Os Diários de Virginia Woolf - leia trecho — Gama Revista

Trecho de livro

Os Diários de Virginia Woolf

Além de acompanhar a evolução de sua escrita, a obra fornece uma fascinante janela para a intimidade e o cotidiano da autora

Leonardo Neiva 26 de Março de 2021

POR QUE LER?

Desde a adolescência até poucos dias antes de sua morte, a escritora britânica Virginia Woolf (1882 – 1941) manteve o costume de escrever um diário; foram 44 anos, com alguns hiatos. Em 28 de março, aniversário de 80 anos de sua morte, a Editora Nós lança um primeiro volume do documento, que engloba o período entre os anos de 1915 e 1919.

Então com 33 anos, recém-casada e ainda sem nenhuma obra publicada, a autora decide retomar o diário que havia largado no final da adolescência, após quase seis anos de pausa. Nesse período de sua escrita, o documento apresenta uma necessidade da autora de incluir de tudo em suas páginas, sem distinção: da vida pública à privada, do rasteiro ao sublime.

Nesses anos, também se notam lapsos. As anotações de 1915, por exemplo, acontecem entre dois colapsos mentais. Ainda em março do mesmo ano, Woolf viria a publicar “A Viagem”, seu primeiro romance, que é mencionado apenas uma vez. Ainda em busca de uma voz na literatura, a escrita da autora, hoje uma das referências para o movimento feminista, vai ao longo dos anos assumindo a forma como é mais conhecida, passando a mesclar num mesmo parágrafo comentários domésticos, análises literárias, trivialidades e trechos de grande beleza. Além de acompanhar essa evolução, a obra fornece uma fascinante janela para a intimidade e o cotidiano da autora.


Quarta-feira, 6 de janeiro

Os Waterlows de novo: Lily de novo. Dessa vez é Mrs. W. que escreve para Leonard, sobre o forno, e conclui dizendo o quanto se sente aborrecida de pensar que estamos contrariados — haja vista o quanto eles consideram Asheham adorável. É esquisito que as duas senhoras dessa correspondência escrevam para os dois senhores — instintivamente pressentindo, creio eu, que caso escrevessem uma para a outra todo esse incidente acabaria se tornando muito mais ácido. A carta de Lily continua a história do soldado escondido. Ela faz com que eu enxergue Lily com muita clareza à minha frente, com seus olhos encantadores, bobos, de cachorro, incapaz de ferir uma mosca ou ter um pensamento grosseiro, e contudo eternamente condenada a sofrer pelos pecados das personalidades mais fortes. Nesse caso, Lily estava à mercê de uma das arrumadeiras, que convidava os soldados, e não teve presença de espírito nem para ser rude com eles quando eles vinham, nem para “contar histórias sobre uma colega criada”. “Prefiro fazer qualquer coisa menos isso” — e assim, imagino, foi como aliás ela teve seu filho. Enfim, “falei” em prol dela mais uma vez, e ela me prometeu que não irá mais se meter com soldados. L. saiu às 10 da manhã para dar sua segunda palestra em Hampstead. A primeira foi um grande sucesso, como eu sabia que seria. Ele considera as mulheres muito mais inteligentes do que os homens; de certa maneira, inteligentes demais, e por isso tendem a não enxergar o cerne das questões. Dará mais uma esta tarde, portanto ficará em Hampstead, almoçará com Lilian e talvez se encontre com Janet [Case]. Ninguém, a não ser uma pessoa bastante modesta, trataria essas trabalhadoras, e Lilian e Janet e Margaret, como ele trata. Clive [Bell], ou melhor, qualquer outro jovem culto, se arrogaria ares de importância; e por mais que as admirasse fingiria o contrário. Escrevi a manhã inteira, com infinito prazer, o que é estranho, pois o tempo todo sei que não existe motivo para me sentir satisfeita com aquilo que escrevo, e que daqui a seis semanas ou mesmo dias irei odiá-lo. Então fui para Londres, e perguntei sobre cômodos no Gray Inns. Tinham um conjunto vago; e eu no mesmo instante vislumbrei toda espécie de encantos, e deixei-me entrar com um estremecimento de empolgação. Porém, o lugar seria perfeito para uma pessoa, e impossível para duas. Há dois quartos perfeitos, que dão de frente para os jardins, mas basicamente é tudo. A Grays Inn Road troveja atrás de um deles. Em seguida vi um apartamento na Bedford Row que prometia maravilhas, mas ao inquirir os agentes, disseram-me que tinham instruções para somente alugarem-no mobiliado — e agora, logicamente, estou convencida de que não existe apartamento igual em Londres! Eu poderia vagar pelas ruas noturnas de Holborn e Bloomsbury durante horas. As coisas que se vê — e se adivinha — o tumulto e a confusão e a pressa… Ruas apinhadas são os únicos lugares que me fazem, como-diria-na-falta-de-uma-palavra-melhor, pensar. Agora preciso decidir se volto para lá novamente, para uma festa na Gordon Square, onde as Aranyis irão tocar. Por um lado, encolho-me diante da viagem e de ter de me vestir; por outro sei que ao primeiro lampejo de luz no saguão da entrada e do burburinho das vozes me sentirei embriagada; e concluirei que nada na vida se compara a uma festa. Verei gente bonita e terei a sensação de estar na crista mais alta da maior das ondas — bem no centro e no movimento de tudo. Por outro lado, ainda, por fim, as noites aqui lendo à lareira — lendo Michelet e “O idiota”, fumando e conversando com L. no que pode se passar por camisola e chinelos — são divinas também. E como ele não irá insistir que eu vá, sei muito bem que não irei. Além do mais tem a vaidade: não tenho roupa para ir.

