Trecho de livro: Erva Brava, de Paulliny Tort — Gama Revista

Trecho de livro

Erva Brava

Coletânea de contos de Paulliny Tort revela cenas contemporâneas do interior de um país cruel e encantador

Tereza Novaes 27 de Outubro de 2023

A urbanização de pequenas cidades, a epidemia do crack, a degradação da natureza, com o cerrado se transformado em monocultura, redesenharam a paisagem do Centro-Oeste na última década e são temas dos contos de “Erva Brava” (Fósforo 2021).

Estreia da brasiliense Paulliny Tort, o livro recebeu o prêmio APCA do gênero, em 2022. Antes, o romance de estreia dela, “Allegro Ma Non Troppo” (Oito e Meio), foi semifinalista do Prêmio Oceanos em 2017.

As histórias de “Erva Brava” orbitam em torno do município imaginário de Buriti Pequeno, no coração de Goiás, e tratam desde relações familiares até questões como as plantações da soja e os rios voadores. Há também uma forte presença do encontro entre as culturas indígena e afro-brasileira, que conversa com o tema da Flica, a Festa Literária de Cachoeira, na Bahia, que aborda neste ano as Poéticas Afroindígenas no Bicentário de Independência da Bahia. Paulliny é uma das convidadas do evento, que começa no dia 26.


Ternura e crack

São cinco espectros que se movem perto do rio, onde a água avança sobre a terra escura, gorgolejando em copos de plástico quebrados e embalagens desbotadas de batata frita. Os espectros, indiferentes à noite, indiferentes ao lixo, se confundem com a escuridão. Enfiam às vezes um chinelo ou a barra de uma calça nas poças que se formam por ali, mas não se importam, sacodem a perna e continuam a deslizar seus corpos espectrais, muito magros e calejados, pela margem do rio. Entre eles, sobe uma coluna de fumaça, sobe um cheiro de queimado, algo artificial, dorido. E os cinco soltam apenas uma palavra, duas, quando precisam chamar a atenção para o cachimbo feito com cano de pvc que compartilham de mão em mão. Os carros fazem ranger as madeiras da ponte velha, lançando sucessivos feixes de luz sobre a margem, sobre a água pútrida que ainda reflete como um espelho e, por instantes, os espectros ganham rostos, espáduas, feridas, igual fossem gente de carne e osso. Um deles está apaixonado e não é correspondido, nunca foi correspondido, o que lhe parece injusto. Não é tão mau assim, não é tão feio assim, sabe jogar bola, sabia, agora não joga mais. Entristecido, ele engole a fumaça. Os outros são mais velhos, alguns têm filhos. Dois não conhecem o pai, um não gosta da mãe. E o que foi criado pela avó tomou mamadeira até os onze anos de idade. Apesar de tantas diferenças, os cinco seguem juntos, amalgamados nessa massa de sede e medo, raiva e cio, ternura e crack. São cinco espectros que se movem perto do rio, depois da ponte, recortados pela fumaça muito fina que sai das gargantas e do cachimbo.

Ninguém mais entra naquela água, só mesmo os espectros, quando precisam se refrescar. O rio Amanaçu agora fede, às vezes mais que fossa. Ficou assim depois das granjas de galinha e de porco, que despejam o mingau dos esterqueiros na água. Não fazem isso todos os dias nem todas as semanas, mas de tempos em tempos. Então a vila apodrece e os peixes morrem afogados na merda, depois melhora, como hoje. A noite está quente, um dos espectros arranca a camiseta e os chinelos e se joga na água, nadando devagar até alcançar uma das colunas de madeira que sustêm a ponte. Ergue os braços acima da cabeça para chamar os outros, ninguém dá atenção. Quando volta, uma nova rodada do cachimbo está em curso, ele resiste, sente-se fresco e apaziguado pelo rio, mas acaba cedendo.

As pessoas que caminham do outro lado e que não se aproximam mais daquela margem, onde pululam os espectros, olham para eles. Casais de namorados, pais e mães, beatas de terço, crentes, toda sorte de simples depravados olham para eles e sentem arrepios, temem pelos próprios filhos, não sabem o que fazer. Isso é coisa que nunca imaginaram em Buriti Pequeno. De longe, não os reconhecem, mas sabem quem são, porque são sempre os mesmos. E os espectros olham para a margem iluminada pelos postes, para a calçada muito reta onde as pessoas desfilam em trajes de domingo, sentindo que existe nessa distância algo invencível. Parece que veem os citadinos pela televisão, personagens de uma novela antiga. E, aos citadinos, eles parecem saídos de um filme de terror. Repulsivos, cadavéricos, cobertos de chagas.
O que entrou na água se deita no chão, usando os chinelos e a camiseta ainda seca como travesseiro, cruza as mãos atrás da cabeça. Enquanto a umidade se desprende do corpo, olha para as nuvens rarefeitas que encobrem o quarto minguante. Tosse, sente cheiro de amônia nos cabelos e na pele. É um cheiro ruim, mas familiar. Não que sinta gosto, só vontade de continuar sentindo aquele cheiro. De cócoras, outro espectro desenha na terra com um pedaço de pau, perfaz triângulos, corações, linhas em zigue-zague. Outro cutuca a casca de uma ferida que lhe salta da bochecha, puxa os pedaços esbranquiçados para examiná-los dentro do que a escuridão permite e depois os atira longe. E assim os cinco se distribuem pela margem, ensimesmados, ocupados nessas pequeníssimas tarefas. Quando o torpor começa a se dissipar, o espectro que entrou na água ergue a cabeça e vê que do outro lado a calçada está vazia. Os citadinos já se recolheram às suas casas, aos seus derradeiros programas de domingo. Muitas tevês estão ligadas àquela hora, ele sabe. Muitos pijamas limpos estendidos sobre as camas, muitos pratos forrados com sopa de galinha, bife, batata, bolo de trigo. O espectro pensa no perfume que os lençóis têm assim que são tirados do varal, pensa na espuma fria dos sabonetes, se lembra de como eram grossos os caldos que repousavam nas panelas e cristalina a luz que atravessava os vidros das lâmpadas nos quartos de dormir. Deitado agora com a cabeça de lado, o rosto rente à terra, nota que um sexto espectro atravessa a ponte carregando duas sacolas plásticas. De chinelos remendados com pregos, o sexto se aproxima e diz boa noite. Os cinco murmuram cumprimentos. Nas sacolas, há pães e uma garrafa de guaraná, em torno dos quais eles se reúnem. Agora conversam um pouco, falam de possibilidades, de pessoas e lugares onde podem conseguir aquilo que buscam incessantemente. O problema é ter mais noia que pedra nas margens desse rio, pensa aquele que há pouco se refrescava no Amanaçu. Não há mais nada para os cachimbos e o sexto espectro, diante deste fato, se ressente.

Produto

  • Erva Brava
  • Paulliny Tort
  • Fósforo
  • 104 páginas

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Este conteúdo é parte da série “Gama na Flica 2023”, produzida com apoio do Governo do Estado da Bahia e das secretarias de Educação e Cultura, realizadores da Feira Literária Internacional de Cachoeira (BA)

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