Trecho de Livro: O Coração É um Caçador Solitário — Gama Revista

Trecho de livro

O Coração É um Caçador Solitário

Obra-prima de Carson McCullers, de apenas 23 anos, nova edição brasileira é uma ótima oportunidade de conhecer um dos mais belos clássicos da literatura norte-americana

Leonardo Neiva 02 de Dezembro de 2022

Há muitas coisas surpreendentes sobre “O Coração É um Caçador Solitário” (Carambaia, 2022), clássico da literatura norte-americana que acaba de ganhar uma nova edição no Brasil. Uma das principais é o fato de sua autora ter escrito um livro tão profundo e maduro aos 23 anos de idade. Nesta que é sua obra de estreia, Carson McCullers (1917-1967) tece uma rede envolvendo vários personagens à margem da sociedade numa cidadezinha do “Sul profundo” dos Estados Unidos, pouco antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial.

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Dois melhores amigos surdos, uma adolescente andrógina, um médico negro, um bêbado revoltado com as injustiças do mundo e o dono do bar local que reúne grande parte dessas pessoas. Publicado originalmente em 1940, esse mosaico de personagens pobres e desajustados fala sim sobre o impacto da desigualdade no cotidiano da época, mas também traça um comovente retrato íntimo e psicológico de realidades que se entrecruzam todos os dias sem necessariamente se conectar umas às outras.

Sucesso imediato de crítica, a obra alçou a jovem escritora ao centro da literatura sulista do período. Além de um olhar humanizado para pessoas geralmente pouco mostradas na literatura até então, em especial personagens negros, o livro retrata as maneiras como o racismo e o antissemitismo se infiltram pelo cotidiano em meio às atrocidades cometidas pelo nazismo do outro lado do mundo. Ainda pouco lida no Brasil, a obra impressiona também pelo naturalismo de sua prosa e a beleza a um tempo simples e complexa das descrições. Esta nova edição pode ser uma ótima oportunidade para se conectar ou reconectar com a obra-prima da autora americana, que permanece quase tão impactante quanto na época em que foi lançada.


Na cidade havia dois mudos, e eles estavam sempre juntos. Toda manhã bem cedo, os dois saíam da casa onde moravam e andavam pela rua de braços dados para ir ao trabalho. Os amigos eram muito diferentes. Aquele que sempre guiava o caminho era um grego obeso e sonhador. No verão, ele saía com uma camisa amarela ou verde, enfiada com desleixo na frente das calças e pendendo solta atrás. Quando fazia mais frio, ele usava sobre a camisa um suéter cinza disforme. Seu rosto era redondo e oleoso, as pálpebras sempre estavam meio fechadas e os lábios se curvavam num sorriso amável e estúpido. O outro mudo era alto. Tinha os olhos vívidos e inteligentes. Estava sempre imaculado e vestido com muita sobriedade.

Toda manhã, os dois amigos caminhavam juntos em silêncio até a rua principal da cidade. Quando chegavam a uma certa loja de frutas e doces, faziam uma pequena pausa na calçada do lado de fora. O grego, Spiros Antonapoulos, trabalhava para seu primo, o dono da frutaria. Sua tarefa era fazer balas e doces, desencaixotar as frutas e manter a loja limpa. O mudo magro, John Singer, quase sempre punha a mão no braço do amigo e pousava os olhos por um segundo em seu rosto antes de ir embora. Depois dessa despedida, Singer atravessava a rua e ia sozinho para a joalheria em que trabalhava fazendo gravações em prata.