Sexta-feira, 15 de janeiro

Fui ao meu cinema; L. aos seus Fabians; e ele achou, no todo, que sua mente e espírito e corpo teriam se beneficiado mais dos filmes do que dos Webbs e dos médicos, que conversaram sobre a etiqueta deles. Houve dois ou três filmes soberbos; um de uma barcaça carregada de madeira flutuando diante de Bagdá — outra de um palácio oriental, repleto de macacos e vira-latas — outro de um iate naufragado. Mas, como de costume, o drama é tedioso demais. Bom seria gostar do que todos gostam. O Hall estava cheio, risadas estrondosas, aplausos etc.

Tive notícias de Emphie Case esta manhã, ela pede que eu averigue sobre a casa em Kewes onde Lily teve seu filho — pois conhece uma jovem que também deseja ter um filho. Não sei como Emphie se inteira desses assuntos. Ou Janet. Caminhamos até Hogarth esta manhã, para ver se o barulho das crianças na escola é de fato um ponto contrário. Aparentemente, afeta apenas Suffield. Bem… não sei o que devemos fazer. Quanto eu não daria para pular umas trinta páginas e descobrir o que acontecerá conosco. Caminhamos pelo parque, e vimos Territorials açoitando e esporeando seus cavalos; e também uma imensa árvore. Vamos jantar cedo e ir ao Hall — um esbanjamento sem precedentes — muito embora tenha havido um tempo em que eu costumava ir a óperas, concertos noturnos etc., pelo menos três vezes por semana… E sei que nós dois pensaremos, quando tudo isso terminar, “que realmente uma boa noite de leitura teria sido melhor”. L. continua lendo os diplomatas; eu lendo sobre 1860 — os Kemble — Tennyson etc.; para captar o espírito daquela época para “A Terceira Geração”. Eles eram extremamente científicos: sempre desencavando monstros extintos, observando as estrelas, e tentando descobrir uma religião. Neste exato momento, sinto como se a raça humana não tivesse nenhuma personalidade — como se perseguisse o nada, acreditasse no nada, e combatesse apenas por um monótono senso de dever. Hoje comecei a tratar meu calo. Há uma semana precisava fazê-lo.

Segunda-feira, 25 de janeiro

Meu aniversário — e deixe-me contar todas as coisas que ganhei. L. tinha jurado que não me daria nada, e como boa esposa acreditei. Mas ele veio sorrateiro até minha cama com um pacotinho que era uma linda bolsa verde. E trouxe o café da manhã, com um jornal que anunciava uma vitória naval (afundamos um navio de guerra alemão) e um embrulho marrom quadrado com o The Abbott dentro — uma primeira edição linda — Portanto tive uma manhã muito feliz e agradável — que realmente só foi superada pela tarde. Fui então levada à cidade, de graça, e mimada, primeiro no cinema, depois no [salão de chá] Buszards. Acho que há dez anos não sou mimada no meu aniversário, e a sensação era exatamente essa — pois era um lindo dia gelado, tudo animado e alegre, como deve ser, mas nunca é. O cinema foi um pouco decepcionante — pois não conseguimos ver os filmes da Guerra mesmo depois de esperar 1 hora e meia. Mas em compensação apanhamos um trem direto no último segundo e tenho estado muito satisfeita lendo o que papai escreveu sobre Pope, que é muito espirituoso e inteligente — não há uma única frase mortiça. Sinceramente não sei quando desfrutei tanto de um aniversário — pelo menos não desde que era criança. Durante o chá decidimos três coisas: em primeiro lugar ficar com Hogarth [House], se pudermos; em segundo, comprar uma prensa móvel; em terceiro comprar um buldogue, que provavelmente se chamará John. Estou muito empolgada com a perspectiva das três – especialmente da prensa. Também ganhei um pacote de doces para levar para casa.

Domingo, 14 de fevereiro

Choveu novamente esta manhã. Limpei a prataria, o que é algo fácil e proveitoso de se fazer. Philip veio, e ele e L. saíram para dar um passeio. Ele almoçou conosco e ficou conversando até as 3h30. Agora eles têm cada vez menos esperança de chegar ao front. Todos os oficiais de carreira são promovidos antes deles. Cecil tem uma metralhadora, o que talvez faça com que ele seja levado; e se for esse o caso, quase certamente será morto. Achei o pobre Philip bastante inquieto com essas perspectivas. Que irá fazer quando a guerra acabar? Ele acha que é melhor imigrar. Cecil gostaria de continuar no exército, algo que não se pode fazer, a menos que se tenha dinheiro, e nenhum dos dois tem um tostão. Quinhentas libras por ano valem muito mais do que beleza ou posição. Ele continuou conversando, desejando talvez falar sobre si mesmo, mas precisava voltar a Colchester, onde a única coisa suportável são as ostras. Os soldados, diz ele, estão sempre fazendo graça; e quanto piores vão as coisas mais graça fazem. Depois passeamos ao longo do rio, contra uma ventania gelada (que agora uiva lá fora) e felizmente voltamos para o chá; e agora estamos sentados como de costume rodeados por livros e papéis e tinta, e assim devemos ficar até a hora de dormir – mas tenho costura a fazer, ontem minha saia rasgou-se em duas. L. está escrevendo uma resenha do seu livro indiano. Agora estou lendo um volume seguinte de Michelet, que é soberbo, e a única história tolerável. Os vizinhos do lado estão cantando a mesma música que vêm praticando nos últimos três meses: um hino religioso. Por tudo isso bem se vê que não quero consertar meu vestido e que não tenho mais nada a dizer.

Produto

  • Os Diários de Virginia Woolf (Volume 1)
  • Virginia Woolf
  • Editora Nós
  • 260 páginas

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