Cartas para Minha Avó
Em novo livro, filósofa Djamila Ribeiro explora temas como racismo, feminismo e ancestralidade a partir de memórias de infância e das lembranças carinhosas da matriarca
POR QUE LER?
Quando pequena, Djamila tinha o costume de brincar com as vizinhas do prédio onde morava, na cidade de Santos. Certo dia, ao combinar uma brincadeira de boneca, uma das outras meninas disse que ela, por ser negra, não poderia ser mãe da pequena criança de plástico. Dias depois, o pai, que ouviu tudo, apareceu em casa com uma caixa. Dentro, a garota descobriu uma bonequinha marrom. “Lembro até hoje do cheiro dela e da minha alegria em me exibir pelo prédio. De pegar um lençol velho, estender embaixo da escadaria e começar a montar a minha casinha, com a boneca que poderia ser a minha filha.”
Após tratar de assuntos como racismo, feminismo e lugar de fala como temas centrais de suas obras anteriores, a filósofa e escritora Djamila Ribeiro se volta principalmente ao passado pessoal e à memória em seu novo livro, “Cartas para Minha Avó” (Companhia das Letras, 2021). Nele, Djamila, considerada uma das principais vozes do ativismo negro no Brasil, revisita a infância e adolescência numa série de textos dedicados a uma das figuras familiares mais importantes para sua formação.
Vó Antônia morreu aos 68 anos, em decorrência da picada de um bicho-barbeiro, responsável por transmitir a doença de Chagas. Deixou para trás um mundo de lembranças e de dúvidas que nunca esclareceu. Como foi ser a matriarca da única família negra do bairro? Como lidava com o racismo? Pensava nele ou foi forçada a naturalizá-lo? Através desse relato absolutamente íntimo, a autora volta a abordar alguns dos temas que lhe são mais caros, como raça, gênero, ancestralidade e maternidade. Mas, desta vez, à sombra da mulher que causava tanto prazer num simples trançar de cabelos e que deixou como herança uma eterna dificuldade de dizer adeus.
Querida vó Antônia,
Minhas lembranças de você têm gosto de manga verde e doce de abóbora. Têm cheiro de feijão e jantar às seis da tarde. Você me adoçava a boca e benzia a alma. “É cobreiro, tem que benzer.” Ou: “Essa menina está aguada, dê o que ela quer comer”. Eu amava passar minhas férias na sua casa, sentir o amor em sua melhor forma.
Guardo na memória os mimos, as broncas na minha mãe quando ela brigava comigo, o cheiro do Yamasterol no cabelo. As mesadas que me dava escondido, os passeios com o tio Edson. Como meus pais não tinham carro, uma das minhas maiores alegrias era saber que o tio Edson estava indo a Santos me buscar para passar férias com você em Piracicaba. Lá em casa, só quem passava de ano direto tinha esse benefício. Muitas vezes fui sozinha, sem Denis, Helder e Dara — o que eu adorava, confesso, pois sem meus irmãos por perto teria você só pra mim. Quando Dara ia, a gente não somente disputava sua atenção, mas também disputava para ver quem atenderia aquele telefone bonito que você tinha. A vencedora sempre acabava caçoando da perdedora.
Minhas lembranças de você têm gosto de manga verde e doce de abóbora. Têm cheiro de feijão e jantar às seis da tarde. Você me adoçava a boca e benzia a alma
Como morava em apartamento, eu adorava brincar pela sua casa, vó, correr pelo quintal, subir nas árvores, fugir dos meus primos que colocavam cigarras no bolso para meter medo em mim. “Parem de assustar sua prima”, você dizia. Eu admirava sua coragem em acender uma tocha de fogos para queimar a casa que os marimbondos insistiam em construir na entrada da sua casa no bairro São Dimas. “Quando algum te picar, quero ver você sentir pena”, dizia quando eu lamentava a morte dos bichos. Aliás, foi numa dessas férias com você que eu fui picada pela primeira vez por uma abelha. Voltei chorando para casa, aos berros, e você gritando “O que foi, menina?”. Foi toda uma operação de guerra para conseguir tirar o ferrão. Depois, você passou uma mistura de ervas que fez meu braço desinchar rápido, e logo eu estava na rua de novo.
