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Cultura

Shittrap: entenda esse estilo musical ofensivo

Baseado na lógica do shitposting, o gênero musical shittrap desafia o limite do humor, da arte e do bom senso

Daniel Vila Nova 14 de Junho de 2021
Divulgação

Provocação, escárnio e temas tabu em geral são características de um movimento que nos últimos anos vem ganhando cada vez mais força na internet brasileira: o shittrap. É o caso do hit “É a União Flasco”, a música do rapper LUCKHAOS que conta com mais de 18 milhões de visualizações no YouTube. O título da canção, que faz uma inusitada proposta de união entre a torcida Flamenguista e Vascaína, é só a ponta de um iceberg de provocações, ofensas e absurdos proferidos pelo rapper, em letras obviamente destinadas a maiores de idade.

O shittrap é uma vertente da música trap, atualmente o mais popular subgênero de rap do mundo. O estilo une a musicalidade de artistas de fora como Travis Scott, Migos e Gucci Mane à lógica de provocações e ofensas presentes em alguns cantos online, criando um movimento musical nativo da internet que busca, acima de tudo, chocar os desavisados e divertir aqueles que estão próximos dessa linguagem.

Na história da música, não é incomum encontrar exemplos de bandas que apostaram no escárnio e na ofensa como forma de expressão. Em 1999, o já polêmico rapper Eminem apresentou ao mundo o seu problemático alter ego “Slim Shady”, uma versão agressiva e violenta do músico. Já no Brasil, bandas como a U.D.R., o músico Rogério Skylab e os próprios Mamonas Assassinas brincaram com e provocaram temas e debates importantes, tornando ainda mais confusas a linha entre o que é sério e o que é brincadeira.

O shittrap é movimento musical nativo da internet que busca, acima de tudo, chocar os desavisados e divertir aqueles que estão próximos dessa linguagem

O que difere o shittrap dessas outras bandas é que o movimento opera na lógica do shitposting, termo utilizado na internet para definir um comportamento provocativo e chocante de postagens online. Viktor Chagas, professor e pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor do livro “A Cultura dos Memes: aspectos sociológicos e dimensões políticas de um fenômeno do mundo digital” (Edufba, 2020), define shiposting como “uma ação empreendida no âmbito das comunidades online em que um indivíduo publica um conjunto de gracejos, memes e provocações com o objetivo de incitar os ânimos dos presentes nas comunidades.” O termo, que é traduzido para o português como “merdapostagem”, tende a assumir a forma de memes grosseiros e ofensivos e Chagas costuma trabalhar com a lógica por trás do comportamento online com o conceito de “retórica da brincadeira”.

“Essa brincadeira é performada provocativamente, sempre com uma retórica de ambivalência que testa os limites, tornando difícil entender o que é brincadeira e o que não é.” Para o pesquisador, o shitposting flerta com essa dinâmica, se propondo a provocar a tudo e todos mas justificando suas ações como brincadeiras que são sempre mal interpretadas. “O borramento de fronteiras está presente em um conjunto de situações online maior do que o shitposting em si, é um comportamento das chamadas culturas trolls online.”

Apesar das polêmicas, o subgênero angaria inúmeros fãs, remixes e até dancinhas do TikTok. Ame ou odeie, não há como negar que o subgênero vem ganhando cada vez mais importância no cenário musical online nacional. Provocativo, contestador e problemático, o shittrap é um reflexo da cultura da internet e da lógica em que ela é operada. Gama conversou com um pesquisador e dois dos principais nomes do shittrap brasileiro para tentar entender o movimento e as polêmicas que o cercam.

O Shittrap

“O shittrap nasce lá em 2017 com a intenção de transgredir o que estava bombando na época.” Quem afirma isso é Lucas Martins, 25, também conhecido como LUCKHAOS, autor de “É a União FLASCO” e autoproclamado “rei do shittrap”. Seu canal do YouTube conta com mais de 100 milhões de visualizações e suas músicas são as mais lembradas quando o subgênero é mencionado. “Para usar um termo que nós usamos, queríamos merdalizar o trap, o gênero que estava em alta na época.” As paródias e versões provocativas da música trap passaram a pipocar no SoundCloud, plataforma de áudio que popularizou as músicas traps originais, e foi ali que LUCKHAOS passou a se interessar pelo movimento.

