Flica, dia 2: Nego Bispo, Jean Wyllys, Leda Maria Martins e corpos dissidentes — Gama Revista

Flica, dia 2: Nego Bispo, Jean Wyllys, Leda Maria Martins e corpos dissidentes

Festa literária de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, ocorre nesta sexta-feira (27). Acompanhe aqui os principais destaques do segundo dia

Daniel Vila Nova e Gabriela Bacelar 27 de Outubro de 2023

O segundo dia da Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica) é realizado nesta sexta-feira (27) com nomes de peso como Jean Wyllys, Leda Maria Martins, Antônio Bispo dos Santos, entre outros. O calor é forte, mas isso não desanima o público, que está cada vez mais volumoso no evento. As mesas e palestras da feira discutem as poéticas afroindígenas no bicentenário da Independência do Brasil na Bahia. A 11º edição do evento conta com cobertura local da Gama em Cachoeira, na Bahia. Abaixo, você acompanha os principais destaques do dia.

A Flica surpreende até mesmo os moradores de Cachoeira

Para quem mora em Cachoeira, a Flica é um acontecimento anual que sempre movimenta a cidade. Este ano, no entanto, até mesmo os locais se surpreenderam positivamente com a força do evento. Para Itanara Conceição dos Santos, também conhecida como Mãe Nara, presidente das associações Filhas de Yamim e Cultural Yemanjá Ogunté, esse ano se destaca por dar enfoque na expressão do povo negro e indígenas. “A Flica expande, pelo nosso Brasil e pelo mundo, a nossa cultura. Pra mim isso é gratificante, porque eleva nossos grupos e nossos projetos”, afirma a Yalorixá nascida em Cachoeira.

 Gabriela Bacelar/Gama Revista

Itanara se apresentará no domingo, 29 de outubro, na festa junto a outras baianas no cortejo Flica Afrobarroco. “A festa promove o livro e livro é conhecimento, sabedoria, as pegadas dos nossos antepassados, que não deixam nossa história morrer.”

O asfalto derrete nas mãos de Nego Bispo, Cacique Payayá e Leda Maria Martins

“No dia em que os quilombos perderem o medo das favelas, as favelas acreditarem nos quilombos, e os dois juntos conhecerem as aldeias, o asfalto vai derreter” disse o professor e poeta Nego Bispo, abrindo as falas da mesa “Memórias da terra, performances do corpo nas trajetórias narrativas da brava gente brasileira”. A conversa, que foi mediada pela professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Jurema Machado, também contou com a participação dos escritores Cacique Payayá e Leda Maria Martins.

“Nós estamos aqui porque nós enfeitiçamos a Flica. Uma negra escritora, um indígena e um quilombola nessa mesa é exatamente o asfalto derretendo”, afirmou Bispo. Para o Cacique Payayá, “a nossa literatura reflete a maneira como nós, indígenas, enxergamos essa cultura eurocentrista que tem destruído nossa forma de viver, nossa língua, nossos pássaros e nossa terra”.

Convocada a falar sobre a oralitura, Leda Maria Martins diz que “todos os textos fundacionais civilizatórios, de todos os povos, se deram primeiramente pela oralidade”. A oralidade, ela explica, “se refere não somente ao texto verbal, mas a sua performance. Ou seja, esse texto na forma falada ou cantada não existe sozinho, não é solitário e não almeja um monólogo. O texto da oralidade convoca o corpo, o movimento, a dança, o gesto, os ritmos, as cores e os sabores, ele não é apartado”.

Continuando sua fala, a autora entende o corpo como “lugar de inscrição de conhecimento”, por isso, “todo trabalho de requalificação e de revalorização, que busca trazer visibilidade para as oralituras, precisa reconhecer o que esse conhecimento oferece como potência de vida e de alternativa para o ser no mundo”. Há uma conexão entre a produção de saber e de vida que a autora faz da seguinte maneira: “se esquecermos o canto ou a dança, esquecemos as águas, os ventos, as árvores, as pedras, e nos esquecemos como parte complementar, não privilegiada, mas complementar do cosmos”.

Dezenas de lojas para comprar suas lembrancinhas

No caminho para a Tenda Paraguaçu, o público da Flica encontra uma série de estandes e lojinhas para comprar os mais diversos presentes. Colares, pulseiras, cadernos, bonecas, vestidos e diversos outros itens podem ser encontrados em abundância. A iniciativa faz parte da “Feira da Mulher Negra”, empreendimento social criado em 2016 e que busca promover o encontro entre empreendedoras negras do Recôncavo e da região metropolitana de Salvador.

