Aly Muritiba: ‘Trabalho na cadeia me fez olhar personagens sem julgamento’ — Gama Revista

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Aly Muritiba: ‘Trabalho na cadeia me fez olhar personagens sem julgamento’

Arquivo pessoal

Ex-carcereiro, diretor de “Deserto Particular”, filme que pode representar o Brasil no Oscar, diz por que decidiu deixar a violência de lado e fazer um filme sobre amor e tolerância

Amauri Arrais 24 de Novembro de 2021

Numa das cenas iniciais de “Deserto Particular”, filme que pode representar o Brasil no Oscar e que chega agora aos cinemas, o policial Daniel (Antonio Saboia) digita e apaga algumas vezes a mensagem de que está apaixonado por Sara, uma mulher que conhece só por aplicativos de encontro. A frase não enviada, de certa forma, resume um tema que mobilizou o diretor Aly Muritiba nos últimos anos e que tem no filme o seu melhor exemplo.

Daniel é um policial e filho exemplar que, durante um treinamento, acaba agredindo um colega e colocando em risco a carreira. Afastado, decide viajar de carro de Curitiba a Sobradinho, no interior da Bahia, para encontrar a mulher com quem até então só se relaciona virtualmente.

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A história guarda algumas semelhanças com a trajetória de Muritiba, baiano da pequena Mairi e radicado em Curitiba que, antes de viver de cinema, trabalhou como agente penitenciário no Paraná e bilheteiro do metrô em São Paulo. “O modo respeitoso e sem julgamento como eu trato os meus personagens é muito reflexo dessa minha experiência na cadeia, principalmente”, diz o cineasta de 42 anos.

O argumento chegou para ele como um drama. Mas Muritiba, que ficou conhecido por filmes que têm o sistema penitenciário como cenário — além de dirigir e roteirizar episódios de séries como “Carcereiros”, “Irmandade” e “O Caso Evandro” no Globoplay –, quis transformá-lo numa história de amor.

Nós homens formados sob a égide heteronormativa patriarcal somos emocionalmente adoentados

“Não era um filme de amor, mas um drama bem pessimista e, ao longo do tempo, foi se transformando nessa história de encontro, tolerância, afeto”, afirma. “Já fiz muitos filmes e séries sobre violência, estava farto de ódio, de porrada.”

O filme se insere, afirma, numa pesquisa iniciada com “Para Minha Amada Morta” (2015), um drama sobre a fixação de um homem que descobre uma traição após a morte da esposa, e de “Ferrugem” (2018), que investiga as consequências do bullying virtual entre adolescentes. Sem premeditar, o cineasta diz ter mergulhado no tema da masculinidade tóxica que impede homens de expressarem suas emoções, muitas vezes tendo a violência como única resposta.

“Nós homens formados sob a égide heteronormativa patriarcal somos emocionalmente adoentados”, afirma Muritiba. “Fui formatado para ser um macho hétero topzeira. E não quero, não estou a fim. É muita pressão. Como isso me angustia, imagino que angustia meus personagens também.”

Premiado em Veneza, “Deserto Particular” já conquistou um feito: desbancou “7 Prisioneiros”, que tinha o peso da Netflix e era tido como favorito na indicação brasileira ao Oscar. Para o diretor, que já esteve nessa lista preliminar ao prêmio com o curta “A Fábrica” (2013), o desafio é fazer os “velhinhos da Academia” assistirem ao filme. “Se eles virem, acredito de verdade que a gente pode ser indicado ao Oscar. E talvez até ganhar”. Na conversa com Gama, Muritiba também falou sobre a campanha para levar o longa a representar o país na cerimônia pela primeira vez desde 1998 e sobre como é fazer cinema num país em que “a indústria cinematográfica está acabando”.

Os atores Antonio Saboia e Pedro Fasanaro em cenas de “Deserto Particular”  Divulgação

  • G |Você já disse que os trabalhos como bilheteiro do metrô e agente penitenciário te ensinaram mais que muitas aulas de cinema. O que é possível ver dessas experiências nos seus filmes?

    Aly Muritiba |

    Acho que o modo como eu olho para os personagens. O modo respeitoso e sem julgamento como eu trato os meus personagens são muito reflexo dessa minha experiência na cadeia, principalmente. Trabalhar durante tanto tempo naquele ambiente com pessoas de backgrounds sociais tão diferentes do meu, pessoas marginalizadas, com histórias de vida muito sofridas e com dificuldades muitas vezes de comunicação –a única ferramenta comunicacional desenvolvida pela maioria das pessoas que estão na cadeia é a violência. Conviver durante tanto tempo dentro de uma chave negocial de diplomática, porque é assim que tem de ser, já que na base da violência a gente morre, me preparou muito para escrever e criar meus personagens. Fora isso, tematicamente, boa parte da minha cinematografia lida com questões sociais, retrata algumas vezes universos conservadores, como é o caso do habitado por Daniel, no “Deserto Particular”, mas o faz com um olhar sem qualquer julgamento. No caso do “Deserto” faz até de maneira propositiva, propondo possibilidades de desconstrução e de mudança.