Lucas, que sempre gostou de música e aprendeu a tocar instrumentos na igreja, conheceu o shittrap enquanto cursava Letras. “Na faculdade, fui surpreendido por um mundo que não conhecia. Sou preto e pobre, não tinha qualquer conhecimento sobre aquele mundo literário culto da classe média alta”, diz a Gama. O rapper conta que foi procurando um espaço para desabafar que ele conheceu o shittrap. “A primeira coisa que me chamou a atenção foi a transgressão. Senti um alívio, havia encontrado uma forma de expressão contra o status quo que fazia sentido para mim.”

Ele, que quase sempre tem a companhia do produtor musical Haku em suas músicas, acredita que as pessoas tem sede por algo diferente na internet, algo que foge do comportamento padrão da persona online feliz e bonita. Para o rapper, o shittrap lhe dá a oportunidade de “ser o do contra” e bater de frente com assuntos que as pessoas preferem ignorar. “Há uma minoria que não compreende, mas a maioria esmagadora entende. É só ver o tamanho do público.”

Falo da forma mais escrachada possível. Não entendo como alguém acredita que eu estou falando sério nas minhas rimas

“O Shittrap faz bastante sucesso entre jovens porque os jovens são o público que mais compreende que a letra é irônica. Pessoas mais velhas têm dificuldade de entender e acabam levando a música a sério, o que nunca deve ser feito. O Shittrap é completamente irônico, nada falado nas músicas do LUCKHAOS deve ser levado a sério”, quem afirma isso é o beatmaker Haku, parceiro de LUCKHAOS em suas canções. O produtor musical, que se chama Gabriel Alexandre e tem 19 anos, cria batidas e produz diversos raps que bombam na internet. Sob seu guarda-chuva, diversos hits com centenas de milhares de visualizações que não se limitam ao shittrap.

Os maiores sucessos dele, entretanto, são suas parcerias com LUCKHAOS. “Não há nada de diferente na minha forma de compor os beats, independentemente do gênero para qual eu estou produzindo. O que me interessa é que soe bem, um bom grave, bons timbres, uma vibe dançante se possível.” Haku entende que o segredo para o sucesso é um só: a música é boa. “Fazemos sucesso na internet pelo mesmo motivo que qualquer outro artista faz, porque nós fazemos arte e as pessoas gostam e consomem.”

O gênero, que acumula milhões de visualizações no Youtube, já saiu da bolha e repercute entre grandes youtubers que assumem alter egos e produzem seus próprios shittraps. O youtuber Gemaplys, que tem mais de um milhão de inscritos, adota a persona Yung Lixo em suas rimas e Maicon Kuster, youtuber com três milhões de inscritos e que colaborou com LUCKHAOS em um remix de “É a União Flasco”, é Lucas Hype na hora de cantar. Os dois chegaram a colaborar em um rap para o canal oficial do refrigerante Guaraná Antártica.

LUCKHAOS acredita que para o shittrap ser shittrap ele tem de ser transgressor. “Não é só falar algo engraçadinho, há um quê há mais. Músicas engraçadas e paródias podem existir, mas o choque é necessário para que a música seja shittrap.” As provocações e as polêmicas não passam impune pelo tribunal da internet, que sempre que tem a oportunidade problematiza as rimas do subgênero. O rapper, entretanto, diz não se preocupar e entende que as críticas fazem parte do processo. “Eu falo da forma mais escrachada possível, uso termos chulos de baixo calão e apelo para o valor de choque para entreter as pessoas. Não consigo entender como alguém acredita que eu estou falando sério nas minhas rimas.”

Feels Good, Man

“É importante dizer que, muitas vezes, o shitposting tem um caráter misógino ou racialmente discriminatório. Essa provocação, eventualmente, oprime determinadas categorias e minorias”, afirma Viktor Chagas. “Ainda que haja manifestações críticas e subversivas importantes, vale pensar a respeito sobre o limite do que é uma brincadeira e uma afirmação séria, afinal, essa afirmação também pode demonstrar um certo status de dominação”, afirma o pesquisador.

