20 em 2020: Os Artistas da Próxima Década
Num amplo trabalho de pesquisa, os curadores João Paulo Siqueira Lopes e Fernando Ticoulat reúnem nomes promissores da arte latino-americana para os próximos dez anos
POR QUE LER?
Nos tempos turbulentos em que vivemos, qualquer certeza pode ser relativa, ainda mais quando se trata da subjetividade da arte. Até por isso, o trabalho de curadoria de João Paulo Siqueira Lopes e Fernando Ticoulat, fundadores da Art Consulting Tool, para reunir 20 dos artistas mais promissores da América Latina em um único volume pode ser considerado hercúleo.
Para chegar a todos os nomes que compõem o livro “20 em 2020” (Art Consulting Tool, 2020), entre os quais estão incluídos os brasileiros Adriano Amaral, Dalton Paula, Jota Mombaça e Yuli Yamagata, foi necessário um amplo trabalho de pesquisa. Nas páginas, recheadas de imagens, os artistas receberam a análise de 14 críticos e curadores de várias nacionalidades. Um dos principais critérios para as escolhas, além da qualidade dos trabalhos, foi que, por meio de suas obras, os artistas apresentassem uma estreita relação com o continente.
A pergunta “O que é a América Latina?” permeou toda a pesquisa. A resposta encontrada é que não há uma resposta única num continente cuja identidade foi construída em cima de multiplicidades e vozes dissonantes. “Longe de querer interpretar o outro, este livro procura sustentar dissidências, realçar a periferia e sugerir imaginários variáveis”, aponta Fernando Ticoulat na introdução da obra, que foi realizada pelo Ministério do Turismo e a Secretaria Especial da Cultura, com patrocínio do banco BTG Pactual.
A seguir, selecionamos trechos do livro relativos ao artista brasileiro Dalton Paula e à uruguaia Jill Mulleady.
Dalton Paula
Para cada ferida deve haver um unguento que conduza à sua melhora. Para cada ameaça, um patuá. Para cada temor, uma reza. Para cada dificuldade, uma bênção. Não faltam feridas, mas são infindos também os percursos de cura. Na trajetória de Dalton Paula, o artista carrega suas obras de poderosa intenção de reparação de faltas históricas, silenciamentos, violências. A experiência de pessoa negra num país racista e de persistente estrutura colonial faz com que seu trabalho agencie uma inconteste narrativa contra-hegemônica. Sua obra reinstaura saberes, práticas e personagens reprimidos ou apagados. Mais do que identificar dores e encontrar seus causadores, ele propõe realidades subjetivas emancipadoras, capazes de acolher lembranças na dignidade da beleza e oferecer descanso aos espíritos imolados.
Na trajetória de Dalton Paula, o artista carrega suas obras de poderosa intenção de reparação de faltas históricas, silenciamentos, violências
Capas de livros e enciclopédias foram um dos primeiros suportes escolhidos pelo artista, em pinturas como “A Cura” (2016). Se os conteúdos dessas publicações quase sempre submetiam ou omitiam as experiências de afro-brasileiros (assim como indígenas e populações minorizadas), sobre suas coberturas, criou imagens de saberes tradicionais, processos de cura, cenas de cuidado, respeitando, ainda, o mistério do que é sagrado. Naquele momento, as pessoas representadas guardavam olhos cerrados, independentemente da ação em que estivessem envolvidas. Seus personagens resistiam ao desejo de espoliação e não ofereciam rendição. Da mesma forma, quando o corpo do artista surge em registros de performances – vídeos ou fotografias –, o encontramos com os olhos vendados ou o rosto coberto. Parece preservar para si as verdades, não permitindo que sejam assaltadas, mais uma vez, suas riquezas culturais, encantos, histórias.
Como bom cuidador, Dalton Paula trata de suas questões por meio da sutileza dos detalhes e na escolha dos modos e meios empregados. Desenha com apuro em seu caderno, escuta seus guias, fotografa, implica seu corpo, respeita o ritual, reverencia a ancestralidade, viaja para encontrar seus elos desconhecidos, performa, elege objetos de força, troca com seus pares. O resultado reflete apuro conceitual e técnico, também impregnado da densidade de quem agencia questões profundas, que dizem respeito a corpo e sentimento coletivos. Como parte de sua pesquisa, percorreu rotas simbólicas da diáspora africana, motivadas pela escravidão, o cultivo de tabaco e a extração de ouro. Revolveu arquivos esquecidos, criou uma escola de arte, insurgiu-se contra estigmas sociais, como no vídeo “O Batedor de Bolsa” (2011). Anos depois, interpelou referências imagéticas e artísticas que forjam bases culturais desse racismo. Nas aquarelas “Assentar” (2019), partiu de cenas icônicas de obras de Jean-Baptiste Debret (1768-1848) que retratavam pessoas escravizadas. Dalton suprimiu o corpo negro e em seu lugar apresentou uma cadeira. Parece trazer descanso aos corpos reiteradamente explorados, ao mesmo tempo que consagra o objeto de poder espiritual.
Recentemente, ele recriou retratos para personagens negros históricos parcamente representados nos meios oficiais. Fotografou pessoas do Quilombo Alto do Santana, em Goiás, que deram corpo a entidades do passado. Ricamente ornadas, as imagens restauram a força simbólica e a importância histórica de nomes como Dandara, Luisa Mahin, Zumbi, Ganga Zumba. À tinta que dá forma aos cabelos, o artista incorpora folhas de ouro, em referência à coroa e à realeza. Altivas e poderosas, as figuras agora ostentam olhos abertos.
JÚLIA REBOUÇAS
Jill Mulleady
KEINE ANGST VOR DEM ELFENBEIMTURM
Em 1969, a revista Der Spiegel publicou uma entrevista com Theodor Adorno na qual se discutia o estado de agitação da juventude europeia. A entrevista começa assim:
Der Spiegel: Professor Adorno, há duas semanas o mundo parecia estar em ordem…
Adorno: Não para mim.
Cinco décadas depois, o mundo definitivamente não está em ordem. E quando os arqueólogos culturais do futuro examinarem a arte de nossa época em busca de vestígios do desastre iminente, encontrarão na obra de Jill Mulleady o equivalente ao que nos oferecem as ruínas de Pompeia e Herculano: um retrato perpétuo da humanidade fulgurando em um instante de perigo. Não por acaso, o comprometimento de Mulleady para imaginar o fim teve início na exposição que ela apresentou no Museo Archeologico Nazionale de Nápoles, em 2015: “Fear”. Simples e potente, o título funciona como um “abracadabra” com o qual a artista traça o mapa de suas futuras explorações. E ali mesmo há um marco importante de seu trabalho: uma obra que Mulleady incluiu na seção do museu dedicada a imagens e objetos obscenos. Rodeada de cenas eróticas, a pequena pintura a óleo se destaca pelos tons e pela inclinação diabólica: dois personagens brumosos, saídos dos pesadelos do Goya tardio, subjugam sexualmente uma mulher que parece indefesa. Parece. A obra de Mulleady é inquietante justamente porque nos lembra que o amor pode ser mais frio que a morte.
São esses desejos de morte e destruição que pontuam o caminho formado por migalhas de pão (preto) que Mulleady foi deixando cair desde os subsolos de Nápoles até as abóbadas do Swiss Institute de Nova York, onde apresentou “Fight-or-Flight” em 2019. As respostas automáticas que o organismo produzia diante do perigo (ou a pré-história emocional do estresse). A artista se ocupa reiteradamente dos afetos sombrios de uma humanidade que avança como se tivesse no desespero sua única força.
A obra de Mulleady é inquietante justamente porque nos lembra que o amor pode ser mais frio que a morte
O que as pinturas de Mulleady insinuam não é tanto o fim dos tempos, mas, antes, as paisagens emocionais que esse fim imprime sobre o mundo. Isso explica por que sua arte, que pode ser interpretada como uma arte de denúncia, não é composta a partir dos vocabulários exauridos do ativismo ou da crítica política, ainda que possa se referir a eles tangencialmente. Em um presente assediado por artistas que declaram sem escrúpulos o que fazer, como se a pergunta referente à ação política formulada por Lenin em 1902 fosse uma equação simples, Mulleady se limita a pintar de forma implacável aquilo que é. Estaríamos, portanto, diante de uma pintora realista, se tencionarmos nossa definição do realismo de modo a incluir sua linhagem alucinada. Nela, as condições materiais surgem veladas por um requintado jogo de referências, em que se desdobram certos recantos sinistros da história da arte e do imaginário atávico (e por isso mesmo absolutamente atual) dos contos de fadas. Contrariando os anseios do realismo convencional por uma crítica ideológica, Mulleady busca encantar a realidade – ou, melhor dizendo, enfeitiçá-la. O resultado não é a transformação da arte em uma ilusão de massa, mas um conjunto de obras que propõe uma hipótese antropológica: se a crise de nosso tempo pode ser figurada com imagens já contidas nos contos de fada é porque a humanidade sabe, pelo menos desde a Idade Moderna, que a história do mundo é a história natural de sua destruição. Nas pinturas de Mulleady, portanto, a longa marcha da modernização é reinterpretada como um eterno retorno da catástrofe.
MARIANO LÓPEZ SEOANE
- 20 em 2020 – Os Artistas da Próxima Década
- João Paulo Siqueira Lopes e Fernando Ticoulat
- Art Consulting Tool
- 264 páginas
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