  • G |“Deserto Particular” foge da temática do cárcere, que foi o cenário de muitos de teus filmes e séries. Como surgiu a ideia?

    AM |

    “Deserto Particular” se insere numa pesquisa que eu comecei com “Para Minha Amada Morta” e continuei no “Ferrugem” sobre os afetos masculinos no mundo contemporâneo, sobre como homens formados sob a égide da heteronormatividade não conseguem expressar suas emoções e seus sentimentos. “Deserto Particular” é a culminância disso, na verdade, e é a obra mais propositiva, esperançosa. O argumento inicial dessa história, que antes era um drama, veio do Henrique [dos Santos], corroteirista. O argumento sobre o cara que está se relacionando virtualmente com uma mulher, apaixonado por ela e quando vai encontrá-la no interior da Bahia descobre que ela é muito mais do que uma mulher, não era um filme de amor, mas um drama bem pessimista e, ao longo do tempo, foi se transformando nessa história de encontro, tolerância, afeto e amor.

  • G |Chama a atenção que, embora trafegue por universos muito brutos, como o policial afastado por agressão e um personagem andrógino numa cidade pequena, conservadora, não há nenhuma cena de violência explícita. Foi uma escolha intencional?

    AM |

    Sim, chega de violência! Me lembro de ter tido uma discussão com o Henrique [corroteirista do filme] quando eu comecei a tentar mudar a história de um drama social para um filme de amor. No começo, ele foi um pouco refratário, dizia “mas as coisas não são assim”. Ele é um homem negro e gay e me falava: “No fim das contas, a gente está sempre se fodendo, os policiais estão sempre agredindo a gente, então o Daniel tem que bater nela”. Eu falei: “Cara, as coisas são assim, né? Mas elas poderiam ser diferentes. É o nosso filme. Vamos mostrar que é possível ser diferente nem que seja no cinema, na fantasia? Mostrar uma personagem da comunidade LGBTQIA+ digna, linda, lírica, decidida e que é capaz de olhar sem medo no olho de um macho branco, hétero, policial e falar: ‘Vai me bater como você fez com aquele menino?’” Já fiz muitos filmes e séries sobre a violência, estava farto de ódio, de porrada.

Já fiz muitos filmes e séries sobre a violência, estava farto de ódio, de porrada

  • G |Também parece um tema recorrente esse modelo de masculinidade colocada em xeque, que você já tratou em “Para Minha Amada Morta” e “Ferrugem”, de diferentes perspectivas. É um assunto que te instiga?

    AM |

    Não houve a ideia inicial de vou fazer uma trilogia [sobre masculinidade]. Mas quando eu estava fazendo “Ferrugem”, me dei conta de que versava também sobre essas questões de que “Para Minha Amada Morta” já tratava. Aí quando fui para o “Deserto Particular”, já fui deliberado: mais uma vez o celular, as relações mediadas, protagonistas heteronormativos com questões com suas afetividades… Acho que nós homens formados sob a égide heteronormativa patriarcal somos emocionalmente adoentados. A gente não sabe expressar direito nossas emoções. Até quando você vai abraçar seu amigo hétero é um abraço em que um dá um tapa nas costas do outro, parece que vai bater. E eu fui criado assim. Nasci no interior da Bahia em uma família masculina, são quatro homens em casa, quatorze tios… Saí do sertão da Bahia e fui trabalhar numa estação de trem, depois virei agente penitenciário, um ambiente supermasculino, conservador. Fui formatado para ser um macho hétero topzeira. E não quero, não estou a fim. É muita pressão. Não quero estar nesse topo da cadeia alimentar porque não quero devorar ninguém e não quero ter que performar o macho hétero o tempo inteiro. Como isso me angustia, imagino que angustia meus personagens também.

  • G |Você esteve antes nessa lista preliminar do Oscar, em 2013, com o curta “A Fábrica”. Na época, disse que a história tocante e universal talvez tenha cativado os velhinhos da Academia. No caso de “Deserto Particular”, o que pode conquistar os velhinhos dessa vez?