No fim da tarde, os amigos se encontravam de novo. Singer voltava à frutaria e esperava até que Antonapoulos tivesse terminado todo o trabalho e pudesse ir para casa. O grego estaria desempacotando indolentemente pêssegos ou melões, ou talvez espiando a seção de quadrinhos do jornal na cozinha atrás da loja, onde ele cozinhava. Antes de partirem, Antonapoulos sempre abria um saco de papel que mantinha escondido durante o dia numa das prateleiras da cozinha. Lá dentro estavam guardados vários nacos de comida que ele ia juntando — um pedaço de fruta, amostras de balas ou a ponta de uma linguiça. Em geral, antes de sair, Antonapoulos se aproximava, com passos leves e bamboleantes, da vitrine na frente da loja, na qual ficavam algumas carnes e queijos. Ele deslizava o vidro para abrir a parte traseira da vitrine e sua mão gorducha agarrava com prazer alguma gulodice que estivesse cobiçando. Às vezes seu primo, o dono do estabelecimento, não via. No entanto, se percebesse, olhava fixo para o primo com uma advertência no rosto pálido e fechado. Com tristeza, Antonapoulos passava o bocado de um canto para o outro da vitrine. Durante esses instantes, Singer se mantinha muito ereto, com as mãos nos bolsos, e olhava para o outro lado. Ele não gostava de observar essa pequena cena entre os dois gregos. Pois, além da bebida e de um certo prazer secreto solitário, Antonapoulos, mais que qualquer outra coisa no mundo, gostava de comer.

Singer nunca soube até que ponto seu amigo compreendia todas as coisas que ele lhe contava. Mas não importava

Na hora do crepúsculo, os dois mudos voltavam com lentidão para casa. Singer estava sempre falando com Antonapoulos. Suas mãos modelavam as palavras numa série rápida de desenhos. Seu rosto ficava ansioso e os olhos verde-acinzentados cintilavam. Com as mãos magras e fortes, ele contava a Antonapoulos tudo o que tinha acontecido durante o dia.

Antonapoulos se reclinava preguiçosamente e olhava para Singer. Poucas vezes ele movia as mãos para falar — fazia isso apenas para dizer que queria comer, dormir ou beber. Ele sempre falava essas três coisas com os mesmos vagos sinais desajeitados. À noite, se não estivesse bêbado demais, se ajoelhava diante da cama e rezava por algum tempo. Suas mãos rechonchudas modelavam as palavras “sagrado Jesus” ou “Deus” ou “Maria querida”. Essas eram as únicas palavras que Antonapoulos dizia. Singer nunca soube até que ponto seu amigo compreendia todas as coisas que ele lhe contava. Mas não importava.

Eles compartilhavam o andar de cima de uma pequena casa perto da zona comercial da cidade. Havia dois quartos. Sobre o fogão a óleo na cozinha, Antonapoulos preparava todas as suas refeições. Havia cadeiras comuns de cozinha para Singer e um sofá bem estofado para Antonapoulos. O quarto de dormir tinha como mobília uma grande cama de casal coberta com um edredom para o enorme grego e uma cama estreita de ferro para Singer.

O jantar sempre levava muito tempo, pois Antonapoulos gostava de comida e era muito vagaroso. Depois que tinham comido, o enorme grego se recostava no sofá e passava a língua com lentidão sobre cada um dos dentes, para sentir de novo uma certa iguaria ou porque não queria perder o sabor da refeição — enquanto Singer lavava os pratos.

Às vezes, de noite, os mudos jogavam xadrez. Singer sempre sentia grande prazer com esse jogo, e anos antes ele tinha tentado ensiná-lo a Antonapoulos. Primeiro, seu amigo não conseguia se interessar em saber por que mover as várias peças do tabuleiro. Então Singer começou a manter uma garrafa com algo bom sob a mesa para que fosse degustada depois de cada lição. O grego nunca chegou a entender os movimentos erráticos dos cavalos e a mobilidade abrangente das rainhas, mas aprendeu a fazer algumas jogadas iniciais bem definidas. Ele preferia as peças brancas e não jogava se recebesse as pretas. Depois dos primeiros lances, Singer elaborava o jogo sozinho, enquanto o amigo ficava olhando, sonolento. Se Singer fazia brilhantes ataques a suas próprias peças a ponto de eliminar no final o rei preto, Antonapoulos ficava sempre muito orgulhoso e satisfeito.

