A tensão superficial do tempo - Cristovão Tezza — Gama Revista

Trecho de livro

A tensão superficial do tempo

Novo romance de Cristovão Tezza mergulha em contradições temporais e políticas do Brasil bolsonarista

17 de Julho de 2020

POR QUE LER?

“Em memória da minha mãe, Elin, que amava filmes. O resto é ficção.” A dedicatória do novo livro de Cristovão Tezza, recém-lançado pela Editora Todavia, é de uma ironia fina. Muitos até gostariam que “A Tensão Superficial do Tempo” fosse mesmo apenas uma ficção distópica, mas não: apesar de não contar uma história com personagens necessariamente reais, o livro é uma das primeiras obras de peso a registrar na literatura o Brasil governado por Jair Bolsonaro.

As quase 300 páginas fazem lembrar por que Tezza se consagra como um dos grandes escritores do Brasil. Ao ficcionalizar nossa atual conjuntura – a partir da vida de Cândido, um professor de química especialista em piratear filmes que vive em Curitiba, cidade central na crise política –, ele traz à tona questões urgentes para o país, sobretudo a mencionada no título.

Preso tanto a recordações quanto a uma realidade imediata em que o conservadorismo negacionista impera, o protagonista metaforiza uma espécie de paralisia temporal. Assim como na recente história brasileira, fantasmas do passado vagueiam pelo presente e pelo futuro de sua vida pessoal, de forma a dificultar a distinção entre esses momentos.


– E se der certo, professor? – e todos se voltaram à Juçara, que se aproximou com um sorriso irônico, cafezinho à mão, e uma tensão instantânea se instalou no silêncio. – Eu estava ouvindo a conversa sem querer. Desculpem, mas não resisto a meter minha colher. Eu trabalhei a vida inteira dando aula, tenho padrão do Estado, e nunca fiz greve. Só tinha vagabundo no sindicato. Trabalhar, que é bom, nada. Tudo gordo lá, mamando na teta do imposto sindical e mandando os otários para as barricadas. Na Federal não consegui entrar porque não tinha carteirinha de comunista. E se as tais moléculas culturais reorganizarem-se após a reforma da Previdência, o país voltar ao pleno emprego, todos os ladrões graúdos, o que inclui o seu ex-presidente presidiário, prosseguirem na cadeia graças ao ministro da Justiça, aos procuradores e à Polícia Federal, mesmo com este Supremo trabalhando contra, as ruas sendo varridas da violência, as pessoas de bem podendo caminhar nas calçadas de novo como antigamente, retomada do crescimento do PIB ano a ano, como era na suposta ditadura de que vocês reclamam tanto, valores religiosos sendo respeitados de fato, e não só no papel, assim como o direito à propriedade, o direito ao uso livre de armas (por que só os bandidos podem se armar, e nós não?), o fim do terrorismo das invasões de terras, porque sem a agricultura acaba o que sobrou do Brasil depois dos trinta anos de esquerda, o fim da mamata das ONGs que querem a Amazônia separada para eles, o espírito da Venezuela, de Cuba, da Coreia do Norte e do marxismo enfim eliminado do coitado do povo, a escola livre da doutrinação ideológica e do método Paulo Freira, a imprensa enfim dizendo a verdade em vez de só achar o lado ruim das coisas, a defesa da família normal, sem essas deturpações globalistas que nem têm nada a ver com a nossa índole, e o combate ao assassinato de bebês pelos abortos clandestinos, os bons ideais cristãos dando um norte para o país? Será que exigir isso é demais? A simples decência das coisas. Há um ano eu não poderia dizer essas coisas aqui e em lugar nenhum; agora eu posso. Eu não estou fazendo uma caricatura, não me olhe com esse jeito debochado – milhões de pessoas dizem exatamente o que estou dizendo agora. Tem exageros aqui e ali, mas isso é café-pequeno. Ou vocês não tinham exagero, tudo era uma maravilha e a atual maldade caiu do céu? Por que a Escola de Frankfurt, os utopistas de esquerda, por que eles saberiam o que é melhor para mim mais do que eu mesma? Sonhar com a minha liberdade é atraso? Isso é um retorno à Idade Média, professor? É isso que o senhor vai me dizer?

Um silêncio brutal se instalou, como num jogo infantil de estátua, todos imóveis – Ela é uma ótima professora de biologia, alguém disse a Cândido, meses antes, mas desistiu da carreira acadêmica por motivos ideológicos que ela nunca explicou direito, depois de uma briga violenta com o orientador; e dizem que é unha e carne com a família de um procurador importante, e no ano passado transformou-se numa fanática defensora do governo, um papagaio a repetir besteiras, e Cândido pensou num modo de sai rapidamente dali, eu também não gosto de tensão, ele disse à Antônia, mas nunca fiz análise. Você acha que eu devo fazer?, e sentiu que se ela dissesse sim, ele correria a procurar um bom psicanalista, e era como se tudo fizesse sentido, amarrando as pontas soltas de sua vida, da pirataria dos filmes à mãe adotada, mais a morte do pai e a sofrida perda de Hélia (Eu vou para São Paulo. Curitiba enterra as pessoas. Você não vem comigo?), e a obsessão da química e do talento didático, mais a cicatriz no rosto e a memória nublada do tio padre de rosto incrivelmente enrugado, padre Lorpak, sempre vestido de preto, e o extraordinário imbróglio de sua vida tão simples encontraria em Antônia – o abraço, a delicadeza, o afeto em troca de nada, ele sonhava – uma explosiva remissão sexual, a transcendência de um paraíso revisitado e agora enfim passado a limpo, uma sensação súbita tão vívida que ameaçava novamente emocioná-lo em público a ponto de congestionar os olhos diante daquela conversa desagradável, preciso sair daqui, e acordou do devaneio para ouvir a resposta.

– Não, não é um retorno à Idade Média, Juçara. São apenas as pequenas moléculas culturais ocupando um espaço que simplesmente não era ocupado por ninguém – e agora Mattos, em vez de fechar os punhos simulando elétrons e prótons gigantescos e poderosos comandados por um boxeador, parecia segurar delicadamente duas pulgas com a ponta dos dedos num movimento rápido de giros em torno de um eixo imaginário, e todo o gestual já parecia mais irônico que engraçado, alguém que desiste de argumentar porque está diante de uma criança –, milhares e milhares de moléculas minúsculas que criaram uma determinada percepção de realidade (por exemplo, para usar suas próprias palavras, “O Brasil vai virar comunista” ou “nunca houve ditadura no país”, dois absurdos ostensivos que são repetidos apenas porque são repetidos, porque o uso contemporâneo da linguagem, potencializado pela internet, descolou-se completamente da obrigação de se vincular a referências concretas e assim prossegue criando uma realidade paralela mas politicamente eficiente, o que reforça e prolonga o seu uso) e passam a se mover freneticamente por ela, todas nas mesmas direção – e as pulguinhas giravam rápidas diante deles.

Produto

  • A tensão superficial do tempo
  • Cristovão Tezza
  • Editora Todavia
  • 272 páginas

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