    AM |

    É uma história tocante e universal capaz de tocar os velhinhos da academia (risos). Falando sério, eu espero que os velhinhos da Academia vejam o filme porque não é fácil, são mais de 10 mil membros e eles só veem se quiserem, não são obrigados a ver todos. Se eles virem o filme, acredito de verdade que a gente pode ser indicado ao Oscar. E talvez até ganhar. O filme é muito tocante, mobiliza muito, emociona. O que eu assisti no Festival de Veneza e na Mostra de São Paulo nunca tinha visto com filme nenhum. A galera levantar para cantar “Total Eclipse of the Heart” a plenos pulmões em plena sala de cinema? Foi uma loucura. E as pessoas se sentem muito tocadas pelo filme. Depois de quase dois anos trancado em casa, perdendo gente, sem viajar, sem beijar na boca, sem foder, você vai pela primeira vez a uma sala de cinema e assiste a um filme em que o personagem viaja, beija na boca, fode, encontra gente, vai pra festa, dança junto e canta “Total Eclipse of the Heart”! Só me toquei disso vendo o filme no cinema: meus personagens estavam fazendo tudo aquilo que a gente estava querendo fazer há dois anos.

  • G |O filme desbancou “7 Prisioneiros”, que tinha a Netflix por trás e era tido como favorito nessa pré-seleção. E pode ser o primeiro indicado a filme estrangeiro desde Central do Brasil (1998). Você acha que mudou um pouco esse cenário de “filmes feitos pro Oscar”, com grandes produtoras e lobby?

    AM |

    Não mudou nada. A gente está tendo que fazer campanha também. A diferença é que não somos uma grande produtora e não temos grana. Sem campanha, nenhum filme chega a lugar nenhum. Em Hollywood não é mais sobre o filme, mas sobre a capacidade de fazer campanha, sobre indústria. Obviamente, se amanhã um grande player entrar no filme, “vamos virar HBO Originals”, vai ser do caralho porque a Warner vai meter ficha lá nos Estados Unidos e a gente precisa deles lá. A gente está fazendo como pode, estamos aí batalhando para conseguir essa indicação, mas estamos remando de canoa enquanto os caras estão de transatlântico. Não basta ter um bom filme.

Se os velhinhos da Academia virem o filme, acredito que a gente pode ser indicado ao Oscar. E talvez até ganhar

O policial Daniel encontra Sara, mulher com quem se relacionava virtualmente  Divulgação

  • G |Na época da pré-seleção de “A Fábrica”, você disse que a produção de cinema no Brasil estava mais interessante, ainda que tivesse os filmes “soap opera” da Globo, que eram necessários. Hoje, depois de dirigir alguns episódios de séries na Globo, você acha que essa perspectiva se ampliou? O streaming ajudou nisso?

    AM |

    A chegada dos streamings tem dado emprego para muita gente. A gente está conseguindo filmar, escrever, estar no set com constância, mas é streaming, não é cinema. É outro tempo, outra grana, você tem um cliente que precisa atender. E está tudo certo, estamos aí para trabalhar. Mas o impacto que isso tem causado na indústria cinematográfica é esse: pessoas estão trabalhando. Aqui no Brasil os stremings não estão operando com afinco na realização de filmes para cinema — talvez essa nem seja a meta deles.

  • G |Em termos de linguagem você acha que são muito diferentes? “Deserto Particular” seria o mesmo filme se fosse direto para o streaming?

    AM |

    Acho de verdade que “Deserto Particular” é um filme para ser visto na tela grande com muita gente do lado. Aqueles que viram com o link [de divulgação para imprensa], experimentem a sensação de ir ver no cinema cercado de gente. É tipo você colocar Baiana System para tocar na sua caixinha JBL e dançar sozinho em casa e você num show do Baiana System de verdade. É outra experiência.

  • G |Você disse em uma entrevista ao UOL que trabalha como se as oportunidades no cinema fossem acabar a qualquer momento. Depois de dirigir tantos filmes e séries quase que simultâneos, acha que esse cenário está melhor?

    AM |

    Para mim, as oportunidades têm aparecido e eu tenho aproveitado para fazer meu trabalho bem feito, o que tem provocado novos convites. Inclusive, espero desacelerar um pouquinho daqui a pouco, por uma questão de saúde física e mental. Mas pode acabar a qualquer momento. A indústria cinematográfica brasileira está acabando. Se não houver uma reviravolta em 2022, se as coisas continuarem na toada que estão, os diretores e diretoras brasileiros que quiserem fazer exclusivamente cinema terão que ir embora ou trabalhar só com streaming. Então, as oportunidades podem acabar a qualquer momento. Se os streaming resolvem, por exemplo, que só vão fazer comédias adolescentes, provavelmente eu vou ficar desempregado porque não sou esse cara. Não é que não queira, mas tem uma galera que já faz isso bem.

  • G |Que projetos você está tocando agora?

    AM |

    Estou filmando uma série para a Amazon chamada “Cangaço Novo” e no ano que vem devo rodar um longa inspirado no livro do Daniel Galera, “Barba Ensopada de Sangue”. Agora, meu foco é lançar o “Deserto Particular” e batalhar na gringa para ver se os velhinhos assistem ao filme.

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