 Daniel Vila Nova/Gama Revista

Jean Wyllys fala sobre seu exílio político

Um dos grandes nomes do evento, o jornalista, professor universitário e político brasileiro Jean Wyllys foi recebido na Flica como um verdadeiro rockstar. No espaço “Geração Flica”, o escritor baiano reuniu um salão lotado para falar sobre o seu livro, “O que não se pode dizer: Experiências do exílio” (Civilização Brasileira, 2020). Na obra, o ex-deputado federal e a filósofa e socióloga Marcia Tiburi compartilham suas trocas de cartas onde debatem as ameaças que os levaram ao exílio e as estranhezas de viver em um país estrangeiro.

A conversa foi mediada por Iana Sara, ativista social e estudante de Ciências Sociais de apenas 19 anos. No papo, Wyllis revelou o motivo pelo qual ele e Tiburi escreveram o livro: a vontade de deixar um documento para as próximas gerações brasileira sobre o que ocorreu no Brasil nos últimos dez anos.

“A história oficial, os registros, tendem a apagar algumas pessoas. O Brasil é um país que esquece muito rápido, que concilia muito rápido. Nós não fazemos o luto. Nós não fizemos o luto da escravidão. Não existe uma memória dos horrores da escravidão. O livro é um documento contra essa história que apaga esses agentes sociais”, relatou o escritor.

 Daniel Vila Nova/Gama Revista

Para o professor, o tema da Flica se relaciona com essa vontade. “A feira, com as narrativas afroindigenas, também quer dar voz a quem costuma ser esquecido.” Ao falar sobre seu exílio, quando o ex-deputado renunciou seu cargo após receber inúmeras ameaças de morte pós-eleição de Jair Bolsonaro, Wyllys confessou sempre ter se sentido um exilado. “Sou um exilado desde sempre. Sou um homem gay em uma sociedade heteronormativa. Sou um exilado de classe, pois uma pessoa que nasce pobre é excluída de direitos civis. E, depois, me vi em um exílio político. Além disso, durante a pandemia, estive em um exílio em que todos nós vivemos: o exílio do espaço público.”

Para ele, foram as cartas que o mantiveram são. “Eu quero continuar vivo para continuar lutando e as forças políticas que assumiram naquele momento poderiam tirar minha vida, eu escolhi sair do Brasil naquele momento. Saí deixando uma vida para trás, sem nada garantindo”, finalizou.

O rio Paraguaçu

O caminho para a Tenda Paraguaçu, principal palco da Flica, é um dos mais bonitos da cidade de Cachoeira. Na longa rua de paralelepípedos que leva até a atração principal da feira, o rio que dá nome a tenda se faz presente ao lado esquerdo do caminho. O corpo d’água é belíssimo e confere um clima tranquilo ao caminho até a tenda.

 Daniel Vila Nova/Gama Revista

A potência de corpos dissidentes

Na mesa “Visibilidade e Resistência – Poéticas e políticas para a emancipação dos corpos e das mentes!”, Ayô Tupinamba Tenório da Sillva, cantora e escritora, e Adriele Santos do Carmo, escritora e produtora cultural, conversaram sobre corpos dissidentes e o espaço que eles ocupam na sociedade. A conversa foi mediada por Niotxarú Pataxó, educador, comunicador e ativista indígena .

Tenório da Sillva comentou sobre o desconforto que seu corpo “preto, gordo e trans” causa nos outros. “Tenho quase dois metros de altura, peso quase 140 kg. Não tem como vocês não me verem. E vocês fazem questão de me ver. Meu corpo, onde ele chega, causa estranhamento.”

 Daniel Vila Nova/Gama Revista

Já Santos do Carmo relatou como, em muitas ocasiões, corpos marginalizados sequer sabem sobre sua própria potência. “Me descobri muito tarde na escrita. Escrevia desde pequena, assim como minha mãe, mas eu não sabia que era artista, escritora e poeta.” Para ela, essa é a importância de eventos inclusivos que buscam valorizar as mais diversas experiências humanas. “Seu corpo, sua trajetória, elas importam. Não queremos que você seja somente um token”, afirma a produtora cultural, que diz que, em seus eventos, sua principal preocupação é que ninguém tenha de se preocupar com as violências que cada corpo pode sofrer.

Este conteúdo é parte da série “Gama na Flica 2023”, produzida com apoio do Governo do Estado da Bahia e das secretarias de Educação e Cultura, realizadores da Feira Literária Internacional de Cachoeira (BA)

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação