruba a gente no chão. Tem que vê.
Um marreta passava logo atrás, com muita artimanha e ritmo que só tem quem vende no balanço duma estação a outra.
Olha mercadoria direto de Moscou. Moscou, moscou… o guarda levou.
A galera ria, mesmo que sozinha, do trocadilho feito na marotagem. Sua voz atravessava o vagão feito um foguete,
melodia certeira no cliente que não ousaria dizer não. Passou pelos dois proseadores sem pausar uma sílaba e, muito menos, descer o tom, que chegava rasteiro dum vagão pro outro, sem precisar dar aquela corrida do guarda e pausar a frase bem no meio do ô da oito pilha um real! Naquele dia, não sobrou nada pra próxima viagem.
- VÃO: trens, marretas e outras histórias
- Jéssica Moreira
- Patuá
- 124 páginas
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