“O shitposting sempre existiu no âmbito das interações online, mas foi ganhando um nome à medida que a prática começou a ganhar mais repercussão na mídia”, diz Chagas. O professor entende que outros termos já foram utilizados para comportamentos parecidos, como “trolling” ou “flamming”, mas foi a partir do momento em que esse tipo de prática passou a ser entendido como um repertório político de certos grupos que o nome acabou pegando.

Em 2017, a Quartz definiu “shitposting” como a palavra digital do ano pela presença massiva online, particularmente na política americana. Já em 2019, “shitposting” foi eleita uma das palavras do ano pelo Financial Times por ter ultrapassado os limites do mundo digital e se transformado em uma prática que influenciava o mundo físico, especialmente no campo da política.

Ainda que haja manifestações críticas e subversivas importantes, vale pensar sobre o limite do que é uma brincadeira e uma afirmação séria, afinal, também demonstra um status de dominação

Não são poucas as reportagens que traçam paralelos entre o comportamento “shitposting” e a estratégia de comunicação online do ex-presidente americano Donald Trump e de seus apoiadores. Os memes, muitos retirados da cultura do shitposting, se tornaram parte fundamental da campanha de Trump e do movimento da extrema-direita americana, e acabaram popularizando o termo “shitposting” e fazendo com que a prática fosse reconhecida mundialmente.

Apesar da fama, é importante ressaltar que o “shitposting” não é necessariamente político. Por mais que a lógica desse tipo de ação seja frutífera na disputa política, o termo abrange um comportamento que excede em muito o campo político e que está presente em todos os cantos da internet, bem antes da política adotar esse comportamento como estratégia.

Não toque, é arte

Em um artigo para o site Polygon, o escritor americano Sam Greszes traça um paralelo interessante entre o shitposting e o movimento artístico dadaísta. Segundo o autor, o contexto em que o dadá surge, uma sociedade pós-primeira guerra mundial em que o nacionalismo crescia de forma assustadora, é semelhante ao mundo em que vivemos nos dias de hoje. Para ele, a resposta dos artistas que criaram o dadaísmo é a mesma, com as devidas proporções, ao que os shitposters fazem nos dias de hoje. O poeta dadaísta Tristan Tzara afirmou que o começo do movimento surgiu não pela vontade de fazer arte, mas por um profundo desgosto com o mundo. Greszes também relembra as problemáticas raciais do movimento dadaísta e as compara com questões similares enfrentadas pela cultura shitposting.

Já a revista Surface, uma das mais importantes publicações de design americana, faz uma interessante provocação: “E o que é o shitpost se não um ataque carnavalesco e sem objetivo contra a própria noção de sentido? Como toda estética que se inspira no absurdo (Dada, surrealismo, situacionismo, punk), shitposting é um grito de desespero contra o desastre iminente.”

Para Viktor Chagas, memes e arte percorrem caminhos similares e, por vezes, se entrelaçam. O pesquisador enxerga esse conjunto de formas estéticas assumidas por grupos como marcadores que dão vazão a movimentos estéticos. “Há ali valores e significados incutidos nas representações imagéticas que são feitas, uma forma que valoriza e procura ressaltar propositalmente a falha, o erro, o grotesco e o feio.” Chagas entende que a provocação e a ambivalência características do shitposting fazem parte de um conjunto de valores culturais que são afirmados esteticamente nesse tipo de postagem.

“Não estou fazendo nada de diferente do que poetas faziam na época do Trovadorismo com as cantigas de maldizer e de escárnio”, afirma LUCKHAOS. “Essas cantigas eram vistas como algo chulo na época, mas séculos depois passaram a ser consumidas com olhos artísticos e críticos.” O rapper se enxerga repaginando esse tipo de poética e espera que, no futuro, veja sua produção receber reconhecimento similar. “Muita gente não vê o que eu faço como uma expressão artística, aprendi isso na faculdade. Mas a arte pode ser feita de várias formas e essa é a minha, espero que no futuro as pessoas vejam da mesma forma que eu vejo, como uma forma de transgressão do status quo musical e humorístico da minha época.”

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