…o enorme grego se recostava no sofá e passava a língua com lentidão sobre cada um dos dentes, para sentir de novo uma certa iguaria ou porque não queria perder o sabor da refeição

Os dois mudos não tinham outros amigos e, salvo quando trabalhavam, viviam a sós juntos. Os dias eram sempre muito parecidos, pois eles os passavam tão sozinhos que nada jamais os perturbava. Uma vez por semana iam à biblioteca para que Singer retirasse um livro de mistério, e nas sextas à noite assistiam a um filme. No dia do pagamento, sempre iam à casa de fotos a dez centavos localizada em cima da loja de artigos militares, para que Antonapoulos pudesse tirar uma foto sua. Esses eram os únicos lugares que eles costumavam visitar. Havia muitas partes da cidade que eles nunca tinham sequer visto.

A cidade ficava no meio do Sul profundo. Os verões eram longos, e os meses frios de inverno, muito poucos. Quase sempre o céu exibia um azul cristalino e intenso, e o sol queimava com um brilho desenfreado. Depois vinham as chuvas breves e frias de novembro, e talvez mais tarde houvesse geada e alguns meses curtos de frio. Os invernos eram mutáveis, mas os verões, sempre abrasadores. A cidade era bem grande. Na rua principal havia vários quarteirões de lojas e escritórios de dois e três andares. Mas as maiores edificações eram as fábricas, que empregavam grande parte da população. Os moinhos de algodão eram grandes e prósperos, e a maioria dos trabalhadores na cidade era pobre. Muitas vezes, nos rostos ao longo das ruas, via-se a expressão desesperada da fome e da solidão.

No entanto, os dois mudos não se sentiam nem um pouco solitários. Em casa, eles gostavam de comer e beber, e Singer falava com mãos ansiosas para seu amigo sobre tudo o que lhe passava pela cabeça. Assim, os anos transcorreram tranquilos, até que Singer fez 32 anos, quando já morava na cidade com Antonapoulos fazia uma década.

Então, certo dia, o grego ficou doente. Sentou-se na cama com as mãos sobre a barriga gorda, e grandes lágrimas oleosas rolaram pelas bochechas. Singer foi procurar o primo do amigo, o dono da frutaria, e conseguiu também uma licença de seu próprio trabalho. O médico determinou uma dieta para Antonapoulos e disse que ele não poderia mais tomar vinho. Singer impôs com rigor as ordens do médico. Ficava o dia inteiro sentado ao lado da cama do amigo e fazia o que podia para que o tempo passasse rápido, mas Antonapoulos só olhava para ele de esguelha, raivoso, e não se distraía.

O grego estava muito irritadiço e continuava a encontrar defeitos nos sucos de frutas e na comida que Singer lhe preparava. Obrigava constantemente seu amigo a ajudá-lo a sair da cama para que pudesse rezar. Suas nádegas imensas afundavam sobre os pezinhos gordos quando se ajoelhava. Ele mexia as mãos desajeitadamente para dizer “Maria querida” e então agarrava a pequena cruz de latão atada a seu pescoço com um barbante sujo. Seus grandes olhos rolavam até o teto com uma expressão de medo, e depois ele ficava muito amuado e não deixava que o amigo lhe falasse.

Mas desde então surgiu uma diferença no modo de vida dos mudos. O conflito se instalou na vida dos dois amigos

Singer era paciente e fazia tudo o que podia. Desenhava pequenas figuras, e certa vez fez um esboço do amigo para alegrá-lo. Esse desenho feriu a sensibilidade do enorme grego, e ele não quis fazer as pazes enquanto Singer não deixou seu rosto muito jovem e belo, colorindo o cabelo de amarelo vivo e os olhos de azul-escuro. E depois tentou não demonstrar seu contentamento.

Singer cuidou do amigo com tanto zelo que, passada uma semana, Antonapoulos já pôde voltar ao trabalho. Mas desde então surgiu uma diferença no modo de vida dos mudos. O conflito se instalou na vida dos dois amigos.

Produto

  • O Coração É um Caçador Solitário
  • Carson McCullers
  • Carambaia
  • 368 páginas

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