Lembro das idas ao supermercado, onde eu podia comprar tudo o que eu quisesse. “Minha neta de Santos está aqui”, você dizia para as vizinhas quando ia comprar pão. Ficava tão orgulhosa, tão animada. Nem bronca você conseguia dar direito em mim. Uma vez, quando eu era adolescente e minha mãe me pegou fumando, ela fez um baita drama. Reagi: “Você também fuma, mãe!”, e dona Erani ficou sem respostas — o que era raro, você sabe. Uma das saídas que ela encontrou foi dizer que se você estivesse viva me daria uma bronca. É claro que você não gostaria de saber que eu estava fumando, mas eu sabia que somente me diria para não fazer mais. Eu não gostava de fumar, só queria entrar na moda dos cigarros com gosto de canela.
Logo após esse flagra, fui passar férias em Piracicaba, e minha mãe encarregou o tio Edson de brigar comigo. O máximo que ele conseguiu falar, enquanto eu lavava a louça, foi: “E o cigarrinho?”. Eu entendi o recado, não respondi, e ele não voltou a tocar no assunto. No dia seguinte, meu tio e eu combinamos de mentir que eu havia levado o maior sermão para agradar minha mãe. Ainda bem que ela nunca soube a verdade. Dona Erani sempre dizia que eu levava todo mundo no bico.
As histórias de ninar que você me contava, tão doces e delicadas, contrastavam com aquelas que minha mãe contava sobre você, histórias que falavam de uma mulher brava, que batia nos filhos
Lembro também, vó, de seu colo quente e amoroso, das suas mãos rápidas que benziam meu corpo enquanto sussurrava rezas quase incompreensíveis. As mesmas mãos que benziam eram as que preparavam comidas fartas e apetitosas no domingo. Que saudade de suas mãos lindas, mãos com história, com calos, mas macias ao acarinhar e trançar meus cabelos. Hoje tento entender o significado de certo mistério que te envolvia. As histórias de ninar que você me contava, tão doces e delicadas, contrastavam com aquelas que minha mãe contava sobre você, histórias que falavam de uma mulher brava, que batia nos filhos, “atirava tudo o que via pela frente”. (Aliás, minha mãe detestava o nome Erani Benedita e não fazia a mínima cerimônia em dizer isso. Ser chamada de “Ditona” na infância a aborreceu. Bom, você sabe, minha mãe não perdia oportunidade de dizer.)
Quando você ia a Santos nos visitar, eu mal dormia na véspera, de tanta ansiedade. Como era gostoso tê-la em casa nos mimando. Sempre trazia na mala presentes para os netos, fazia doces deliciosos para todos, cuidava para que ninguém brigasse. O que eu mais gostava era ter você comigo, trançando meus cabelos. Todas as vezes que você ia embora, eu chorava. Até hoje despedidas são difíceis pra mim.
Com os tios Edmilson e Edson também era assim. Você deve ficar feliz em saber que, mesmo após sua morte, eles frequentemente iam a Santos passar as férias com a gente. Em toda despedida, choravam ao abraçar minha mãe. Você sabe, o tio Dema e o tio Edson eram muito ligados à irmã. Eram e continuam sendo. Ainda hoje, quando me encontram, eles se emocionam, dizem que a veem. Conversamos sobre isso sempre que nos reunimos, quando é possível, hoje menos que antes. A família cresceu bastante.
O que eu mais gostava era ter você comigo, trançando meus cabelos. Todas as vezes que você ia embora, eu chorava. Até hoje despedidas são difíceis pra mim
Nunca consegui perguntar a você como foi criar sete filhos com meu avô. Como foi ser a mãe da Edna, do João, do José Roberto, da Erani Benedita, do Avelino, do Edson e do Edmilson. Como foi ser a esposa de José dos Santos. Como você se sentiu ao construir uma boa casa depois de uma vida inteira trabalhando fora, em casa de família. Como foi ser a matriarca de uma das poucas famílias negras de São Dimas, bairro que depois se tornaria de classe média. Como você lidava com o racismo. Será que pensava sobre isso ou foi forçada a naturalizá-lo? Eu não tive tempo de lhe perguntar nada disso. Quais eram os seus sonhos, seus medos.
Um bicho-barbeiro te picou, e você precisou colocar um marca-passo. Com a saúde muito fragilizada, aos 68 anos você nos deixou, com muito ainda para viver. Minha mãe faleceria oito anos depois, ainda mais jovem que você, com 51 anos e 23 dias.
- Cartas para Minha Avó
- Djamila Ribeiro
- Companhia das Letras
- 200 páginas
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